“Como seria o seu dia perfeito se não tivesse jogo?”. Jorge Jesus podia parar uns quantos segundos a pensar nesta perguntas mas também não se importaria – assim como para ele as melhores respostas são muitas vezes aquelas que são mais simples, também as questões mais banais se podem tornar num exercício mental para entrar naquele caminho certo da melhor interjeição que daqui a uns anos ainda continuará a ser lida nos trabalhos feitos à sua volta. Treino, pela paixão que tem pelo que faz, era garantido. Estar com a família também se tornou sagrado com o tempo. Almoçar uma boa cabeça de garoupa com marmelos a fechar, uma inevitabilidade. E para acabar o dia, já de madrugada, futebol, claro. Até porque sempre teve mais do que um ecrã para ver jogos enquanto viveu em Portugal, grande parte da América do Sul. Durante anos, observou jogadores para contratar; agora, esses mesmos jogos que via quase como scout servem para preparar a sua equipa. E essa etapa está a trazer vários dias perfeitos.
A partir de agora, estamos no ano de dois mil e Jesus (a crónica da final da Libertadores)
Durante muitos anos, o Flamengo foi o principal adversário do Flamengo. Ou melhor, os mais de 40 milhões de adeptos do Flamengo querem tanto ganhar que se tornam os grandes inimigos de mais de 40 milhões de adeptos. Agora tudo é um mar de rosas quando se fala desta passagem de Jesus pelo Brasil mas, com poucas partidas ainda disputadas, teve de sair do autocarro para pedir calma a dezenas e dezenas de rubro-negros que se deslocaram ao aeroporto antes da partida para São Paulo após a eliminação dos penáltis da Taça do Brasil, frente ao Athl. Paranaense. Esse momento resumiu, numa imagem, o que mil palavras não chegariam. E mostrou um dos segredos para esse sucesso: alguns treinadores não sairiam cá para fora sem proteção, outros tentariam passar ao lado da confusão. Jesus deu a cara. Para quem já teve uma arma apontada à cabeça num treino em Felgueiras ou esteve na Academia em Alcochete quando houve a invasão no ano passado, foi “mais um dia no escritório”.
Aos 65 anos, após cinco décadas de ligação ininterrupta ao futebol, Jorge Jesus viveu numa aventura de apenas cinco meses (até agora) o momento mais alto da carreira. Não foi ainda a disputar uma final da Liga dos Campeões, aquele que é há muito o seu grande sonho – e que pensa ter capacidades para tal, como já confidenciou a pessoas próximas –, mas com uma conquista da Champions da América do Sul no comando do clube com mais adeptos do mundo. Aquele que, como o próprio tem vindo a repetir, “é o maior clube do mundo pelos torcedores“. Como treinador ou “personagem”, Jesus já gerou amor e ódio. Hoje, cultiva consensos. E tornou-se um Deus.
Quando estava a lutar para não descer, Jesus queria subir para um clube de meio da tabela. Quando chegou a um clube de meio da tabela, Jesus queria lutar pelos lugares europeus. Quando chegou a um clube a lutar pelos lugares europeus, Jesus queria lutar para ser campeão. Conseguiu. E foi. A partir daí, ficou sempre à espera que o telefone tocasse para assumir um projeto no estrangeiro que lhe permitisse discutir a Liga dos Campeões. Um Real Madrid, um Barcelona, um grande de Inglaterra. Convites para equipas europeias não faltaram, o convite que mais queria é que nunca chegou. Por isso, o treinador inverteu no ano passado a forma de pensar: no rescaldo de um período complicado no Sporting e com as portas dos “grandes” fechadas, aceitou rumar à Arábia Saudita para comandar um Al-Hilal que queria ganhar a Champions da Ásia (que ganhou, este domingo). Saiu, ficou à espera, abriu todos os horizontes. E foi assim que encontrou o caminho para lutar pelo último sonho por cumprir.
Se ainda consegue haver novidades sobre quem é Jorge Jesus, uma delas surgiu este domingo no programa Esporte Espetacular: numa reportagem feita na Amadora, uma equipa brasileira chegou à conclusão que existe uma ligação brasileira do treinador através da avó que, de acordo com o irmão, nasceu no país. “Acho que foi em Pernambuco”, contou. Num clube que era uma espécie de gigante adormecido (“Cada brasileiro já foi Flamengo por um instante, por um dia”, como disse um dia Nelson Rodrigues), o português chegou ao paraíso por ter cruzado uma tempestade perfeita – mudou mentalidades a nível de organização logística, preparação de viagens, treinos, ideias e modelos de jogo, conseguindo tornar os adeptos que tantas vezes foram o pior adversário da equipa pela pressão que colocavam nos resultados num verdadeiro 12.º jogador que empurrava o Mengão para a vitória. Foram cinco meses que refletiram um caminho de cinco décadas. Jorge Jesus começou agora o resto da sua vida.
O aprendiz de soldador que mudou de vida quando caiu com a cabeça na sopa
“Sou treinador de futebol, não sou o Eça de Queirós”, disse um dia, respondendo a quem se metia com os atropelos linguísticos que ia tendo em flashes ou conferências. Jesus nunca se mostrou particularmente incomodado com essas conversas paralelas que se iam gerando e gostou de balizar todos esses aspetos. “Professor? Professor é de Filosofia e de Matemática. Eu sou coach, o mister, não sou teacher. Professor não gosto”, atirou numa das frases que pegou – tanto que Jesus e mister são palavras que se passaram a confundir no futebol brasileiro. Na verdade, o único pedigree com o qual o treinador sempre se preocupou foi o do futebol. E, através do pai, seria complicado ter melhor do que aquele com que cresceu antes de começar também a sua carreira como jogador.
Virgolino de Jesus podia não ser titular na famosa equipa dos “Cinco Violinos” do Sporting mas esteve no plantel com mais sucesso (e qualidade) de sempre dos leões, numa era em que o conjunto verde e branco ganhou sete em oito Campeonatos e era conhecido como o “Crónico”. Hoje, Jesus desloca-se com algum trânsito à mistura entre a Vargem Grande, onde se concentra o Ninho do Urubu do Flamengo, e a zona nobre de Ipanema; há 50 anos, tinha de se levantar às seis da manhã para vender ferro velho, entre caixotes com cobre e metal, e ajudar os pais. Nunca lhe faltou comida na mesa mas desde cedo soube o que custava colocá-la lá. Com 14 anos, quando era aprendiz de soldador na empresa de cabos elétricos Celcat, terminara o primeiro ciclo e jogava no Estrela da Amadora, caiu com a cabeça no prato da sopa pelo cansaço. O pai obrigou-o a escolher: ou trabalhava, ou ia estudar, ou jogava à bola. Optou pela última e o jogar à bola passou rapidamente para o sonho de uma carreira.
O futebol deu-lhe tudo mas, um ano antes desse episódio, também lhe tinha tirado algo importante: o avô. Adepto fervoroso do V. Setúbal, acabou por morrer de ataque cardíaco no exato dia da final da Taça de Portugal frente à Académica (3-2 para os sadinos, após prolongamento). Hoje, por questões profissionais, nem sempre pode estar presente no dia que encerra a temporada futebolística em termos nacionais mas, durante largas décadas, qualquer que fosse o clube que representasse na altura juntava-se a amigos da Amadora e seguia para o Jamor – incluindo a edição de 2002, onde foi apanhado pelas câmaras televisivas de forma inadvertida no Sporting-Leixões.
Das peladinhas na rua aos bilhetes grátis para ver a bola: viagem à Venda Nova, terra de Jorge Jesus
Os jogos onde os pneus velhos e as pedras faziam de baliza em frente à sede do Clube Desportivo Operário Rangel, na Falagueira, já se tinham transformado numa coisa mais a sério. E mais séria ficou quando, no segundo ano de juvenil, foi convidado para os juniores do Sporting, o clube do coração e onde o pai tinha passado. O “Carinhas” era mais do que o “Carinhas” ou o “Monas”, como também era conhecido entre os amigos quando era mais novo. Agora era o Jesus. No segundo ano de júnior, foi emprestado pelos leões ao Cova da Piedade, trabalhando durante o dia como soldador e treinando à noite na Margem Sul. A seguir, como sénior, passou por Peniche e Olhanense. Em 1975, a oportunidade chegou. Numa equipa que tinha nomes como Damas, Manuel Fernandes, Inácio, Barão, Laranjeira, Chico, Baltasar ou Marinho, fez 12 jogos no Campeonato e mais quatro na Taça de Honra pelos verde e brancos. No final da temporada, saiu para o Belenenses. E não mais voltaria a Alvalade como jogador.
Jesus era um médio com características ofensivas, que gostava de ter bola mas que algumas vezes era acusado de não correr atrás dela. Manuel Oliveira, que foi seu treinador, funcionou como primeira inspiração enquanto técnico mas, como o próprio reconheceu recentemente, fez falta ao Jesus jogador um Jesus treinador como é hoje. Após sair dos azuis do Restelo, passou por clubes como o Riopele, Juventude de Évora, U. Leiria, V. Setúbal e Farense antes de regressar à casa de partida, o E. Amadora, e terminar a carreira no Atlético, no Benfica de Castelo Branco e no Almancilense. Foi aí, num jogo com o Amora, que a sua vida iria mudar. Porque foi aí que passou de um jogador com qualidade mas que nunca chegou onde se pensava para um treinador que chegou onde poucos acreditavam que podia chegar. Aos 35 anos, a transição entre carreiras não poderia ter sido mais rápida.
Uma oferta do nada, a arma apontada em Felgueiras e os “três de avanço” a Schuster
O Amora vencia o Almancilense ao intervalo por 3-0 antes de Jesus entrar em campo. No final, o encontro acabou empatado e a reviravolta ficou próxima. Os dirigentes do clube da Margem Sul acercaram-se daquele médio que tinha feito a diferença com uma proposta inusitada mas que lhe mudaria a vida: ao perceberem a forma como mexeu com o jogo dando ordens aos companheiros e sendo um verdadeiro treinador em campo, ofereceram-lhe contrato como técnico. Jesus pensou dois dias e decidiu aceitar. Jesus, Jorge Jesus – um hábito muito português que ainda hoje se mantém, de poder haver jogadores conhecidos apenas por um nome mas que passam a nome próprio e apelido quando mudam de cargo. Em 1989, há 30 anos, estava a nascer um fenómeno.
Até 1993, altura em que assinou pelo Felgueiras, o treinador subiu o Amora à 2.ª Divisão B e, depois, à 2.ª Liga. Os tempos eram outros, alguns dos trejeitos mais característicos eram os mesmos: da pastilha elástica mascada de forma furiosa aos gestos contínuos na zona do banco, Jesus já era um treinador que liderava pelo exemplo mas com um estilo agressivo, a dar “duras” nos jogadores enquanto esbracejava, a exigir sempre o máximo a ganhar ou a perder – a tirar o presidente do balneário. Gostava de inovar. Gostava de perceber como jogavam os adversários e mostrar ao balneário como podiam ser melhores sem perder a identidade. Gostava de experimentar esquemas táticos diferentes, como os três centrais sem bola que se transformavam a três defesas em posse.
Antes de rumar ao Norte, e durante um mês (mesmo com a mulher grávida do terceiro filho, o que o foi deixando dividido em termos de atenções), Jorge Jesus estagiou durante um mês com Johan Cruyff no Barcelona. O técnico sempre foi um apreciador do melhor que o futebol ofensivo e dinâmico pode ter, como a seleção brasileira de 1982. Ainda assim, nada bate a escola holandesa. A escola que começou com Kovacs e Rinus Michels, a escola que teve continuidade com o número 14 em campo e fora dele. Manuel Oliveira deu a Jesus as primeiras bases para perceber o jogo em termos táticos, Manuel Sérgio acrescentou uma parte mental que faz cada vez mais a diferença mas é a filosofia do futebol holandês que está na base daquilo que Jesus descreve como a sua “criação”.
Depois de ter conseguido duas subidas pelo Felgueiras, Jesus estreou-se na Primeira Liga. Em 1995/96, com aquele episódio da arma apontada pelo meio, montou um esquema que conseguiu surpreender durante a primeira metade da temporada utilizando nomes de jogadores do Barcelona com os elementos que estavam na altura no seu plantel mas falhou ao não conseguir fazer um plano B quando a sua forma de jogar foi entendida pelos adversários e não evitou uma queda a pique que levou à descida de divisão. Depois de uma paragem curta, passaria depois por U. Madeira, E. Amadora (duas vezes), V.Setúbal, V. Guimarães e Moreirense, entre Primeira e Segunda Liga, até chegar ao U. Leiria em 2005, onde começou a juntar de forma mais sólida qualidade exibicional e resultados.
Na época seguinte, o Belenenses de Jesus tornou-se uma marca no Campeonato (que terminou na quinta posição) e o treinador conseguiu também chegar pela primeira vez à final da Taça de Portugal, um objetivo de carreira que só não o realizou por completo porque, depois de um encontro pautado pelo equilíbrio, Liedson marcou o único golo do encontro a favor do Sporting aos 88′. A veia fanfarrona começava a ficar mais latente e deixou todos de boca aberta a seguir à derrota frente ao Real Madrid no Troféu Teresa Herrera por 1-0, com golo de Robinho aos 88′. “Fomos mais equipa. O Real, com os jogadores que tem, joga poucochinho, é preciso jogar mais. Se não o faz, o problema é do treinador. Com os jogadores dele, dava-lhe três de avanço, mudava aos cinco e acabava aos dez”, atirou em resposta a Schuster, que tinha beliscado o estilo de jogo dos azuis do Restelo.
Jorge Jesus não passaria do oitavo lugar no Campeonato mas foi no início de 2007/08 que teve os jogos que tanto procurava na carreira: os maiores. Frente ao Bayern, um colosso Bayern com uma constelação de estrelas, o técnico deu voltas e voltas para tentar bater o pé aos bávaros mas não foi além de duas derrotas “curtas”, por 1-0 e 2-0. A resistência do Belenenses, essa, foi elogiada. A resistência e os excessos do costume, como quando acusou um senhor que estava num poste de ser um espião dos germânicos a tentar antecipar surpresas que estava a preparar nesse dia, algo que caiu quando se percebeu que não passava de um eletricista a arranjar um cabo estragado. Não foi a única vez que teve reações dessas e, no Restelo, acabou com um ensaio do rapper 50Cent. “Cheguei ao treino e era um barulhão que não podia. Disse que tinham de sair, mas disseram que tinham pago um grande cachet para lá estarem. Então disse que não queria saber, que eles tinham de sair dali. Era um grande artista internacional e ficou ofendido por estar a dar-lhe ordens, mas foi-se embora sem ensaio”, explicaria mais tarde.
Seguiu-se o Braga, o último patamar antes da chegada aos “grandes”. No início da época, os minhotos ganharam a então Taça Intertoto (prova que o técnico contou como o seu primeiro troféu), chegariam aos oitavos da Taça UEFA mas não foram além da quinta posição de um Campeonato – ainda que deixando bases para a melhor temporada de sempre, com Domingos no comando – que ficou marcado por uma célebre resposta no estádio da Luz, quando perguntaram como poderia um clube “extra grande” ser campeão em Portugal como acontecera muitos anos depois com o Belenenses e em 2001 com o Boavista. “Como pode? Como ganho ao Benfica? Só na Playstation”, disse. Uns meses depois, Luís Filipe Vieira conseguiu resgatá-lo para os encarnados. Era o passo desejado.
Quase uma década na Segunda Circular, entre calinadas, mind games e o fatídico 90+2′
Com os jogadores que estavam no plantel, Jorge Jesus recebeu três reforços de peso para montar uma autêntica máquina de futebol sobretudo do meio-campo para a frente com Javi García como ‘6’, Ramires e Di María como interiores mas com funções diferentes na dinâmica da equipa, Pablo Aimar como ’10’ e Saviola em dupla na frente com Óscar Cardozo. Cinco anos depois, mesmo tendo sido uma luta até à última jornada, o Benfica voltava a ser campeão, juntando ainda a Taça da Liga e uma chegada aos quartos da Liga Europa. No entanto, o efeito Villas-Boas tomou conta da realidade nacional na época seguinte, deixando as duas épocas, já com Vítor Pereira à frente dos dragões, como um verdadeiro desafio às capacidades de gestão de Jesus. Falhou mas foi seguro.
Até 2013, o técnico ainda ganhou duas Taças da Liga e chegou por uma vez aos quartos da Liga dos Campeões, mas os dias fatídicos em que perdeu o Campeonato (com o célebre golo de Kelvin aos 90+2′), a Liga Europa (mais um golo aos 90+2′ do Chelsea, desta vez de Ivanovic) e a Taça de Portugal (com dois golos sofridos quase de rajada na segunda parte) colocaram tudo em xeque – incluindo as próprias capacidades do treinador em comandar um clube “grande”. A imagem da queda de joelhos no relvado do Dragão ou do empurrão de Cardozo no Jamor andou na cabeça dos adeptos encarnados demasiado tempo. Aí, Luís Filipe Vieira bateu o pé e manteve o treinador que já antes tinha sido sondado pelo rival FC Porto e recebera propostas milionárias da Rússia e da Turquia. Os dois anos seguintes deram-lhe razão. E Jesus aprendeu nessas duas semanas tanto como em duas décadas.
Benfica (já) tirou Jesus da foto do bicampeonato. E não o deixa entrar no Seixal
Em 2013/14, o Benfica ganhou Campeonato, Taça de Portugal e Taça da Liga, caindo apenas nos penáltis na final da Liga Europa diante do Sevilha (onde os encarnados voltaram a ser melhores ao longo do jogo). Na temporada seguinte, mais um Campeonato, outra Taça da Liga e a Supertaça. No entanto, as águias voltaram a ficar pela fase de grupos da Champions. Nesse verão de 2015, enquanto o clube da Luz tentava encontrar uma solução quase “disfarçada” de promover a saída do técnico para o estrangeiro, o rival Sporting antecipou-se na “jogada” e fez o impensável, assegurando a contratação de Jesus. O filme repetiu-se, os leões jogaram como há muito não se via com as melhores versões de William Carvalho, Adrien, João Mário, Teo Gutiérrez ou Slimani, mas a boa entrada com mind games à mistura a mexerem no então Benfica de Rui Vitória foi demasiado esticada, a ponto de passar de fraquezas para as forças do adversário. Foi até à última jornada mas o Sporting falhou o título.
Ao longo da passagem por Alvalade, onde ganhou uma Taça da Liga e uma Supertaça, Jesus foi-se queixando em várias ocasiões da falta de uma “estrutura” para sustentar o sucesso. Mas foi também dentro do insucesso, com o limite mais extremo da invasão à Academia em Alcochete a poucos dias da final da Taça de Portugal com o Desp. Aves (que viria a perder por 2-1), que o técnico completou o ciclo em Portugal que começara no Amora quase 30 anos antes. O produto do futebol apenas com o primeiro ciclo completou o seu doutoramento. “Fui formado numa faculdade, foi onde passei como jogador. Essa é que foi a minha formação. Não tirei uma disciplina de professor de Português, sou é treinador de futebol. Dou calinadas, como tanta gente dá calinadas, mas o importante é que não as dê nas minhas ideias e no meu diálogo com os jogadores. E essas ideias têm de ser passadas com muita clareza e objetividade”, sublinhou numa entrevista ao programa “Alta Definição”, da SIC.
O último estágio do “louco pela perfeição” que canta, dança e valoriza o sentimento
Subidas à parte, e entre duas finais da Liga Europa perdidas, Jorge Jesus chegou aos 64 anos com 12 clubes como treinador, três Campeonatos, uma Taça de Portugal, seis Taças da Liga e duas Supertaças – além da tal Intertoto ganha em 2008. Mas também foi nas derrotas que teve vitórias para hoje ser considerado um técnico completo. Quando saiu para a primeira aventura no estrangeiro, no Al-Hilal da Arábia Saudita, onde ganhou uma Supertaça e deixou a equipa no topo da classificação, tinha frequentado todas as carreiras por onde podia ter passado. E não sendo homem de arrependimentos, a única que lhe acrescentaria algo mais tinha sido a de inglês.
Jorge Jesus leva o Al Hilal à conquista da Supertaça saudita
Jesus sempre considerou que “o futebol não é uma ciência exata, é a ciência de um treinador”. E não achando que seja um “técnico duro”, assumiu-se como alguém “louco pela perfeição”. Por isso, evoluiu de patamar em patamar. Primeiro, a parte tática. O arriscar dos três defesas com bola quando poucos ainda tinham coragem de fazê-lo. As zonas de pressão mais altas para chegar o mais rápido possível à baliza contrária mantendo o adversário longe da sua. A subida dos laterais para dar largura ao jogo, a utilização de dois avançados para dar profundidade ao jogo, o recurso a dois médios mais centrais para dar equilíbrio ao jogo, a aposta em dois criativos a jogar de fora para dentro para desequilibrar o jogo. Com algumas nuances justificadas pelas características dos jogadores que tinha à sua disposição, Jesus assentou o seu futebol na mesma ideia ao longo de vários anos. Agora, refinou-o.
Mas o grande mérito do técnico foi perceber que o futebol é um jogo de jogadores, com táticas mas que também se decide nos pormenores fora de campo. Hoje, entre elogios atrás de elogios sobre a forma como conseguiu que o seu estilo “europeu” quebrasse por completo os paradigmas do Campeonato brasileiro, percebe-se que o Flamengo deixou de ser um gigante adormecido porque também deixou de se comportar como tal: entre a planificação dos treinos, os estágios, as viagens em voos charters e passando por portas de entrada e saída reservadas para evitar mais desgaste físico, o dinheiro que sempre houve como reflexo da recuperação financeira dos últimos tempos foi investido numa estrutura para ganhar que revelou ser superior à dos adversários diretos. Um autêntico lifting feito por alguém que sempre demonstrou também um particular cuidado com a imagem.
Da parte tática e técnica para a questão mental de como trabalhar uma equipa, passando pelas vertentes físicas e de recuperação e pelas ferramentas necessárias para colocar um grupo de jogadores mais perto do sucesso, Jesus teve cinco décadas ligadas ao futebol quase a trabalhar para cinco meses de sonho no Brasil, a terra da avó. “O futebol deu-me tudo: independência económica, ter posses para ajudar a minha família, cresci como homem, a ser responsável, a saber viver com as regras da sociedade”, admite. Esta noite, no Maracanã, vai voltar a dar aquilo que teve como nunca desde que chegou ao Rio de Janeiro: reconhecimento. Aquele que já tinha antes de os minutos 88 e 90+2 terem passado de pesadelo a sonho. Aquele que hoje está multiplicado pelos minutos 88 e 90+2.
“A relação com o Flamengo foi um casamento perfeito. Isto hoje teve um significado para além de ser treinador, reconheceram em mim uma pessoa que pode ser referência do Flamengo mas não só. Sei que mexo com as crianças e espero ser um exemplo para os jovens do Rio de Janeiro. No Brasil aprendi muita coisa, tenho aprendido com um povo muito carinhoso. Nós não somos assim. Isso é uma componente importante. Valorizo o sentimento”, disse na segunda-feira, quando foi distinguido como Cidadão Honorário da cidade maravilhosa. “Este clube provou mais uma vez que é único. É um amor e uma paixão que contagia e eu já estou contagiado pelo Flamengo. Eles aqui não têm conhecimento do futebol da Europa, achavam que era só mais um mas eu não sou mais um, provei que não só mais um. A dobradinha era um sonho que trazia na cabeça e é o melhor momento da minha carreira. A porta de Portugal acho que está cada vez mais fechada. Grandes clubes europeus? É esse o meu grande objetivo, vou lutar por isso”, tinha referido na véspera, no final de um desfile com mais de um milhão de pessoas nas ruas.
Por uma questão de intuição, e até contra o conselho do agente Pini Zahavi que lhe recordou várias vezes que o Campeonato do Brasil é uma autêntica máquina de triturar treinadores, Jorge Jesus quis assinar pelo Flamengo. Teve propostas de Itália, que recusou por não ambicionarem a muito no plano europeu. Teve ofertas de Inglaterra, que recusou por serem clubes que não lutam pela Premier League. Teve abordagens de mercados mais periféricos, que recusou porque o dinheiro não é tudo aos 65 anos. Teve possibilidades de seleções, que recusou porque não quer deixar a adrenalina do treino diário. Hoje, é um técnico e um homem diferente. Que fugiu a polémicas com Renato Gaúcho mesmo depois da goleada por 5-0, que encarnou o espírito festivo do Rio a cantar e dançar funk no autocarro panorâmico, que foi idolatrado por jogadores que o tratam por “mister” e que se renderam ao trabalho mesmo assumindo a condição de habituais suplentes, sendo Rodinei um exemplo paradigmático disso mesmo. Por intuição, acredita agora que vai receber aquele projeto europeu com que sempre sonhou. E a intuição foi a melhor conselheira há cinco meses porque foi assim que refletiu 50 anos de futebol nos dois títulos em 24 horas.
Jesus cita Mariza para falar do futuro: “O melhor de mim está a chegar”