Os dados não são ainda suficientes para deitar por terra a ideia de que as crianças não infetam os outros, mas, para já, mostram que se infetam tanto quanto os adultos. Esta é uma das várias conclusões que se podem tirar do Primeiro Inquérito Serológico Nacional, cujos principais resultados foram divulgados esta quarta-feira.
A leitura é feita pelo pneumologista Filipe Froes — membro do Conselho Nacional de Saúde Pública e da task force criada pela Direção Geral de Saúde para responder à pandemia de Covid-19 — que começa por dizer que é necessário ver os dados com muito rigor, olhando para a metodologia usada e para o número de crianças avaliadas. Os resultados, segundo o documento enviado às redações, indicam uma seroprevalência global de 2,9% de infeção (ou seja, 2,9% da população teve contacto com o vírus) “não tendo sido encontradas diferenças significativas entre regiões e grupos etários”.
Já no estudo, vê-se que as crianças entre 1 e 9 anos tiveram uma seroprevalência de 2,9%, mais alta do que a encontrada entre os jovens dos 10 aos 19 anos (2,2% e que é a mais baixa de todas) e que é exatamente igual aos maiores de 60 anos. A dimensão da amostra foi de 404 indivíduos para cada um dos grupos etários abaixo dos 20 anos de idade.
“Estes dados preliminares apontam para o facto de as crianças também se infetarem, mesmo que fiquem menos doentes do que os adultos. Isto quer dizer que se as crianças são assintomáticas, à partida, poderão também contaminar mais e ter um papel diferente do esperado na contaminação comunitária”, explica Filipe Froes.
O papel dos assintomáticos na propagação do vírus tem sido analisado desde o início da pandemia, já que não tendo sintomas e não tendo sido diagnosticada, a pessoa infetada pode estar a contaminar terceiros sem o saber.
No entanto, explica Filipe Froes, não se pode dizer que as crianças podem infetar os outros da mesma forma que os adultos. Pelo menos sem fazer novos estudos. “Isso não foi avaliado. O que o inquérito conclui é que as crianças também se infetaram, documentando um impacto maior do que foi inicialmente previsto. E isso reforça a decisão do governo de ter encerrado as escolas, mesmo contrariando aquela que foi a decisão do Conselho Nacional de Saúde Pública”, sublinha, já que poderá ter tido efeitos na redução da propagação do vírus.
A conclusão semelhante chega o epidemiologista Manuel Carmo Gomes. “Há duas coisas importantes que este inquérito nos diz: não existem evidências de que as crianças não sejam tão infetadas como os adultos. A percentagem de crianças seropositivas neste inquérito não é distinguível da percentagem dos adultos, portanto elas são infetadas como nós somos infetados”, diz, em declarações à Rádio Observador. “Agora o que nós sabemos é que as crianças quando são infetadas têm menor probabilidade de ter doença sintomática, grave, têm sintomas muito mais suaves, o que não compreendemos ainda muito bem é por que motivo.”
Manuel Carmo Gomes frisa que o inquérito mostra que as crianças são infetadas, recordando que já há estudos que mostram que elas têm vírus no trato respiratório superior em quantidade comparável aos adultos. O estudo, publicado na revista médica JAMA Pediatrics nesta quinta-feira, demonstra que crianças com menos de 5 anos infetadas pelo novo coronavírus podem hospedar até 100 vezes mais vírus no nariz e na garganta do que os adultos.
“O que não sabemos bem é o papel que elas desempenham no processo de transmissão. Será que elas, apesar de não terem sintomas nenhum, têm a mesma capacidade de transmitir o vírus entre elas e aos adultos como o que os adultos têm entre si?”, questiona o epidemiologista. A resposta está ainda por encontrar.
No entanto, Manuel Carmo Gomes lembra ainda um outro estudo, feito na Coreia do Sul, que sugere que até aos 9, 10 anos essa capacidade de transmissão não é tão grande como nos adultos, mas que a partir do 10 anos “os jovens têm capacidade de transmissão semelhante à dos adultos”.
Apesar dessa incógnita, os dados já disponíveis deverão ter, na opinião do pneumologista Filipe Froes, repercussões nas decisões de como e quando devem reabrir as escolas.
“Não há diferença da taxa de ataque — a percentagem de infetados sobre a população estudada — entre adultos e crianças e esperávamos que ela fosse mais baixa entre os mais novos. Por isso, teremos de ser mais prudentes e reavaliar a maneira como vamos retomar a atividade escolar e a sua relação com a situação epidemiológica do país”, sublinha Filipe Froes.
No estudo sul coreano, os investigadores concluem que apesar de as crianças transmitirem o SARS-CoV-2 com muito menos frequência do que os adultos, o risco não é igual a zero. E isso leva os especialistas a pedirem precaução, já que quando as escolas reabrirem, deverão começar a surgir crianças de todas as idades nos surtos de Covid-19.
“Receio que exista a sensação de que as crianças simplesmente não serão infetadas ou não da mesma maneira que os adultos e que, portanto, são quase uma população dentro de uma bolha”, defendeu o infectologista Michael Osterholm, da Universidade de Minnesota, em declarações ao New York Times. “Vai haver transmissão. Temos de aceitar isso agora e incluir nos nossos planos”, concluiu.
Em Portugal, foram convidados a participar no inquérito nacional todos aqueles que se dirigiram a um dos pontos de colheita participantes durante o período de estudo com prescrição médica para realizar punção venosa. Foi obtido o consentimento informado escrito de todos os participantes.
O confinamento deu frutos, mas são más notícias para a vacina
Apesar de apenas 2,9% da população em Portugal ter anticorpos contra o novo coronavírus, Filipe Froes acredita que a estratégia de confinamento inicial adotada no país teve frutos.
“Estamos dentro do intervalo de referência de outros países, mas temos valores mais baixos do que Espanha, por exemplo. Isto significa que o confinamento inicial teve influência no número de casos que o país teve”, argumenta o também coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos.
Os valores estão longe de ser suficientes para a imunidade de grupo e Filipe Froes explica que se mantém a “quase total” suscetibilidade da população para uma eventual segunda vaga, defendendo que este dados revelam a “necessidade imperiosa” de nos prepararmos para esse cenário.
Por outro lado, explica que ter tido contacto com o vírus não é garantia de imunidade. A seroprevalência de quase 3% da população não significa que estas pessoas tenham criado imunidade, significa que estiveram em contacto com o SARS-CoV-2 e sobreviveram. E mesmo as que criaram, não é possível saber durante quanto tempo a mantém, o que tem consequências no desenvolvimento de uma vacina.
“Claro que tem consequências. Imagine que a vacina desencadeia uma resposta, mas ela não é duradoura. Isso pode significar que teremos de fazer reforços de vacinação de seis em seis meses, por exemplo”, esclarece o pneumologista do Hospital Pulido Valente, em Lisboa.
Manuel Carmo Gomes também refere que, por agora, é impossível saber que tipo de resposta, duradoura ou não, vai ter uma vacina. O epidemiologista explica que quando somos infetados pelo coronavírus, desenvolvemos dois tipos de resposta imunitária: “Um são os anticorpos — e é isso que é avaliado pelos estudo seroepidemiológicos como este que o ISNA conduziu. O outro tipo de resposta chama-se imunidade celular. É uma imunidade que envolve um tipo de células, são conhecidas por células T.”
Estas, explica o professor de Epidemiologia da Universidade de Lisboa, podem ser de vários tipos e, por vezes, são chamadas de células de memórias. “Sabemos que as pessoas que contactam com este vírus, isso já está confirmado, mesmo os que são assintomáticos, desenvolvem este tipo de imunidade. Não sabemos é qual é a percentagem de pessoas que em Portugal tem esta imunidade celular, mas é um valor que é no mínimo comparável a estes 2,9% que os anticorpos apontam”, clarifica.
A partir daí, explica Manuel Carmo Gomes, “uma boa vacina” é a que induz resposta o mais semelhante possível a uma infeção causada pelo agente patogénico, neste caso o SARS-CoV-2. “Não sabemos se estas vacinas que estão a ser testadas, nomeadamente as que estão numa fase mais avançada, induzem esse tipo de resposta imunológica”, salienta, e esses dados só serão conhecidos no final da fase 3 dos ensaios, mais próximo do final do ano.
“Se estas vacinas forem capazes de induzir essas duas respostas imunitárias parecidas com aquilo que o verdadeiro vírus induz, a esperança de que a imunidade induzida pela vacina seja prolongada é maior porque estas células T têm uma duração muito longa”, diz o epidemiologista, recordando que ainda hoje se encontram pessoa, infetadas pela SARS em 2003, e que passados 17 anos apesar de não terem anticorpos têm essas células memória contra o vírus a circular no sangue.
A conclusão final é de que tudo dependerá do tipo de resposta imunológica induzida pela vacina. “Se conseguirem imitar a resposta imunológica que é causada pelo vírus,temos esperança de que a imunidade dure mais tempo. Se não conseguirem, as notícias não são muito boas, e temos uma situação em que a imunidade se pode perder ao fim de 1 ou 2 anos e que, de resto, é aquilo que aparentemente os coronavírus que causam as constipações sazonais provocam”, conclui Manuel Carmo Gomes, lembrando que quem tem constipações causadas pelos coronavírus mais benignos normalmente fica protegido durante 1 a 2 anos.