De todas as personagens mitológicas da antiguidade grega, uma das que mais atuais permanece, em todo o seu cariz trágico, é Cassandra. Princesa troiana, sacerdotisa de Apollo, foi-lhe conferido o dom de prever profecias verdadeiras e a maldição de ninguém acreditar nelas. Dentro das várias versões da sua história, uma das mais famosas mostra o príncipe Paris a ignorar os seus avisos, raptar Helena e precipitar a guerra que poria fim a Tróia.
Desde que a sua história ficou plasmada nos textos de Homero, Ésquilo e Virgílio, a figura do arauto ignorado permanece bem presente na nossa cultura coletiva. Serve este preâmbulo para apresentar o que Jeff Goodell escreve no final do prefácio de O Calor é que Te Vai Matar (Lua de Papel):
Sim, é verdade, nós, humanos, somos seres notáveis, com uma tremenda capacidade para nos adaptarmos e ajustarmos a um mundo em mudança rápida. Mas nunca tivemos de enfrentar uma força como o calor extremo. Será uma criação humana, mas, no seu poder e nos seus augúrios, assemelha-se a um deus.”
Teremos então de enfrentar a nossa húbris e encarar um problema muito para lá das nossas capacidades e que nós próprios construímos, com doses iguais de ambição e negligência. Seria fácil encarar Goodell como mais uma “Cassandra”, mas o jornalista norte-americano da Rolling Stone não se sente num combate perdido, pelo contrário, e ainda espera que os avisos não sejam demasiado tardios. Depois de ter estado no evento Book 2.0, em Lisboa, Goodell afirmou numa conversa à distância com o Observador que, mesmo com mais de duas décadas a cobrir o tema das alterações climáticas, mantém o alento quando as previsões agravam-se diariamente.
“As pessoas perguntam-me sempre ‘porque é que não estás a viver na tua cave, a beber tequila e a escrever na parede com lápis de cera sobre o mundo perdido para os nossos filhos?’ E parte da razão é porque acho incrivelmente inspiradoras as pessoas que encontro todos os dias no meu trabalho”, afirma.
O título do seu livro, mais do que pretender assustar — “se isso assusta algumas pessoas, bem, deve assustar, é assustador!”, defende — foi concebido como uma assunção franca e honesta do que o calor é capaz de fazer a qualquer um de nós. “No que diz respeito ao medo, eu levo o meu trabalho como jornalista muito a sério. Penso que é muito importante ser exato na ciência e falar sobre isto de uma forma sóbria, mas a sobriedade tem dois sentidos, não se trata apenas de apresentar soluções esperançosas e ter medo de dizer às pessoas a verdade sobre o que está a acontecer. As alterações climáticas não são como ter uma perna partida, em que temos de fazer coisas boas, como comprar um carro elétrico ou reciclar as nossas garrafas de plástico e, depois de seis semanas engessados, voltamos a fazer tudo normalmente. Não, isto é uma mudança fundamental no nosso mundo e na forma como pensamos sobre ele”, aponta.
Ao longo de uma extensa entrevista, explica que a ideia de encarar o calor veio da sua própria experiência e de como este é um problema não só invisível — não se vê, apenas os seus efeitos —, como menorizado pela nossa cultura em que ir à praia é desejável e “aquecimento global” soa a eufemismo. Goodell aponta também o dedo ao falhanço da comunicação sobre o tema, a forma como o caos climático beneficiará uns e prejudicará muitos outros e a Portugal como um dos países que mais tem a perder com um planeta sobreaquecido: “Adoro Portugal, mas é um país extremamente vulnerável em todo o tipo de aspetos. O turismo é um dos principais motores económicos do país. Isso é tudo muito bonito até termos temperaturas de 50ºC durante todo o verão — quem é que vai querer ir para Portugal?”
Em 2017, publicou o livro The Water Will Come sobre os efeitos da subida do nível do mar. Este fenómeno é descrito por si em O Calor é que Te Vai Matar como um dos vários “efeitos de segunda ordem de um planeta mais quente”. “O efeito de primeira ordem é o calor. Ele é o motor do caos planetário”, defende. Quando é que se apercebeu que o calor era a principal questão que tinha de abordar?
Posso dizer precisamente quando tomei consciência de que o calor era uma questão fundamental. Estava em Phoenix, no Arizona, no verão de 2018, a fazer uma reportagem sobre uma história completamente diferente. Estavam cerca de 40 graus ou algo do género nesse dia, eu estava atrasado para uma reunião, o meu Uber atrasou-se também e por isso decidi correr 20 quarteirões sob o calor até à minha reunião. E após correr tudo isso, estava tonto, o meu coração disparou, pensei que ia desmaiar. Foi aí que me apercebi que o calor era realmente perigoso. Parece uma constatação óbvia para qualquer pessoa, mas foi particularmente estranha para mim porque, nessa altura, já escrevia sobre as alterações climáticas e o aquecimento global há mais de 15 anos. Nunca o calor tinha tido um efeito tão pessoal sobre mim. E isso despertou-me realmente para o tipo de risco a que fui sujeito, porque pensei “se isto me está a acontecer, o que acontecerá a toda a gente?”. Foi um momento em que me apercebi da ignorância que até os mais instruídos de entre nós, as pessoas que pensam muito sobre as alterações climáticas, têm não só sobre os riscos do calor, mas também sobre o seu funcionamento. Foi então que nasceu o livro, que me lancei nele e quis analisar a questão tanto do ponto de vista do que o calor nos faz a nós, seres humanos, à medida que aumenta, mas também, como referiste, como funciona como uma espécie de força maior. Quando pensamos em coisas como a subida do nível do mar, incêndios florestais como os que têm ocorrido em Portugal, todas estas coisas são uma espécie de efeitos secundários do calor. São todos causados pelo facto de estarmos a viver num planeta mais quente. Por isso, no livro, quis analisar a questão a partir de duas dimensões: o que faz ao nosso corpo e o que faz no tipo de impactos mais alargados das alterações climáticas no planeta.
Por que razão é tão difícil para nós conceber esta ideia de calor como um fenómeno tão perigoso como desastres naturais com umas cheias repentinas ou um furacão?
Uma da razões é que gostamos de tempo quente. Toda a gente vai a Portugal para ir à praia, num país agradável, quente e bonito, certo? E assim, no geral, pensamos no calor como uma coisa boa, estamos predispostos a encará-lo dessa forma. Esse é um dos aspetos da questão; o outro é que o calor — ao contrário dos incêndios florestais, como os que vimos agora, ou a subida do nível do mar ou a seca, todos os outros impactos climáticos — é invisível. Encontro-me no Texas neste momento e não consigo dizer se estão 30ºC ou 40ºC só de olhar pela janela, certo? É uma coisa invisível. Por isso, não se regista psicologicamente da mesma forma que outros acontecimentos. E, no geral, no que se refere à razão pela qual não enfrentamos os riscos e perigos das alterações climáticas, quero dizer, em primeiro lugar, que as pessoas estão a começar a encará-los. As pessoas que estiveram a ver as chamas e o fumo no Norte de Portugal estão bastante conscientes dos riscos crescentes, estamos todos a ficar mais conscientes. Mas ainda há muitas razões políticas e financeiras para que as pessoas resistam a refletir sobre este assunto. Nos Estados Unidos e em todo o mundo, há muitos interesses sob o sistema político da parte dos combustíveis fósseis, que querem minimizar ou negar os riscos das alterações climáticas. As pessoas não querem pensar em ter de mudar as suas vidas de forma alguma, querem pensar nisso como uma espécie de parte de um ciclo natural. Diria que isso foi menos visível nos últimos anos, mas agora as mudanças no nosso mundo estão a apanhar-nos na curva. Vemo-lo mais e mais, estamos a ver estes grandes incêndios em Portugal e no Canadá, estamos a ver estas terríveis ondas de calor que estão a matar pessoas. Estas coisas estão a acontecer agora em tempo real, de uma forma que não acontecia há 10 anos.
Em junho, no Hajj, a peregrinação a Meca, na Arábia Saudita, 1300 pessoas morreram devido a golpes de calor. Talvez tenhamos tendência a relativizar isto como “há sempre pessoas a morrer nessas peregrinações”, mas alguma vez algo semelhante aconteceu?
Falamos muito sobre a forma como nos vamos adaptar a este mundo mais quente, quer seja retirando-nos das costas devido à subida do nível do mar, quer seja impermeabilizando os edifícios, alterando a gestão das florestas devido aos incêndios florestais, plantando mais árvores de sombra e mais infraestruturas verdes nas cidades devido ao calor. Fala-se muito desse tipo de adaptação, mas também terá de haver uma grande adaptação cultural. Certas coisas que eram possíveis de fazer num mundo mais frio não o serão num mais quente. Não é possível fazer caminhadas de longa distância com temperaturas entre os 40 e os 50 graus como no Hajj. Isso torna-se uma marcha da morte. Outro exemplo é o facto de, na Europa, este ano, muitos ciclistas da Volta à França e de outras grandes corridas de bicicleta terem dito “não podemos continuar a fazer isto com este calor”. Tivemos ciclistas a sofrer de exaustão e de insolação. Aqui nos Estados Unidos, um exemplo óbvio é o futebol americano, o nosso passatempo nacional: é jogado nas escolas secundárias durante o verão e há muitos locais que estão a questionar-se se podem continuar a fazê-lo. Estes são exemplos de como vamos ter de nos adaptar a este novo mundo. E isso vai exigir muitas mudanças em muitas dimensões sobre as quais ainda não começámos a pensar.
O cenário que descreve no livro da onda de calor que atingiu o Noroeste Pacífico dos EUA em 2021 dá uma boa ideia da amplitude dos efeitos destrutivos que o calor pode ter. Mas, mais importante ainda, mostra que isso está a começar a acontecer em locais inesperados. A que ritmo é que isto está a acontecer?
Essa é uma das coisas mais difíceis de compreender sobre as consequências de um planeta em aquecimento, porque muita da conversa nos meios de comunicação social é sobre o tipo de objetivos que foram estabelecidos pelo IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas], que queremos manter o aquecimento a 1,5ºC ou 2ºC. Tratam-se de referências importantes, mas dão a sensação de que o aquecimento é uma coisa gradual, um incremento lento e silencioso, uma espécie de subida suave, como ligar um forno ou algo do género. Na verdade, o aquecimento está a ocorrer em picos extremos e uma das características de um planeta mais quente é este tipo de clima. A onda de calor do Noroeste Pacífico é um ótimo exemplo, pois nunca tinham experienciado uma onda de calor como aquela. Era tão provável como nevar no Saara. E, de repente, as temperaturas ficaram tão altas que houve cidades da Colúmbia Britânica, no Canadá, a entrar em combustão espontânea. E é assim que o nosso futuro se parece. Não estamos a olhar para uma espécie de aquecimento suave, em que o Norte de Portugal vai ficando um pouco mais quente e um pouco mais seco ao longo do tempo, estamos a olhar para potenciais picos de temperatura, cinco ou seis graus Celsius acima do que alguma vez se registou. Poderemos chegar aos 47, 48, 50ºC em Lisboa? Podemos, e não sabemos quando, porque à medida que o nosso clima aquece, está a tornar-se mais caótico. As correntes de jato estão a mover-se, o sistema ordenado está a desordenar-se. E assim, com esse sistema desordenado, estamos a ter estes acontecimentos mais extremos, incluindo o potencial para tempestades e furacões maiores, mais rápidos e mais intensos. Incêndios como estes em Portugal ardem mais intensamente e durante mais tempo, porque as florestas estão muito mais secas e quentes. Basicamente, o que está a acontecer é que, à medida que os solos e as florestas secam, tornam-se mais inflamáveis. Assim, quer seja um fogo posto a iniciá-las, quer seja um relâmpago, quando começam a arder, ardem muito mais e com maior intensidade. E estamos a ver isso em todo o mundo neste momento.
Podemos proteger-nos de uma tempestade que se aproxima porque sabemos como é e o que faz, mas não sabemos como fazê-lo com uma onda de calor? O potencial de letalidade do calor reside no facto de estarmos mal habituados a ele?
Exatamente. E devido ao tipo de caos crescente do sistema atmosférico, à medida que este se torna mais quente, é muito difícil prever onde é que estes fenómenos de calor extremo vão ocorrer. Sabemos que está a ficar mais quente e que se continuarmos a queimar combustíveis fósseis e a colocar mais CO2 na atmosfera, um lugar como Portugal vai ficar mais quente, tudo vai ficar mais quente de uma forma geral. Mas não sabemos onde é que estas ondas de calor extremas vão ocorrer e quão quentes vão ficar, está para lá da nossa capacidade de previsão. Por isso, levanta uma série de questões complicadas sobre a forma como nos vamos adaptar e como vamos proteger as pessoas deste tipo de fenómenos extremos. O problema do calor é que é de longe o mais mortífero de todos os impactos climáticos. Não é possível estar na praia em Portugal e afogar-se porque um glaciar na Antártida derreteu. Tem grandes impactos ao longo do tempo, mas não é uma ameaça à nossa vida em tempo real. Mas, se estivermos em Lisboa e houver uma onda de calor extremo e não tivermos acesso a ar condicionado ou se tivermos algum tipo de fragilidade física ou algo do género… Digo que o calor é como um eletrocutor de insetos, pode matar-nos muito rapidamente, foi o que vi nas ruas do Arizona naquele dia. Portanto, os riscos são muito extremos, muito reais e muito rápidos.
O primeiro capítulo é muito esclarecedor, quase como um manual de saúde, porque a ideia que transparece é que não sabemos realmente o que estamos a enfrentar até que o fenómeno nos aparece pela frente.
No primeiro capítulo, escrevi sobre uma família que foi fazer uma caminhada na Califórnia: um homem de 40 e poucos anos, uma mulher quase a chegar aos 40, o filho de um ano e meio e o cão, os quatro foram fazer uma caminhada de 8 ou 10 quilómetros e foram encontrados mortos no trilho. Os investigadores demoraram algum tempo a perceber o que aconteceu e que todos morreram de insolação. A razão pela qual comecei com essa história é porque queria realmente dar uma ideia de como o calor é um risco para todos. Há pessoas que estão obviamente em risco — trabalhadores ao ar livre, pessoas que têm problemas cardíacos, crianças pequenas cujas glândulas sudoríparas ainda não se desenvolveram, pessoas que tomam certos tipos de medicação — mas eu queria realmente mostrar que este é um risco para toda a gente. E foi por isso que comecei com esse capítulo, para desfazer alguns dos mitos sobre o calor. Em primeiro lugar, que isto pode afetar toda a gente, por exemplo se estivermos presos como aquela família ficou: fizeram algumas más escolhas numa caminhada, deram por si num trilho muito íngreme sem sombra e tiveram de subir um desfiladeiro para sair. Era apenas uma subida de dois quilómetros ou algo do género, mas foi o suficiente para matá-los a todos. E vemos nas notícias praticamente todos os dias durante o verão pessoas que fazem más escolhas enquanto estão ao ar livre e que acabam por morrer por causa disso. Mas há também outros mitos.
Como por exemplo?
Existe a ideia de que se bebermos água suficiente, ficamos bem. Que não é preciso pensar no calor, desde que se tenha água. Bem, isso não é verdade. Há muitas, muitas histórias de pessoas que tinham muita água e mesmo assim morreram de insolação, porque o ato de beber água não arrefece por si só. A água não atua como um refrigerante no nosso corpo, tudo o que faz é permitir-nos suar, o que também é muito importante, é a única forma que o nosso corpo tem de libertar calor. Por isso, se ficarmos desidratados, não conseguimos suar e ficamos muito mais vulneráveis. Mas a água, por si só, não nos vai salvar. E penso que esse é um grande mito que anda por aí, tal como muitos outros sobre o que temos de fazer para nos protegermos do calor.
Há três semanas, estive na CNN com um médico de topo dos Estados Unidos. Estávamos a conversar e o pivô perguntou ao médico “quais são as três principais coisas que pode fazer para se proteger do calor extremo?”. E a primeira coisa que o médico disse foi que se pusesse protetor solar, o que é uma loucura! O protetor solar não ajuda em caso de calor extremo, ajuda sim a evitar queimaduras provocadas pelos raios UV, mas o facto de este médico estar na televisão a dizer “ponham protetor solar” mostra como a maioria das pessoas, incluindo eu próprio até há pouco tempo, não sabe como lidar com os riscos. Há quem pense que, se estivermos lá fora e formos expostos a calor extremo, devemos simplesmente tomar um pouco de Tylenol [paracetamol] ou algo do género, como faríamos se tivéssemos febre. Isso não tem qualquer impacto, não tem nada a ver com o facto de estarmos a aumentar a temperatura do corpo. Por isso, de certa forma, penso no livro como uma espécie de guia de sobrevivência para o século XXI, para ajudar as pessoas a perceber o que fazer e o que não fazer e para identificar quais são realmente os riscos, tanto para elas próprias, de uma forma muito pessoal — e foi por isso que chamei ao livro O Calor é que te Vai Matar, que foi um título muito controverso, os meus editores não gostaram dessa ideia (risos) — como também, como falámos antes, a uma espécie de escala planetária mais alargada.
Refere que um efeito secundário interessante do aumento do calor a nível mundial é o facto de nós, enquanto espécie, tendermos a adaptar-nos às nossas circunstâncias. Defende que isso é uma faca de dois gumes, uma vez que nos garante simultaneamente a nossa sobrevivência, mas também impede mudanças significativas. Quais são as implicações?
Trata-se de um tema muito interessante, importante, complicado e subtil sobre a ideia de como nós, enquanto espécie, vamos lidar com as alterações climáticas. Uma das minhas grandes preocupações é que, em vez de trabalharmos agressivamente para reduzir as emissões de combustíveis fósseis e para adaptar as nossas cidades a este clima mais quente e caótico, nos adaptemos dizendo simplesmente “oh, bem, é assim que o mundo funciona agora, é assim que o clima é, temos estas ondas de calor de 50ºC, temos estas tempestades de categoria seis, temos estas secas, tudo isto”. Esqueceremos isso ou adaptar-nos-emos, aceitando que 1400 pessoas morrem em peregrinação na Arábia Saudita, aceitando que todos os verões em Portugal um certo número de pessoas morre de insolação, que isso é uma perda aceitável e que é assim que o mundo funciona.
Vimos algo assim acontecer com a Covid-19, certo? No início, ficámos todos assustados com o perigo e o número de mortes, mas depois, a certa altura, passámos a pensar “bem, mais mil pessoas morreram por causa da Covid e é assim que as coisas são agora”. Preocupa-me esta mudança de ideia de base, que far-nos-á esquecer que este clima mais quente, mais caótico e mais perigoso é, na verdade, um artefacto humano, algo que é tão humanamente construído como a Grande Muralha da China, criado ao longo do tempo despejando CO2 na atmosfera. Esqueceremos que poderíamos ter feito algo em relação a isso, que nem sempre foi assim. Por isso, esta é uma preocupação real minha, que este mundo mais quente, mais caótico, mais perigoso, nos limite a aceitá-lo e a aceitar as perdas, o caos, a violência e as mortes que o acompanham, em vez de nos concentrarmos realmente em fazer as coisas que precisamos de fazer para minimizar esses riscos.
No entanto, ao mesmo tempo, a Covid, tal como o aumento do calor, afetou desproporcionalmente as pessoas mais vulneráveis. Vimo-lo não só no mundo desenvolvido, como também no mundo em desenvolvimento, os últimos países a receber vacinas. E talvez venham a ser as primeiras a sentir os efeitos mais graves do aumento do calor. No livro, menciona um número como 750 milhões de pessoas que não têm acesso à eletricidade e, por isso, não têm acesso a ar condicionado…
É uma boa analogia, mas hesito um pouco quanto à expressão “novo normal” porque uma das características desta nova era climática que criámos é que não há nada de normal nela. É muito caótica, não é estável como a expressão “novo normal” implica, passando de uma espécie de estado estável normal para outro, mesmo que seja um pouco mais quente. O que está a acontecer é passar de um clima relativamente estável para um novo, mais quente e mais caótico. Por isso, algumas pessoas utilizam a expressão “novo anormal” ou algo do género. Isso preocupa-me um pouco. Outro paralelo interessante com a Covid é que, durante a pandemia, vimos o surgimento do movimento anti-vax, este movimento anti-ciência, anti-medicina, anti-vacina, que é conspiratório. Quero dizer, há certamente questões legítimas sobre a origem do vírus e coisas do género, mas, como toda a gente sabe, o movimento anti-vax foi algo muito além disso e encarou realmente toda esta questão da ciência como um sistema de crenças, a desconfiança quanto aos médicos especialistas e tudo isso. E estamos a ver a mesma coisa a acontecer com o clima. Há 25 anos que escrevo sobre este assunto e, por exemplo, há uma década, as pessoas não questionavam a integridade dos cientistas da mesma forma que fazem agora. Os EUA, lamento dizê-lo, são uma espécie de líderes nesta ideia, de as alterações climáticas se tornarem parte de um sistema de crenças, algo em que muitos republicanos do tipo MAGA de Trump acreditam, de que faz parte da “cultura woke”, que “não tem base científica”, que é apenas “uma coisa maluca em que os liberais acreditam”. Isto é realmente perigoso, e surge do movimento anti-vax de uma forma muito direta, porque agora estamos a desacreditar toda a ideia de ciência, de especialistas, de dados factuais, de todas estas coisas. E assim, para além da conversa sobre a mudança de base que tínhamos antes, passámos à conversa sobre a negação da realidade. E quando se chega a um estado de negação da realidade e da ciência, então como é que se começa a pensar em soluções, na adaptação, todo esse tipo de coisas?
No livro, aponta que o negacionismo sobre o clima não é uma falha dos nossos sistemas políticos, mas sim uma caraterística para aqueles que podem colher os frutos deste posicionamento. Pode explicar porquê?
Isso vê-se claramente nos Estados Unidos neste momento. Estamos a pouco mais de um mês das eleições presidenciais e temos um candidato como Donald Trump, alguém que disse abertamente que as alterações climáticas são uma farsa, que são uma invenção dos liberais e de pessoas como George Soros e outros. É muito claro que, para o tipo de ascensão do homem forte — que obviamente é algo que não está a acontecer apenas nos EUA, vemos noutros lugares esse tipo de tendências autocráticas —, o caos é uma coisa boa. Donald Trump está a usar o caos como argumento para justificar a necessidade de a América eleger um homem forte como ele e as alterações climáticas entram diretamente nesse jogo. Não é um argumento, como eu defenderia, para uma melhor regulamentação, para pensar de forma diferente sobre a forma como vivemos, melhores códigos de construção, abandonar os combustíveis fósseis, enfim, para realmente resolver o problema. Para ele, é uma razão para construir muros maiores, eleger mais homens fortes e colocar mais polícias na rua para acabar com a violência. É exatamente o que se passa nas suas estratégias políticas. E não creio que se trate apenas de um fenómeno americano, mas sim de uma tendência política generalizada em todo o mundo. E penso que é um dos aspetos realmente perigosos das alterações climáticas, sobre o qual não se fala o suficiente. O caos é bom para um certo tipo de política de direita e as alterações climáticas trazem o caos.
A par desta ideia do caos como instrumento político, há estudos que mostram como, em situações de stress térmico, os seres humanos tendem a piorar as suas capacidades cognitivas e a tornar-se mais agressivos. Assim, se mantivermos a atual trajetória de aquecimento, é possível que estejamos perante um mundo pior gerido e mais violento?
Sem dúvida. Atualmente, está a ser feito um trabalho muito interessante sobre os impactos cognitivos do calor e sobre a forma como este faz coisas como baixar os resultados dos testes escolares ou como os atos de violência doméstica aumentam durante períodos de calor extremo. Há dois dias comecei a ler Crime e Castigo de Dostoiévski. A primeira linha do livro é sobre o facto de estar um dia muito quente — ou seja, o assassinato de que trata a história acontece num dia muito quente. Achei que era um pormenor interessante. Mas todos sabemos, pelas nossas próprias vidas, que quando estamos com calor somos diferentes. Tornamo-nos mais irritáveis, mais preguiçosos, o nosso cérebro não funciona tão bem. Quando alguém nos interrompe no trânsito, ficamos mais zangados, mais propensos a buzinar. Há estudos muito bons que mostram que, à medida que a temperatura aumenta, a frequência de buzinadelas em situações de trânsito aumenta praticamente ao mesmo ritmo que a temperatura. Portanto, sim, um mundo mais quente é um mundo mais agressivo e é um mundo mais burro. A linha que separa aquilo a que chamo no livro entre “os que estão ao fresco e os condenados”, as pessoas que têm ar condicionado e as que não têm, torna-se cada vez mais nítida.
Como referi, podemos ver isto em coisas como os resultados dos testes escolares. Há alguns estudos muito interessantes sobre a diferença nas classificações dos testes entre escolas em zonas quentes que têm ar condicionado e escolas que não têm. Nalguns casos, há uma diferença de 10% nos resultados. E isto só acelera e aprofunda estas outras divisões na nossa sociedade, porque quais são as escolas que não têm ar condicionado? Geralmente, estão nas zonas mais pobres. Portanto, são crianças que já estão em desvantagem em certos aspetos, e depois juntamos o calor e as suas complexidades perante as crianças que têm ar condicionado e elas ficam ainda mais em desvantagem. Portanto, não só torna o nosso mundo mais caótico, como também aprofunda as divisões que já temos. Estou aqui no Texas, e esta semana tem estado muito, muito quente. Estou bem, porque tenho ar condicionado e tenho um emprego onde faço coisas como falar contigo e escrever um livro. E desde que a eletricidade continue ligada, estou bem. Mas há um tipo do outro lado da rua que está a colocar um telhado novo numa casa e não está bem. Está a pôr a sua vida em risco todos os dias quando sobe para o telhado e começa a bater pregos neste tipo de calor extremo. E quanto mais quente fica, maior é a distância entre mim e ele.
Alguns autores alertam para o facto de o nosso sistema alimentar global estar num ponto de viragem que, com as condições climáticas, políticas e logísticas adequadas, pode levar a uma escassez desastrosa. No que se refere às mortes causadas pelo calor, o argumento é semelhante: pode existir um efeito de cascata que pode ter consequências calamitosas. Como é que isto se explica?
Tenho um capítulo inteiro sobre o ar condicionado, que é visto como uma espécie de solução mágica. Muitas pessoas pensam “o mundo está a ficar mais quente, eu sei como resolver isso, basta dar ar condicionado a mais pessoas”. Essa é uma conceção muito simplista e falsa do problema. Como já foi referido, há 750 milhões de pessoas no planeta que nem sequer têm acesso a eletricidade, muito menos a ar condicionado. O ar condicionado é, por definição, uma espécie de tecnologia divisionista: os ricos tendem a tê-lo, os pobres não. E, claro, ajuda conceber estratégias, subsídios, baixar o preço do ar condicionado para que mais pessoas o possam ter, sem dúvida. Em muitos casos, é um dispositivo que salva vidas, mas não é mágico. E um dos exemplos mais claros disso é que depende de um fluxo constante de eletricidade, sendo que escrevo sobre esse tipo de riscos no livro.
Há um acontecimento hipotético chamado Heat Katrina, que é uma referência ao furacão Katrina que atingiu Nova Orleães há cerca de uma década. Como acabei de referir, está um dia quente neste momento aqui no Texas e eu estou bem porque tenho ar condicionado. Mas se me faltar a eletricidade neste momento, não ficarei nada bem. E cito alguns estudos muito interessantes que mostram o que aconteceria a uma grande cidade — nestes casos, são metrópoles dos EUA, como Detroit, Phoenix e, penso eu, Chicago — se durante uma onda de calor houvesse um corte de eletricidade. E os resultados são surpreendentes, porque os nossos edifícios são construídos com o pressuposto de que o ar condicionado vai funcionar. Por isso, perdemos as nossas referências de construção, com ventilação natural, paredes grossas, todas pintadas de branco para refletir o calor, construídas para captar o vento, com muita sombra à volta. Nessa altura, o ar condicionado não era uma opção, pelo que a nossa arquitetura pensava muito em como construir num local quente. Agora isso desapareceu e tudo o que construímos são estas caixas — em muitos casos, com janelas que nem sequer se abrem — com estas máquinas aparafusadas para mantê-las frescas. E se faltar a energia a essas máquinas, todos estes edifícios transformam-se muito rapidamente em fornos de convecção. Um dos estudos que cito, que analisa um apagão de cinco dias em Phoenix, diz que nas 48 horas seguintes a esse apagão, durante uma onda de calor, 18.000 pessoas morreriam e mais de 600.000 pessoas teriam de ir às urgências. Isso é catastrófico.
Seria como a Covid outra vez. Talvez ainda pior.
Pior, mais rápido e mais dramático. Por isso, o ar condicionado é uma espécie de espada de Dâmocles que paira sobre nós. Mas há formas de lidar com isso. Se tivéssemos mais micro-redes nas cidades — para não termos linhas elétricas gigantescas que, se uma se apaga, metade da cidade fica sem eletricidade —, mais geradores de reserva e coisas do género, poderíamos reduzir enormemente os riscos de um apagão maciço. A forma como as nossas cidades estão estruturadas atualmente implica um risco gigantesco. E, como se sabe, quando faz calor, a rede fica mais sobrecarregada, porque toda a gente liga o ar condicionado e, por isso, a procura de energia é normalmente mais elevada durante uma onda de calor. Além disso, o calor fadiga o metal que compõe a rede, as linhas elétricas começam a ceder, tendem a bater em coisas e a provocar incêndios. As centrais tendem a ficar mais offline porque o metal incha e as máquinas térmicas — nas centrais a gás, na maioria dos casos —, não funcionam tão bem. Assim, os riscos aumentam exponencialmente para a rede à medida que esta aquece.
Parece que estamos demasiado dependentes destes sistemas muito instáveis e que podem cair se algo correr mal. De certa forma, não será uma espécie de húbris o facto de dependermos assim tanto destes sistemas e da nossa tecnologia?
Totalmente. Húbris é um ótimo termo porque representa esta suposição de que tudo vai funcionar da mesma forma que sempre funcionou, que não temos de ter em conta estas mudanças que estão obviamente a acontecer no nosso mundo e começar a reestruturar estes sistemas. Não há razão para não podermos conceber um sistema alimentar que não seja tão vulnerável e tão frágil como o que está a descrever. Não há razão para não concebermos uma rede, uma estrutura de energia que seja menos vulnerável do que a que acabei de mencionar. Mas, para fazê-lo, temos de levar estes riscos a sério e assumir “Ok, isto é real, isto está a chegar, o que vamos fazer em relação a isto e como vamos pensar de forma diferente sobre como construímos o nosso mundo?” Para mim, em termos gerais, esse é o verdadeiro desafio das alterações climáticas. Sim, um clima mais quente vai trazer um enorme sofrimento e perda e temos de reconhecê-los, mas há muitas coisas que podemos fazer para reduzi-los. Há muitas coisas que podemos fazer, francamente, para tornar o nosso mundo um lugar melhor, mais resistente, reduzir este império de betão e asfalto, para tornar os alimentos mais seguros, mais disponíveis, mais locais, para termos formas de gerar energia que não dependam de reatores nucleares gigantes e de centrais de carvão a centenas ou milhares de quilómetros de distância. Há muitas maneiras de utilizar esta crise para inventar e reconstruir o nosso mundo de uma forma melhor. Só temos de ter a vontade política para fazê-lo.
No que se refere à vontade política, abordou esta questão num artigo sobre o facto de, em julho, o serviço Copernicus ter registado, por duas vezes consecutivas, o dia mais quente de sempre no globo. Nesse texto argumenta que há um falhanço na comunicação desta questão, em parte devido à dependência destas estatísticas. Porquê?
Há muitas razões, mas penso que o debate sobre o clima é demasiado dominado por dados e números, e não o suficiente por histórias e cenários que mostrem o âmbito e a escala reais dos riscos e das oportunidades. Fiz o meu melhor para manter este livro sem dados. Quero dizer, está cheio de ciência, mas não numa lógica de sala de aula, porque quero contar histórias. Acho que é assim que comunicamos com as pessoas, foi assim que comunicámos uns com os outros durante centenas de milhares de anos, quando nos sentámos à volta das fogueiras. Por isso, neste livro, tento comunicar sobre estes desafios dessa forma. E penso que os media e os políticos ainda não aprenderam essa lição. A nossa conversa gira à volta dos aumentos de 1,5ºC ou 2ºC. Quem é que se importa com isso? Isso não significa nada para o cidadão comum, é inconsequente. Por isso, a nossa responsabilidade como comunicadores, como jornalistas nos meios de comunicação social, é fazer um trabalho melhor para comunicar esse risco e os media fazem um trabalho terrível nesse sentido. Nos dias quentes, mostram as pessoas a irem para a praia e reforçam a ideia de que o que interessa é que teremos melhor clima para praia e que “um mundo mais quente significa que mais turistas virão para Portugal e isso é ótimo, a nossa economia vai crescer, por isso vamos construir mais hotéis na praia!”
No início desta entrevista, referiu que toda a gente quer vir para Portugal porque é mais quente. O nosso clima é a nossa galinha dos ovos de ouro por causa do turismo… mas a verdade é que também isto pode mudar.
Com certeza. Já passei muito tempo em Portugal. Adoro o país, mas é extremamente vulnerável em todo o tipo de aspetos. O turismo é um dos principais motores económicos. Isso é muito bonito até termos temperaturas de 50ºC durante todo o verão — quem é que vai querer ir para Portugal? Quem é que vai querer ir para a Sicília ou para o Sul de Itália? Há muitos sítios que enfrentam esta situação e esta vulnerabilidade é muito real. Vai haver cada vez mais uma linha divisória. As pessoas estão a ficar mais conscientes desta situação e a perceber que “algo está a acontecer”. Quero dizer, isto não é uma espécie de “tema de liberais e maluquinhos do clima”. Todos percebem que o nosso clima está a aquecer. E quando há lugares que fingem que isso não está a acontecer, que continuam a construir e a investir de uma forma que sugere “ou não nos importamos ou negamos isto”, penso que isso vai constituir um problema em si mesmo.
O que quer dizer com “linha divisória”?
Por exemplo, pensemos no que Paris fez e tem feito na última década e no que fizeram para os Jogos Olímpicos. O que aconteceu foi que todos viram a cidade a reinventar-se, um lugar a fazer tudo, desde reimaginar a forma como os edifícios antigos são utilizados, isolá-los, prepará-los para o século XXI. Estão a colocar muito mais vegetação nas áreas urbanas. Estão a limpar o rio Sena para que as pessoas possam nadar nele. Há muito tempo que a Presidente da Câmara tem sido uma vigorosa defensora da mudança e Paris está realmente a liderar o caminho. Penso que isto é importante do ponto de vista económico e turístico, porque acho que cada vez mais as pessoas vão querer ir a lugares como este e pensar “não é fantástico? Vejam o que eles fizeram. Mudaram, não estão apenas a construir grandes auto-estradas e a trazer mais motores de combustão interna e mais voos baratos para os turistas irem à praia. Estão a imaginar o seu mundo de uma forma diferente”. E penso que isso, por si só, tem um enorme valor e terá cada vez mais ao longo do tempo, porque é simplesmente um facto que as nossas infraestruturas não estão construídas para este tipo de condições meteorológicas extremas. E as pessoas não vão querer ir a Portugal da mesma forma que vão agora, quando estiver X graus mais quente. Este é o tipo de dura realidade que se apresenta.
Toda a ideia de renovação urbana em Paris assenta no conceito da “cidade dos 15 minutos” de Carlos Moreno. Ele próprio também foi apanhado na mira das guerras culturais, porque esta tendência urbanística foi vista por alguns como uma tentativa de impor uma forma totalitária de gerir as cidades, de controlar os habitantes. Esta oposição vai ao encontro da sua ideia de que estas mudanças exigem muita vontade política.
É isso que mais nos falta e é claro que vai ser difícil. Quero dizer, há muita gente que não quer mudar ou não tem interesses financeiros em mudar. Temos essa batalha aqui, onde vivo, no Texas, todos os dias. Querem construir auto-estradas cada vez maiores, há uma grande pressão contra os transportes públicos. Até coisas simples como as ciclovias dão origem a reuniões intermináveis. Mas esta batalha pela mudança é exatamente isso, uma batalha. Penso apenas que as condições estão a mudar muito rapidamente, com as energias renováveis, por exemplo. Pegando novamente no Texas, que é o trono da indústria dos combustíveis fósseis na América, 70% da rede é atualmente proveniente da energia eólica e solar. E isso não está a acontecer porque as pessoas são ativistas climáticos, está a acontecer porque é muito mais barato fazê-lo dessa forma. As pessoas estão a mudar a forma como vivem na costa, aqui nos Estados Unidos, porque os preços dos seguros são muito elevados. Outro exemplo: estou a ajudar a minha mãe a vender a casa dela na Califórnia porque o seguro de incêndio é tão caro que ela decidiu que já não pode pagá-lo e não quer viver num sítio onde tenha de se preocupar se consegue fugir em três horas se um fogo chegar muito depressa. Por isso, está a vender o seu querido rancho por estas razões. Estas coisas estão a ter impacto. Muitas das posições políticas têm implícita a ideia quanto às alterações climáticas de que ”se não acreditarmos e se as ignorarmos, elas vão desaparecer”. Mas estas coisas estão a acontecer. A questão é saber se reagimos de uma forma inteligente, que faça sentido do ponto de vista económico, que amplie o tipo de justiça climática e que proteja algumas das pessoas mais vulneráveis. Ou então fazemos a mesma merda que temos feito nos últimos 30 ou 50 anos e dizemos “que se lixe”? A realidade física vai continuar a aquecer, os mares vão continuar a subir, os incêndios vão continuar a aumentar.
Temos assistido a algumas reações públicas negativas em relação, por exemplo, aos métodos de alguns ativistas do clima e aos problemas legais que acabam por enfrentar. De certa forma, algumas pessoas que abordam as questões climáticas são vistas como fomentadoras de medo. Este livro tem um título bastante duro e referiu anteriormente que queria que ele mostrasse os efeitos viscerais de como o calor pode afetar as nossas vidas. Na sua opinião, o facto de o livro ser um choque para as pessoas foi mais um ponto a favor do que um possível contra?
Quanto ao título, eu tinha escrito o livro e estava a conversar com o meu editor sobre o nome que lhe devíamos dar. Tinha um nome provisório, Heat, mas obviamente não ia ser esse o título. Por isso, fiz o que um escritor faz a meio da noite, deitado na cama, e tive ideias. Estava a pensar na minha experiência em Phoenix e liguei ao meu editor de manhã e disse “tenho o título para o livro, O Calor é que Te Vai Matar”. E ele respondeu “não, esse não vai ser o título do livro, ninguém o vai comprar, é um título terrível”. Levou a ideia ao resto das pessoas da Little Brown, a minha editora nos Estados Unidos, e também disseram não. Mas eu fiz um pitch muito forte, porque queria captar o imediatismo da questão, a ideia de que as alterações climáticas não são algo que esteja a acontecer em glaciares longínquos, não são algo que vá acontecer aos nossos netos ou bisnetos. Estão a acontecer-nos agora, em tempo real. Este título, penso eu, capta tudo isso. E eu queria mesmo que parecesse imediato. E claro, eu obviamente ganhei essa guerra, sendo que podes decidir se é ou não um bom título, mas foi um bestseller do New York Times. Mas no que diz respeito ao medo, Levo o meu trabalho como jornalista muito a sério. É muito importante ser exato na ciência e falar sobre isto de uma forma sóbria, mas a sobriedade tem dois sentidos, não se trata apenas de apresentar soluções esperançosas e ter medo de dizer às pessoas a verdade sobre o que está a acontecer. As alterações climáticas não são como ter uma perna partida, em que temos de fazer coisas boas, como comprar um carro elétrico ou reciclar as nossas garrafas de plástico e, depois de seis semanas engessados, voltamos a fazer tudo normalmente. Não, isto é uma mudança fundamental no nosso mundo e na forma como pensamos sobre ele. Acredito que não se pode pensar verdadeiramente em soluções — que são importantes e de que falo muito no livro — enquanto não se compreender o âmbito e a escala do problema. Por isso, esta obra é uma tentativa de falar sobre o âmbito e a escala do problema de uma forma sóbria, direta e sem hesitações. Toda a gente que vá ler esta entrevista sabe o que é um golpe de calor, mas aposto que praticamente ninguém sabe o que realmente acontece ao nosso corpo quando sofremos um golpe de calor.
Sim, não é bonito. Tenho isso gravado na minha mente desde que o li.
E era isso que eu realmente queria, mostrar o que acontece. Mas em relação a toda a questão, também concordo em parte, porque todos os dias estou nas redes sociais — no X ou no Threads ou no que quer que seja — e vejo alarmistas climáticos muito estúpidos a falar sobre o fim do mundo e que estamos todos condenados. Também há muita retórica idiota do lado dos ativistas do clima. As pessoas que atiram tinta a obras de arte em museus são, na minha opinião, idiotas. Também tenho muitas críticas a este tipo de ativistas, mas penso que, como jornalista e como ser humano, é importante tentar dizer a verdade o melhor possível, estar bem informado e ser franco. E se isso assusta algumas pessoas, bem, deve assustar, é assustador! Não quer dizer que não haja nada a fazer, há muita coisa que podemos fazer e o meu livro, espero, é um pequeno guia para algumas dessas coisas. Mas acho que escrever sobre isto como se fosse uma coisa em que só precisamos de reciclar garrafas de plástico e andar mais de bicicleta, e tudo ficará bem, é uma espécie de negligência grosseira quanto ao dever de um jornalista.
Na sua metáfora, devo acrescentar, as alterações climáticas não são uma perna partida. São mais como um cancro, porque nenhum médico nos vai dourar a pílula quanto a um cancro, certo?
Exatamente, é uma metáfora médica muito melhor. E pode ser tratável se for abordada numa fase inicial, o que é uma analogia importante neste caso. Já ultrapassámos, sem dúvida, o ponto de intervenção precoce com as alterações climáticas, mas, ainda assim, quanto mais cedo agirmos, maior será a probabilidade de nos sairmos bem. O mesmo acontece com o cancro. Toda a gente sabe que quanto mais cedo for diagnosticado, mais opções de tratamento existem. A única coisa que acrescentaria é que penso que podemos sair desta situação com um mundo melhor, esta crise pode ser uma verdadeira oportunidade. Conheci pessoalmente uma série de sobreviventes de cancro e muitos deles saem dessas crises melhor porque passam a apreciar mais o seu mundo, estão mais gratos por cada dia que passaram, isso transforma-os de alguma forma. Nem sempre, claro, mas consigo certamente lembrar-me de alguns amigos e familiares que sobreviveram ao cancro e que são, para ser franco, pessoas muito melhores agora. Esta analogia também é verdadeira neste caso: as alterações climáticas obrigam-nos a refletir sobre os nossos valores de uma forma muito profunda e muito de bom pode resultar disso.
Escrever sobre este tema durante tanto tempo pode tornar-se desanimador, mas no posfácio do livro diz que hoje em dia está mais otimista. Porquê?
Em primeiro lugar, escrevo sobre este assunto há muito tempo, há mais de 20 anos, e as pessoas perguntam-me sempre “porque é que não estás a viver na tua cave, a beber tequila e a escrever na parede com lápis de cera sobre o mundo perdido para os nossos filhos?” E parte da razão é porque acho incrivelmente inspiradoras as pessoas que encontro todos os dias no meu trabalho e que estão a trabalhar arduamente para conceber sistemas de energia mais baratos, melhores painéis solares, melhores turbinas eólicas, seja o que for. Ou os ativistas políticos que lutam arduamente pela mudança na comunidade local ou a nível nacional. Conheço muitas pessoas a toda a hora que são muito inspiradoras. É o oposto de uma espécie de cultura doomer, é uma cultura do tipo “podemos lutar e construir um mundo melhor”. E eu adoro isso. Também acho que, como jornalista, é incrivelmente fascinante escrever e pensar sobre isto, porque penso que esta é uma grande história da civilização humana, de como vamos reinventar o nosso mundo neste momento. Os combustíveis fósseis foram tão importantes para o progresso da civilização humana e agora, de repente, temos de abandoná-los e, ao mesmo tempo, viver num mundo alterado. Por isso, essa grande narrativa é, para mim, realmente fascinante e tem muito interesse intelectual. Acredito mesmo que podemos fazer melhor. Fizemos muitas coisas estúpidas no século XX e quanto à forma como pensámos o progresso, como construímos o nosso mundo, e esta é uma oportunidade para fazer as coisas bem. De certa forma, talvez se possa pensar nisto como uma espécie de história de redenção.