Índice
Índice
Os problemas, os equívocos e as confusões começaram antes mesmo do início do festival. Na semana de 11 de agosto decorreu em Almada mais uma edição do festival O Sol da Caparica — depois de dois anos de paragem devido às restrições impostas pela pandemia, o evento regressou ao Parque Urbano da Costa da Caparica com a presença de 30 mil espectadores por dia. Um número que deu uma “grande satisfação e alegria” à organização, que, por altura do arranque do festival, admitiu à Agência Lusa as dificuldades de ter de “começar do zero” depois de um tão longo interregno.
À partida, estavam reunidas todas as condições para o normal regresso do festival de música lusófona — mas não foi isso que aconteceu. Ainda o evento ia no início quando começaram a surgir nas redes sociais os primeiros indícios de que alguma coisa não estava bem. Miguel Ângelo, que atuou no final do primeiro dia, 11 de agosto, no palco secundário, o Free Now, queixou-se de não existirem as “condições técnicas e práticas” necessárias para “um festival da dimensão” do Sol da Caparica, lamentando o atraso das comunicações por parte da organização e o facto de os diferentes artistas terem tido de se ajustar “da melhor forma” aos “horários muito apertados, tendo em conta a boa vontade e o ‘espírito dos festivais’”.
Outros artistas juntaram a sua voz à do vocalista dos Delfins. The Legendary Tigerman, Karetus e Quatro e Meia mostraram o seu descontentamento para com a organização do Sol da Caparica, uma marca registada da Câmara Municipal de Almada, queixando-se de problemas técnicos e de falta de coordenação. Além dos músicos, também o público se queixou. Três dias após o final do evento, o Portal da Queixa contava com 26 reclamações, a maioria endereçadas ao promotor, o Grupo Chiado, responsável pelo Sol da Caparica desde 2019, e relacionadas com falhas na organização. Uma queixosa, que confessou frequentar o festival há vários anos, garantiu que não voltará tão cedo, uma vez que foi “surpreendida com uma organização do pior que já [viu] neste tipo de eventos”. “Tenho a certeza que não terei vontade de voltar (…). Eu e milhares de pessoas”, lamentou. Uma outra usou a palavra “fraude” para descrever o evento, reclamando que gastou “60 euros nos bilhetes mais transporte” para ver concertos que não chegaram ao fim ou que não aconteceram.
Enquanto o principal responsável pela promotora, Zahir Assanali, desvalorizava as queixas de artistas e espectadores, garantindo ao Observador e a outros meios de comunicação social que o evento foi “um sucesso”, um alegado membro da organização decidiu responder diretamente às críticas, dando início a uma polémica que se arrastou durante dias. Rui Campos Silva, que aparece em algumas notícias como sendo um dos promotores do Sol da Caparica, terá dito que os Karetus, que emitiram um comunicado sobre a sua participação no festival, entretanto apagado, é que tinham de se adaptar ao festival e não o contrário. Um colaborador do grupo musical, que esteve no festival e partilhou o comunicado da banda, divulgou na sua conta do Instagram uma mensagem alegadamente enviada por Rui Campos Silva em que este o acusava de “chupar pilas” aos “amigos realmente artistas” porque não conseguia tocar “em lado nenhum”.
Contactado pelo Observador, Rui Campos Silva esclareceu que se limitou a responder a “várias mensagens insultuosas” que recebeu no seu Instagram. “Respondi a uma mensagem menos simpática com uma resposta menos simpática”, disse, frisando que já se tinha entendido com a pessoa em questão, o produtor musical VM Beatz. Esta versão contraria a do próprio VM Beatz, que garantiu à NiT que não foi ele que entrou em contacto com Campos Silva, mas o contrário. “Nem sabia quem ele era. Só soube que ele fazia parte da organização quando os Karetus mostraram o comentário dele na publicação deles”, afirmou. “Achei aquilo completamente ridículo, então partilhei, tal como muitas outras pessoas.” A mensagem foi entretanto apagada do perfil do produtor. Sobre o papel na organização do Sol da Caparica, Rui Campos Silva esclareceu que não faz parte do Grupo Chiado e que só foi responsável pela curadoria do palco eletrónico, o Unlock Energy, onde os Karetus atuaram como cabeças de cartaz no terceiro dia do festival, 13 de agosto.
O mesmo foi dito ao Observador pelo diretor-executivo do Grupo Chiado, Zahir Assanali, que explicou que Campos Silva é “um contratado” da promotora e que não tem nada a ver com esta. “Não faz parte do Grupo Chiado. Fez a curadoria do dance music, não pode falar em nome do festival. Eu, Zahir, e o Grupo Chiado, não nos revemos [nas mensagens enviadas]”, declarou ao Observador. Relativamente às queixas de músicos e público, Assanali procurou desvalorizar as mensagens publicadas, declarando que existem “bandas solidárias” para com a organização que “não entendem este caso”. Sem negar que houve alguns problemas, afirmando que eles acontecem em todos os festivais, o promotor disse perceber “o grau de insatisfação”. “Respeitamos, mas não vamos fazer uma tempestade num copo de água. Iremos melhorar para a próxima edição. Iremos sempre melhorar enquanto festival”, garantiu, frisando que “a edição foi um sucesso”. “O povo saiu feliz. É o que nos deixa mais satisfeitos.”
Esta não foi a primeira vez que surgiram relatos de problemas no Sol da Caparica. Em 2019, ocorreram situações semelhantes, o que gerou algumas queixas por parte de espectadores. Foi nesse ano que o Grupo Chiado organizou o festival pela primeira vez, após cinco edições a cargo de uma outra promotora contratada pelo anterior executivo.
Como tudo começou: o início do Sol da Caparica e a edição de 2019
Desde a sua criação em 2014 que o evento, uma marca registada da Câmara Municipal de Almada, é organizado por produtoras contratadas. Em 2019, o contrato firmado pelo anterior executivo (liderado pela CDU) com a AMG Music, responsável pela criação do conceito e organização do Sol da Caparica desde a primeira edição, terminou — o que levou a autarquia (agora liderado pelo PS) a lançar um concurso público para a contratação de uma nova empresa de produção. Este terá acontecido após uma consulta prévia com a promotora, que não se mostrou disponível para continuar associada ao evento musical, considerando que o modelo proposto e as condições oferecidas não permitiam “alcançar, com qualidade e eficácia, a exemplo dos anos anteriores, os resultados positivos” do festival, de acordo com uma notícia publicada na altura pela Agência Lusa.
O fim do contrato com a AMG Music permitiu alterar o modelo de contratação e financiamento do Sol da Caparica que, até 2018, era custeado pela autarquia quase na sua totalidade, passando a câmara a assumir apenas parte dos custos. Em resposta à Agência Lusa, a Câmara Municipal de Almada justificou as alterações de 2019 com o prejuízo acumulado nos anos anteriores, adiantando que, em 2018, tinha investido 1,7 milhões de euros no Sol da Caparica, obtendo apenas 765 mil euros de receitas, o que avultava num prejuízo de cerca de 962 mil euros. “Considerando que, desde 2014, decorreram cinco edições, estaremos a falar de um prejuízo acumulado de perto de cinco milhões de euros”, referiu a câmara.
Com a AMG Music fora da organização do Sol da Caparica, foram iniciados contactos junto de várias promotoras no sentido de averiguar se alguma estaria interessada em candidatar-se, mas a maioria não terá mostrado interesse. A única que aceitou apresentar um projeto foi a Storm Productions, uma marca da Fearlesstendency Lda., uma empresa de produção, promoção e realização de espetáculos fundada em 2019, em Cascais. Fonte próxima do processo relatou ao Observador que, no decorrer das conversas da Storm com a Câmara, o diretor comercial do Grupo Chiado, Pedro Félix, deu a conhecer ao executivo a vontade de fazer o festival. Na altura, foi-lhe explicado que a autarquia tinha contactado a Storm e que, além dessa promotora, não havia mais interessados. Segundo a mesma fonte, o diretor-executivo da Chiado, Zahir Assanali, entrou em contacto com os sócios-gerentes da Fearlesstendency, Ana Braamcamp e Francisco Ribeiro, com os quais já tinha trabalhado, sugerindo que o evento ficasse a cargo das duas empresas. A equipa da Storm acabou por aceitar a proposta, impondo, no entanto, algumas condições. A principal exigência foi a de que a parte financeira e de produção ficasse a seu cargo. As coisas acabaram por não acontecer exatamente dessa forma.
Elaborado o projeto, a Storm ficou a aguardar o convite para o concurso. Mas esse convite nunca chegou, revela um relatório elaborado pela promotora no rescaldo da edição de 2019 do Sol da Caparica, que foi entregue à Câmara de Almada e a que o Observador teve acesso. Em resultado disso, a documentação foi submetida apenas pela Conquistapadrão, a empresa a que pertence a marca Grupo Chiado. A Conquistapadrão — Produções Unipessoal Lda. foi criada em 2012 por Zahir Assanali, produtor musical por trás de projetos como a boy band Excesso e, mais recentemente, o cantor Anselmo Ralph. Tem como gerente Patrícia Almada Henriques, que aparece na lista de contactos do site da Chiado como responsável pela comunicação e marketing da promotora de eventos. A Conquistapadrão é apenas uma de várias empresas ligadas ao mundo do espetáculo criadas por Assanali ao longo dos anos. Pelo menos duas, a N.Z. — Promoção de Espectáculos e Representações, S.A., associada aos Excesso, e a Jorge & Assanali — Promoção de Espectáculos, Lda., criada em conjunto com Jorge Carvalho, que renunciou à gerência em 2007, entraram em insolvência. Esta última fechou portas em 2021, aparecendo na lista de devedores das Finanças com uma dívida de 10 mil a 50 mil euros.
Uma vez que a documentação submetida não incluía a Storm Productions, esta ficou fora do processo de contratação, apesar de ter ficado combinado nas reuniões com a autarquia que as duas empresas se candidatariam em consórcio. Questionado na altura pelo executivo sobre a submissão da documentação, o Grupo Chiado esclareceu que, “tendo em conta o prazo apertado para submeterem a proposta e perante as dificuldades da plataforma [através da qual tinham de o fazer], submeteram a proposta isoladamente”. No entanto, foi garantido que o festival seria feito “em parceria” com a Storm, de acordo com o relatório elaborado por esta promotora. O processo foi rapidamente validado pelo departamento de compras da Câmara de Almada e, sem concorrência que lhe fizesse frente, o Grupo Chiado venceu o concurso público para a organização da edição de 2019 do festival o Sol da Caparica.
O contrato foi assinado a 28 de março de 2019. O documento, consultado pelo Observador, especifica que a promotora de Zahir Assanali ficava responsável pelos “serviços de direção artística, produção e programação e acompanhamento de eventos de animação turístico-cultural”, ou seja, por tudo o que era necessário para a realização do evento. O encargo era de 86.100 euros, o que, segundo um comunicado emitido na altura pela Câmara Municipal de Almada, permitia “uma poupança significativa de fundos públicos” que seriam posteriormente “canalizados para investimento noutras áreas estratégicas, sociais, culturais e turísticas”. Apesar de o contrato não referir o nome da produtora de Ana Braamcamp e Francisco Ribeiro, a nota de imprensa informava que a 6.ª edição do Sol da Caparica seria produzida pelo Grupo Chiado em parceria com a Storm.
Esclarecida a questão de quem organizava o quê, deu-se início às reuniões de preparação do evento, que incluíram, numa primeira fase, a delegação de funções. “Uma vez que o concurso foi feito em nome do Grupo Chiado, o que foi inicialmente acordado entre nós e os mesmos perdeu sentido”, diz a Storm. Com a receita “totalmente controlada” pela Chiado, a Storm ficou responsável pelas questões técnicas e logísticas, escolha do programa (juntamente com a Chiado) e por dar “apoio à orçamentação logística do evento”. As restantes áreas, como os patrocínios, bilheteira, comunicação e contratação de artistas, entre outros, ficaram a cargo do Grupo Chiado. Foi ainda nesta fase inicial que começaram as primeiras divergências entre as duas empresas. Segundo o relatório, o Grupo Chiado procurou controlar a escolha de artistas e, apesar de ter ficado responsável pelas contratações, pediu um adiantamento de 100 mil euros à Storm para fazer os pagamentos.
Por essa altura, começava a ficar claro para a produtora com sede em Cascais que “o Grupo Chiado não pretendia que fossemos sócios deles neste evento”. “Iriam fazer de tudo para sairmos da sociedade, ficando eles sozinhos com a produção do ‘Sol da Caparica’” — o que, na opinião da Storm, se confirmou após o envio de uma mensagem áudio por Assanali, na qual o diretor-executivo do Grupo Chiado “dizia que não existiam condições” para continuar com a parceria “e que o evento ou era deles ou era” da Storm. Foi apenas por insistência da Câmara Municipal de Almada que a produtora continuou ligada ao projeto, na condição de que o pagamento dos serviços prestados pela empresa não ficasse dependente da Conquistapadrão, mas sim da autarquia, e que a lotação do espaço e a segurança fossem tidas em conta, o que acabou por não acontecer.
O relatório elaborado pela Storm Productions descreve as várias decisões tomadas nas diferentes áreas de gestão do festivalna edição de 2019, como a segurança, a montagem de estruturas ou a credenciação, revelando o que diz ser uma tentativa constante por parte do Grupo Chiado de tentar cortar nos custos. As informações são sustentadas por reproduções de trocas de emails e mensagens (entre as duas empresas, mas também entre organismos exteriores) e fotografias. Em relação à segurança, por exemplo, o documento refere que a promotora insistiu na contratação de uma empresa que “apresentasse um orçamento mais baixo, mas que nunca tinha feito aquele evento”. Tanto a câmara como a Storm fizeram pressão para que fosse a empresa de sempre, a Prossegur. A Chiado acabou por aceder, pedindo, no entanto, que o número de efetivos presentes fosse reduzido e, em consequência disso, a verba a pagar. Segundo o mesmo documento, a decisão do Grupo Chiado resultou numa diminuição de 15 seguranças em relação à edição anterior. O número de casas de banho também foi reduzido, com a justificação de que “eles [Grupo Chiado] tinham de recuperar o investimento”.
Os cortes na segurança provocaram vários incidentes na edição de 2019, nomeadamente a sobrelotação do espaço, gerada pela fraca qualidade das pulseiras, que eram facilmente passadas de uma para outra pessoa, e pela invasão do recinto a partir da “vedação por trás dos campos de ténis e junto ao anfiteatro”, mas também porque foram colocados à venda demasiados bilhetes. Surgiram relatos de pessoas esmagadas na zona de restauração, de ataques de pânico e desmaios. A Storm estimou que no terceiro dia do festival estiveram no recinto mais de 35 mil pessoas, quando o espaço tinha capacidade para menos (25 mil, de acordo com o plano aprovado pela Proteção Civil Municipal). Segundo a mesma promotora, a área junto ao palco principal tinha lotação máxima de 17 mil pessoas, o que significa que, no dia com mais visitantes, havia 18 mil espectadores que não eram capazes de chegar ao palco. Foi, no entanto, o palco secundário, o Fullest, que gerou maiores preocupações — no terceiro dia do evento, a enchente era tal que “até as plataformas para as pessoas de mobilidade reduzida foram invadidas”. Com a ajuda dos seguranças da Prossegur, e também de Rui Campos Silva, a Storm deslocou as vedações para criar mais espaço.
Além de problemas relacionados com a postura do Grupo Chiado e com questões de organização, o pormenorizado relatório da Storm relativo a 2019, com mais de 60 páginas, relata alguns episódios bizarros, a maioria envolvendo Rui Campos Silva, que acompanhou de perto a montagem do festival, participando inclusivamente nas reuniões com o executivo camarário, confirmou fonte próxima do processo.
Conhecido pelos negócios na área da restauração, Rui Campos Silva, que é dono do restaurante American Music Burguer, no bairro de Alvalade, esteve, segundo o próprio, sempre ligado ao mundo da música, trabalhando como DJ e também na rádio. “Trabalhei dez anos na rádio”, em estações como a Antena 3, disse ao Observador. “Escrevi para a Blitz.” Além da empresa que detém o American Music Burguer, Campos Silva é sócio-gerente da Naturetrophy, de prestação de serviços médicos de clínica especializada e clínica geral em ambulatório, criada em dezembro de 2021, com sede em Alvalade. Sportinguista, integrou em 2018 a lista de candidatura à presidência do clube de José Dias Ferreira como vogal para os Sócios e Expansão. Em 2021, fez parte das listas do Chega à Câmara Municipal de Lisboa, ocupando a posição número 43 entre os 51 candidatos efetivos, segundo as listas definitivamente admitidas para a Assembleia Municipal de Lisboa.
Oiça algumas das ideias para os Sócios, na intervenção de Rui Campos Silva, Vogal para os Sócios e Expansão.
— Somos Todos Sporting - Dias Ferreira 2018 (@SomostodosSCP) August 29, 2018
Somos Todos Sporting - Dias Ferreira 2018 - Lista F#somostodossporting #diasferreira2018 #sportingclubedeportugal#eleicoessporting2018 pic.twitter.com/o0mlopJVxU
Fonte próxima do Grupo Chiado revelou ao Observador que Zahir Assanali começou a aparecer acompanhado por Rui Campos Silva quando a promotora representava o cantor Anselmo Ralph. Campos Silva era visto com regularidade na zona dos bastidores dos eventos organizados por Assanali e surge no final de um vídeo partilhado por Ralph em setembro de 2016, no Facebook. “Havia uma ligação de amizade”, disse a mesma fonte. Em 2019, envolveu-se na organização do Sol da Caparica, de acordo com o relatório da Storm, e também com duas fontes próximas do processo ouvidas pelo Observador. Essa colaboração ter-se-á estendido à edição mais recente do festival, embora tanto Rui Campos Silva como Zahir Assanali tenham negado em declarações ao Observador algum tipo de associação. Segundo os dois empresários, o dono do American Music Burguer foi contratado pelo Grupo Chiado apenas para fazer a curadoria do palco de música eletrónica, uma das novidades da edição de 2022. Uma das fontes garantiu, no entanto, que Campos Silva tomava decisões importantes e que “trata de tudo o que tem a ver com restauração”.
O primeiro incidente relatado pela Storm diz respeito às estadias. Depois de várias discussões por causa do orçamento, e de o Grupo Chiado ter deixado claro que não ia precisar de alojamento, ficou combinado que a equipa da produtora de Ana Braamcamp e Francisco Ribeiro ficaria instalada num hostel perto do recinto do Sol da Caparica a partir de 5 de agosto, dez dias antes do início do festival, que, em 2019, decorreu entre os dias 15 e 18 desse mês. De acordo com o relato da Storm, no dia 9, Rui Campos Silva, “enquanto estava a equipa da Storm no recinto a trabalhar”, dirigiu-se ao hostel, apresentou-se como “‘CEO’ do Grupo Chiado” (o diretor-executivo é Zahir Assanali) e pediu a uma das responsáveis pelo espaço para “ver os quartos e quem estava nos mesmos”. A responsável “disse que não podia mostrar os quartos ocupados, porque isso não era permitido, mas que poderia mostrar os quartos que estavam livres”.
“O sr. Rui foi então visitar os quartos que ainda não estavam ocupados (grande parte das equipas só iam entrar no dia 12) e quando vê o quarto da Ana Braamcamp da Storm diz que aquele quarto ia ficar para ele e diz para ela [a responsável] colocar a Ana noutro sítio qualquer. Mandou também anular a dormida de alguns técnicos e pediu para colocar mais pessoas do Grupo Chiado. (…) Ao contrário do que tinha sido dito pelo sr. Rui, o Grupo Chiado acabou por ficar com quatro quartos no hostel, dois duplos e duas camaratas com quatro camas”, relatou a Storm.
Em relação à zona de backstage e camarins, o Grupo Chiado declarou desde o início que era necessário cortar nos custos e “em todos os pedidos” dos artistas, fornecendo, por exemplo, copos e talheres de plástico em vez de copos de vidro e pratos de loiça — e recusando alguns pedidos de comida, como a sopa e as pizzas para Anselmo Ralph, e reduzindo as 20 peças de sushi pedidas por Ludmilla para apenas duas e, depois, para nenhuma, após Zahir Assanali ter dito “que para colocar essa quantidade mais valia não colocar nada”, segundo o relatório. No caso dos D.A.M.A., que atuaram no primeiro dia do festival, 15 de agosto de 2019, o sushi e molho de soja que pediram acabou por ser entregue no camarim depois de a equipa da Storm ter conseguido, após “muita pressão”, que fosse cedido pela tenda VIP. A sopa de legumes de Mayra Andrade, que tinha sido “cancelada” pelo Grupo Chiado, teve de ser requerida diretamente na tenda que fornecia os almoços e jantares depois de a artista ter insistido no pedido. A Storm descreveu ainda que, “no dia em que atuou Anselmo Ralph, surgiram reclamações de falta de comida no camarim do artista”. “O catering solicitado foi colocado no camarim antes da chegada do artista e o mesmo fechado à chave, tendo a chave sido entregue ao seu road manager” que, quando chegou ao recinto, se queixou de que faltava comida. A Storm veio a descobrir, segundo o relatório, que “pessoas ligadas ao Grupo Chiado” tinham estado “a tarde toda a servirem-se da comida que estava” no camarim.
Mas talvez o incidente mais estranho contado pela promotora tenha sido o que decorreu no último dia do festival. Eram 15h30 quando “uma pessoa que estava a trabalhar para o Grupo Chiado” confidenciou à Storm que tinha ouvido dizer que a equipa ia ser dispensada. A mesma informação foi transmitida por volta das 17h por um outro membro do Grupo Chiado, sendo mais tarde confirmada pelo responsável financeiro da promotora de Zahir Assanali, Luís Moreira. Os responsáveis da Storm disseram que só abandonariam o recinto depois de receberem um email confirmando a decisão, o que acabou por acontecer pelas 18h12, pouco antes da abertura das portas do festival. Na mensagem assinada por Patrícia Almeida, gerente da Conquistapadrão, enviada para Ana Braamcamp e Francisco Ribeiro com o conhecimento de Zahir Assanali e Rui Campos Silva, reproduzida no relatório enviado à Câmara Municipal de Almada, foi referido que a Grupo Chiado não aceitava “os orçamentos enviados” para o último dia do evento, “não sendo necessária a presença de qualquer elemento afeto” à Storm no recinto.
Foram dados cinco minutos à equipa para sair do local. “Foi no momento em que estávamos a guardar o nosso material que se passou um dos acontecimentos mais graves”, relatou a Storm. “Um dos elementos da nossa equipa estava muito revoltado pela forma como estávamos a ser expulsos do evento e fez alguns comentários sobre o que estava a acontecer. Alguns elementos do Grupo Chiado, nomeadamente o sr. Rui [Campos Silva], fizeram questão de ir para dentro do nosso espaço de produção para controlarem o que estávamos a levar, numa atitude que não ajudou a pacificar a nossa saída.” Enervado com a situação, o membro da equipa da Storm começou a queixar-se da atitude do Grupo Chiado, com recurso a uma linguagem ofensiva. Enquanto isso, segundo o relatório, Rui Campos Silva, pegando no telemóvel, informou a equipa que ia ligar para um membro da equipa de kickboxing do Sporting e que, “mal ele chegasse”, a Storm ia ver o que lhes ia acontecer. “Saiu do nosso camarim de produção e foi para o camarim do Grupo Chiado, a apontar o dedo para as pessoas da nossa equipa com ameaças.”
Francisco Ribeiro tentou apelar à calma, pedindo desculpa pelo comportamento do membro da sua equipa, enquanto Rui Campos Silva lhe garantia que “nunca mais” iam “trabalhar na vida”. “Vou acabar com vocês e com a vossa empresa. A vossa vida acabou. A mim ninguém me chama nomes”, citou a Storm no relatório. A segurança foi chamada para expulsar a produtora, que acabou por sair pacificamente e abandonar a Costa da Caparica. Posteriormente, a equipa reuniu-se num restaurante para jantar. Foi durante o convívio que Ribeiro recebeu uma chamada de Campos Silva, que lhe pediu para falar com o colaborador que se tinha queixado nos camarins. O promotor, que tinha colocado o telemóvel em alta voz para que a conversa pudesse ser escutada por toda a equipa, explicou que a Storm já não se encontrava na Caparica e recusou-se a passar o telemóvel ao colaborador, apesar da insistência de Campos Silva. “Nesta altura, ouvimos uma voz de outra pessoa que pegou no telemóvel do Rui e disse ‘diz lá ao teu amigo que está fod***, que o vou partir todo, que a vida dele acabou, vamos encontrá-lo onde estiver’.” A chamada foi desligada “de repente”.
Os responsáveis pela produtora perguntaram ao colaborador se queria apresentar queixa, mas este respondeu que preferia ir “para casa descansar”. A Storm Productions concluiu o relatório dizendo que, após a expulsão do recinto, ficou “com a convicção que mais tarde ou mais cedo, o Grupo Chiado teria de encontrar um motivo para criar um conflito com a Storm, para poder argumentar à Câmara Municipal de Almada, que não poderiam continuar a trabalhar” com eles, explicando que o “principal objetivo” na redação do documento e respetivo envio à câmara passava por “repor a verdade dos factos e não entrar em ‘guerra’ com o Grupo Chiado, nem com ninguém da CM Almada”.
Confrontado pelo Observador com o relatório elaborado pela Storm Productions em 2019, Zahir Assanali disse não ter conhecimento do documento ou de uma produtora com esse nome. “Subcontratamos várias empresas, artistas, roadies… Não me lembro. Desconheço a insatisfação”, declarou. Rui Campos Silva, por outro lado, explicou que “a Storm foi uma empresa contratada para fazer o que é normal, montar baias”. Já a Câmara Municipal de Almada, que nunca deu resposta ao relatório, disse que “não se pronuncia, naturalmente, sobre querelas entre parceiros, às quais é alheia”, ignorando assim as questões colocadas pelo Observador sobre os problemas organizacionais, de segurança e funcionamento relatados do documento e que se repetiram em 2022.
Apesar dos problemas relacionados com a produção da edição de 2019 do festival, em 2020 a Câmara Municipal de Almada firmou um novo contrato com a Conquistapadrão, por ajuste direto, para “aquisição de serviços de direção artística, produção, programação e acompanhamento de eventos de animação turística-cultural das edições 2020 e 2021 do festival ‘O Sol da Caparica’”. As condições do contrato assinado a 18 de março de 2020 eram essencialmente as mesmas do anterior mas o valor do encargo era muito inferior, mesmo dizendo respeito a dois anos — 14.760 euros, que seriam repartidos pelas duas edições (7.380 euros em 2020 e o mesmo valor em 2021). Isto significava que, por cada ano, a Conquistapadrão receberia menos 78.720 euros do que pela edição de 2019. O Observador questionou a Câmara Municipal de Almada sobre a diferença de valores, mas não obteve qualquer esclarecimento. Em vez disso, obteve uma resposta genérica, que não abordava nenhum dos pontos das perguntas enviadas. A informação constante do contrato não é suficiente para esclarecer a diminuição abrupta e, como o evento acabou por não se realizar nesses dois anos por causa das restrições impostas por causa da Covid-19, não é possível saber em que é que se concretizaria essa descida de valores.
Uma vez que esse contrato dizia apenas respeito às edições de 2020 e 2021, a câmara municipal terá firmado um novo acordo com a Conquistapadrão. O documento não se encontra disponível na base de contratos públicos online. O Observador questionou a autarquia sobre esse contrato mas, mais uma vez, não obteve qualquer resposta. Foi, no entanto, possível confirmar que os artistas contratados foram custeados pela Conquistapadrão, após contacto com uma das empresas de agenciamento presentes no festival. Sobre a forma como O Sol da Caparica é organizado desde 2019, a câmara limitou-se a dizer que “o modelo de produção” foi alterado nesse ano, “deixando a CMA de ser produtora do evento, limitando a um apoio financeiro quase simbólico ao produtor e a apoio logístico”. No caso da edição de 2022, o “apoio logístico” terá ultrapassado os 150 mil euros, o valor dos seis contratos disponíveis online referentes a serviços de limpeza, locação de espaço para estacionamento e contentores, aluguer de stand e aquisição de brindes, firmados através de diferentes procedimentos (concurso público, consulta prévia e ajuste direto).
O número é muito superior ao “apoio financeiro quase simbólico” fornecido ao Grupo Chiado em 2019 e ao previsto pelo contrato das edições de 2020 e 2021. O Observador interrogou também a Câmara Municipal de Almada sobre esta questão, mas não foi possível obter uma resposta a tempo da publicação deste artigo.
Edição de 2022: uma catástrofe antecipada?
No festival deste ano, a atuação de Miguel Ângelo começou com três horas de atraso. A entrada em palco estava prevista para as 21h20, mas só aconteceu às 00h17, segundo o relato do músico no Instagram. Além disso, os problemas técnicos levaram a que Miguel Ângelo não conseguisse tocar o alinhamento previsto (foram apenas duas canções e meia) e que The Legendary Tigerman, que devia encerrar o palco secundário no primeiro dia do Sol da Caparica de 2022, não chegasse a atuar devido ao “apagão” que interrompeu o concerto do vocalista dos Delfins. O Observador conseguiu confirmar que houve vários problemas técnicos no palco Free Now durante o primeiro dia do evento e que a equipa técnica não conseguiu perceber o que levou à falha elétrica. Estes foram resolvidos no dia seguinte, 12 de agosto, que decorreu sem dificuldades.
Paulo Furtado, mais conhecido pelo nome artístico The Legendary Tigerman, respondeu à publicação de Miguel Ângelo no Instagram, lamentando também a “falta de comunicação” e a “situação profundamente embaraçante em 2022” e sugerindo que a organização do evento devia um pedido de desculpa aos artistas e “especialmente” ao público presente. O Observador tentou contactar Paulo Furtado para tentar perceber melhor o que levou ao cancelamento da atuação da noite de 11 de agosto, quinta-feira, mas o músico não se mostrou disponível para prestar mais esclarecimentos além dos divulgados nas redes sociais no dia 14 pelos seus representantes. Na mensagem, emitida face à “ausência de comunicados ou justificações oficiais da organização e para que fique definitivamente claro para todas as pessoas” o que aconteceu, é manifestada “tristeza e descontentamento pelas circunstâncias que levaram ao cancelamento” do espetáculo, garantindo que tudo foi feito para “ultrapassar as várias dificuldades técnicas e logísticas que causaram um atraso de três horas nas atuações”. “Sem qualquer responsabilidade pelo sucedido, pedimos ainda assim as nossas maiores desculpas ao público, em particular àqueles que se deslocaram ao festival pelo The Legendary Tigerman”, refere o comunicado.
O segundo dia do Sol da Caparica de 2022, a 12 de agosto, terá decorrido sem incidentes, mas o mesmo não se pode dizer do terceiro. Os Karetus, que tocaram nesse dia, 13 de agosto, no palco de música eletrónica, o Unlock Energy, emitiram um comunicado no dia 14 tecendo duras críticas à organização e dando conta de que também eles não tinham conseguido terminar o concerto. “Ao longo dos últimos dias solicitámos várias vezes a alteração do local do espetáculo, por sentirmos que o palco onde atuámos não reunia as condições técnicas, de segurança, de logística e de dimensão de forma a que pudéssemos entregar o espetáculo que todos esperavam”, podia ler-se na nota publicada no Instagram, entretanto apagada.
As preocupações e apelos dos Karetus terão sido justificados, uma vez que decorreram vários incidentes relacionados com segurança durante o concerto do grupo de música eletrónica, de acordo com o relato dos próprios e de espectadores presentes. Em entrevista à NiT, Carlos Silva, um dos membros do grupo, relatou que ainda não tinham chegado a meio da atuação quando as baias de segurança em frente ao palco caíram. Ao repararem no que tinha acontecido, os Karetus pararam imediatamente a música. Após verificarem que estava tudo bem, retomaram o concerto, que foi interrompido pouco depois após um membro do público abrir um extintor, o que provocou mal estar entre vários espectadores. O caos instalou-se. Fonte próxima do grupo contou ao Observador que as pessoas “começaram a fugir para todo o lado” porque estavam a “sufocar” com o fumo libertado. “Houve pessoas que desmaiaram, que foram arrastadas. Vi pessoas agarradas umas às outras para não serem arrastadas”, disse a fonte, que considerou que a segurança junto ao palco “era mínima para o número de pessoas” presentes. Também o palco não lhe pareceu seguro. “Abanava por todos os lados. O PA abanava. A estrutura abanava”, descreveu.
Carlos Silva estimou que estariam umas 15 mil pessoas no espaço, que daria para cerca de duas mil. “As condições ideais não estavam asseguradas”, afirmou à NiT, acrescentando que os Karetus ainda fizeram “um último esforço”, mas sentiram “que aquilo não estava nada bem”. A fonte ouvida pelo Observador calculou que, ao todo, os Karetus terão tocado cerca de 20 minutos, com duas ou três paragens pelo meio. “Não foi a organização que decidiu parar. Fomos nós. Decidimos mesmo que não havia condições”, afirmou Carlos Silva ao mesmo órgão de comunicação, relatando uma versão dos factos que contraria a veiculada por Rui Campos Silva, que garante que foi ele, enquanto curador do palco eletrónico, que deu a ordem para que parassem a música. Foram vários os fãs que, em resposta à publicação dos Karetus, se mostraram descontentes, relatando como foram “atropelados” pela multidão em pânico ou como perderam os sentidos após o extintor ter sido aberto.
No último dia do festival, segunda-feira, 15 de agosto, o palco Unlock Energy foi encerrado, porque a plateia cedeu, disse ao Observador uma outra fonte, ligada à produção do evento. Os Karetus foram os últimos a pisar o palco montado numa tenda. Também na segunda-feira, um novo incidente levou a uma nova onda de críticas dirigida aos promotores do Sol da Caparica. Perto do final do concerto, que foi transmitido pela RTP, Os Quatro e Meia, que tocaram no palco principal, o Super Bock, dirigiram-se ao público para denunciarem a forma como “vários músicos” e “muito do público” foi tratado “durante este festival”. “Esta noite, estamos aqui em cima do palco por vocês, pelos que pagaram bilhete para nos virem ver. E pelos que vieram aqui para ver os outros também. Porque se fosse pela falta de respeito com que vários músicos foram tratados e muita da plateia, muito do público, foi tratado, não vínhamos cá nem mais uma vez com esta organização. Ponto. Acabou-se o politicamente correto. Não brincam mais connosco”, declarou Tiago Nogueira.
A organização não terá gostado dos comentários do vocalista. Após a atuação, membros da promotora Grupo Chiado dirigiram-se ao camarim do grupo, o que levou a que os músicos tivessem de ser acompanhados à saída pela equipa da RTP, com a qual tinham uma entrevista agendada. O incidente foi confirmado ao Observador por um dos managers da banda, Pedro Barbosa, que disse ter “a consciência de que os ânimos estavam exaltados” e que, por isso, a equipa dos Quatro e Meia relativizava o sucedido. “O ambiente que criámos não foi o melhor e o mais agradável e foi tenso”, afirmou. “Não achamos que haja algum tipo de animosidade contra nós.” Questionado sobre o que levou aos comentários de Tiago Nogueira durante o concerto, o manager destacou a “falta de competência” da organização. “É como quando vai a um restaurante e demora imenso tempo a ser atendido. Pede a comida, não vem o que pediu; a conta demora a chegar e estava errada… Temos a certeza que não há qualquer tipo de má intenção da parte da organização.” Na opinião de Pedro Barbosa, há, sim, “falta de competência” para conseguir dar a atenção e informação necessária às bandas e para garantir que os horários são cumpridos.
“É normal recebermos toda a informação pelo menos um mês antes [de um espetáculo]. Três, dois dias antes, não tínhamos nada. Ninguém sabia o que ia acontecer. Depois de tanta coisa, no próprio dia, também não correu bem. Houve várias alterações de horário, o que num festival não é nada normal, a não ser que aconteça realmente alguma coisa relevante.” Os sucessivos atrasos fizeram com que Os Quatro e Meia tocassem mais de uma hora depois do previsto, o que levou a que a banda, que é até “muito discreta”, lamentasse publicamente o sucedido. “Na nossa opinião, de banda e de agência, ultrapassou os limites do razoável. Com a liberdade de expressão que nos é concedida, o Tiago achou que era o momento de dizer umas palavras”, disse Pedro Barbosa, salientando que era “quase impossível, para não dizer impossível, viabilizar os tempos que nos propuseram viabilizar”. “Ficámos muito defraudados com esta organização”, confessou o manager, garantindo que, “com esta organização”, o grupo não voltará ao Sol da Caparica.
Os Quatro e Meia não terão sido os únicos a sentirem-se “defraudados”. Nos dias que se seguiram ao festival, o Portal da Queixa, uma plataforma de reclamação online que pretende facilitar o contacto entre empresas e consumidores, recebeu 26 reclamações relacionadas com O Sol da Caparica, das quais 18 foram endereçadas ao promotor do evento, o Grupo Chiado, quatro à autarquia e quatro à empresa de segurança, a PSG. A maioria das queixas prendiam-se com problemas com a organização (longas filas ou falta de acessos a pessoas com deficiência) e alterações no cartaz. No caso das reclamações dirigidas à PSG, descreviam comportamentos abusivos e agressivos por parte dos seguranças e lamentavam a falta de profissionalismo da empresa contratada, enquanto as que visaram a Câmara Municipal de Almada dizem respeito a incómodos causados junto dos moradores. Uma utilizadora queixou-se do barulho, dizendo que parecia que tinha “uma discoteca dentro do quarto” e que as janelas abanavam. Alguns moradores terão contactado diretamente a câmara municipal para se queixarem não só do barulho fora de horas, mas também do estacionamento abusivo, de altercações na via pública e do lixo gerado por quem frequentou o festival, realizado no centro da Costa da Caparica.
As queixas publicadas no portal ajudam a perceber o caos que se viveu no Sol da Caparica. Uma outra queixosa, que pediu a restituição do dinheiro dos bilhetes, falou das longas filas de duas horas, da incapacidade dos voluntários de orientarem o público, deixando passar à frente pessoas que tinham chegado depois, e dos atrasos de até três horas nos concertos do primeiro e restantes dias; o cancelamento de algumas atuações, “a grave falta de segurança no concerto dos Karetus” e o pânico dos espectadores na sequência da abertura do extintor, que levou a que alguns concluíssem que havia “fogo”; e os problemas com a segurança à entrada. “E muito mais (…) havia a relatar deste festival”, concluiu a utilizadora. Uma outra utilizadora, referindo-se às alterações de última hora dos horários dos espetáculos, lamentou que estas nunca tivessem sido comunicadas pela organização.
Ao contrário do Portal da Queixa, a DECO confirmou ao Observador não ter “registo de contactos ou reclamações relativas ao festival O Sol da Caparica”. A Autoridade de Saúde Alimentar e Económica (ASAE), no âmbito de uma “ação proativa” que se inseriu na “operação de fiscalização dos principais festivais e eventos deste verão”, instaurou “quatro processos contraordenacionais por incumprimento de requisitos gerais de higiene” e por “facultar, vender ou colocar à disposição bebidas alcoólicas, em locais públicos, a menores”, informou fonte oficial.
Questionada sobre os acontecimentos no Sol da Caparica, a Câmara Municipal de Almada esclareceu que está “a efetuar uma avaliação das questões técnicas que estão dentro da esfera de competências e responsabilidades do município, no sentido de identificar pontos positivos e negativos da 7.ª edição do festival”: “Este é um procedimento habitual, quer em todas as edições do festival em questão, quer noutros eventos nos quais a CMA é parceira ou organizadora. É um trabalho que tem como objetivo último a melhoria contínua neste tipo de eventos e que poderá resultar, caso seja essa a conclusão, na implementação de medidas corretivas para as próximas edições, tendo presente o objetivo de potenciar o evento como um melhor fator de desenvolvimento económico e de promoção turística do concelho”.
Congratulando-se por não terem ocorrido “incidentes ao nível da segurança”, o que foi confirmado ao Observador por fonte oficial da Proteção Civil Municipal de Almada, apesar das situações relatadas pelos Karetus e por quem assistiu ao concerto, a autarquia garantiu que “houve melhorias visíveis” na edição deste ano do Sol da Caparica. “A área do recinto foi alargada e a lotação ajustada à dimensão do espaço, o acesso do público foi melhorado com a criação de mais uma porta de entrada (três portas), a área da restauração foi redesenhada permitindo uma maior dispersão dos operadores e aumentando o espaço para mesas de apoio.” As reclamações no Portal da Queixa referiam longas filas para as casas de banho mas, ao Observador, a Câmara Municipal de Almada garantiu que “foi implantado um reforço significativo do número de sanitários públicos distribuídos pelo recinto”.
Sobre as queixas dos artistas, a câmara disse que “naturalmente não aceita nem aceitará nunca qualquer comportamento menos próprio em relação aos criadores, por estes serem a razão de ser do festival e da cada vez maior adesão do público”, destacando, no entanto, que a contratação e gestão de artistas não é da sua competência. Essa questão poderá já estar resolvida. Após o festival, Zahir Assanali publicou uma imagem nas stories do Instagram com as palavras “Obrigado. Até 2023”, sugerindo que o Grupo Chiado será responsável pela próxima edição do Sol da Caparica. Questionado sobre se o contrato para a edição de 2023 já está firmado, Assanali disse ao Observador que não podia divulgar esse tipo de informação. Também a câmara se escusou a responder, reafirmando apenas que “o seu objetivo, em conjunto com os promotores e patrocinadores do festival, passa por corrigir falhas e planear para 2023 a melhor edição de sempre”.
Partidos da oposição querem explicações. Profissionais de espetáculo pedem inquérito
Na sequência dos incidentes no Sol da Caparica, os partidos da oposição em Almada avançaram com requerimentos pedindo esclarecimentos sobre o que aconteceu no fim de semana de 13 e 14 de agosto no Parque Urbano da Costa da Caparica e informações sobre o atual caderno de encargos. Até ao momento, esses requerimentos não foram respondidos, com os diferentes partidos a lamentarem o atraso na resposta por parte do executivo camarário. A câmara municipal garantiu que “todos os requerimentos de qualquer força política são respondidos seja qual a temática”, mas tal ainda não aconteceu. O tema deverá ser discutido na próxima sessão da Assembleia Municipal de Almada, marcada para o dia 15 de setembro, em local ainda por designar (cada reunião acontece numa freguesia diferente do concelho).
Contactado pelo Observador, António Pedro Maco, deputado municipal do CDS-PP, começou por dizer que, assim que surgiram as primeiras notícias, foram imediatamente endereçados ao executivo municipal “dois requerimentos a pedir o caderno de encargos para ser esclarecido quais os modelos de prestação de serviços” da promotora contratada. O CDS-PP pediu também o relatório de segurança da edição de 2019. O deputado municipal do Chega, Nuno Mendes, defendeu a importância de identificar e reportar todas as situações relacionadas com o festival para que estas possam “ser melhoradas”. “Somos da opinião de que O Sol da Caparica poderá ser uma mais-valia para a cidade de Almada, e em especial para a freguesia da Costa de Caparica, mas os moldes em que este ano foi realizado não nos dignificaram”, declarou, acrescentando que também o Grupo Municipal do Chega endereçou uma série de questões ao executivo sobre o evento musical que, à semelhança do CDS-PP e dos outros partidos, ainda não foram respondidas. Estas incluem pedidos de informação sobre a presença de forças policiais no festival, o contributo dado pelo município, os pareceres pedidos às entidades “para a boa realização do festival” e o caderno de encargos.
Ao Observador, o PSD de Almada lembrou que tem vindo a pedir à câmara municipal que crie um caderno de encargos mais exigente para O Sol da Caparica, que deve ser “uma bandeira de promoção do concelho e da Costa da Caparica”, gerando “mais valias que devem ser devolvidas para investimento no concelho”. “Sendo uma marca que foi criada pela câmara, uma parte dos lucros deve ser investida na Costa da Caparica para melhorar as condições das pessoas que lá vivem e de quem vai ao festival”, defendeu Nuno Matias, deputado municipal e vereador dos Espaços Urbanos e Turismo, explicando que “hoje, na prática, é o promotor que assume a maioria esmagadora dos custos. A câmara passou [a organização do evento] para um promotor, que terá lucros. É importante que uma parte desses lucros sejam investidos na Costa da Caparica”.
Sem querer fazer “juízos de valor” sobre o que se passou, o social-democrata concedeu que o assunto “parece delicado” devido ao “conjunto de críticas e sinalização de situações menos positivas”. “A câmara deve avaliar se deve merecer outras intervenções”, declarou, frisando que é da responsabilidade do executivo que tudo seja “escrutinado e avaliado”. “É isso que o PSD vai solicitar”, disse, acrescentando que é importante “que se prepare já o futuro” e que se trabalhe para tonar o Sol da Caparica num festival “exemplar e que também seja uma mais valia para Almada e a sua população”. “Aquilo que defendemos é que devemos, tão rapidamente quanto possível, abrir um novo processo de concurso para outros promotores poderem submeter outros cadernos”, afirmou Nuno Matias ao Observador, declarando que o PSD de Almada vai “solicitar que os serviços se possam pronunciar sobre o que se passou, se houve ou não incumprimentos por parte do promotor e, tendo havido, avaliar se deve haver outras medidas ou tomadas de posição”.
Num comunicado emitido a 20 de agosto, a Célula dos Trabalhadores da Cultura de Almada do PCP classificou como “inadmissível o desrespeito pelos artistas, técnicos e público do festival Sol da Caparica demonstrado pela Câmara Municipal de Almada, a promotora do evento, e pela empresa responsável a quem a câmara, de presidência PS, entregou a produção”. Defendendo que o “silêncio” da autarquia sobre o sucedido a coloca numa “posição cúmplice com as ignóbeis respostas da empresa por si contratada”, que respondeu às críticas de artistas e público promovendo “um ambiente de intimidação inaceitável, com declarações insultuosas, inapropriadas e desrespeitosas”, o PCP declarou que “todas estas situações desprestigiam o festival Sol da Caparica e o município de Almada”. Lamentando ainda o aumento do preço do passe geral do festival e “a decisão de retirar da programação” o dia dedicado à infância “a um preço igualmente acessível aos pais”, os trabalhadores do PCP exigiram que a autarquia “assuma as suas responsabilidades, corrija o rumo mercantilista que imprimiu ao Sol da Caparica, para que este volte a ser um espaço em que artistas, técnicos e público voltem a sentir-se valorizados e não desrespeitados ou até insultados”.
Também o Bloco de Esquerda dirigiu ao executivo um conjunto de perguntas relacionadas com o evento, questionando, por exemplo, “porque é que o procedimento de concurso público, e correspondentes peças integrantes, para a produção do festival O Sol da Caparica, concluído em 2019, não está nas plataformas legalmente previstas”, e como é que a câmara municipal planeia responder à solicitação da Associação Portuguesa de Profissionais dos Espetáculos e Eventos (APPEE) para a abertura de um inquérito.
A APPEE publicou, a 20 de agosto, uma carta aberta assinada pela sua direção pedindo à tutela e à autarquia a abertura de um inquérito para “esclarecer devidamente a opinião pública relativamente aos lamentáveis acontecimentos ocorridos durante a realização do festival Sol da Caparica”. A APPEE considera que está em causa “a integridade e a credibilidade, não apenas dos profissionais e artistas que foram contratados pelas entidades promotoras desse evento para a sua concretização, mas sobretudo de toda uma classe de trabalhadores no seu geral”. “Somente desta forma será possível obtermos a informação essencial para a defesa da integridade destes profissionais, cuja credibilidade está obviamente a ser colocada em risco, pelo que naturalmente se sentem envergonhados e desconsiderados”, declarou a APPEE, que solicitou “ainda esclarecimentos relativamente ao cumprimento das disposições legais previstas no âmbito do recente Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, que prevê obrigações específicas para o cumprimento da Lei no que concerne à realização de eventos”.
Até ao momento, a APPEE não recebeu qualquer resposta à carta publicada. Fonte oficial da associação disse ao Observador que, realisticamente, não é esperado qualquer contacto, lembrando que o Ministério da Cultura “está em falta com as diferentes associações do setor”, uma vez que ainda não foi realizada nenhuma das reuniões previstas pelo Estatuto dos Profissionais da Área da Cultura, que entrou em vigor a 1 de janeiro.
Questionado pelo Observador sobre se dará resposta à carta aberta da APPEE, o Ministério da Cultura respondeu que, “conforme publicamente anunciado, o apuramento das ocorrências associadas ao evento em questão está a decorrer no âmbito do Município de Almada, sendo esta a entidade adequada para o fazer perante o seu grau de intervenção no festival em causa”. Garantindo que, “através da Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), efetuará a análise de todas as reclamações formalmente submetidas, no quadro das atribuições específicas que lhe estão legalmente cometidas”, a tutela disse ainda que, “sem prejuízo, importa sublinhar que a realização de festivais de música, ou de quaisquer outros espetáculos de natureza artística, ocorre numa relação de direito privado e rege-se pelas cláusulas que constam dos contratos celebrados entre as partes”.
Artigo corrigido com a duração correta do concerto de Miguel Ângelo