Joana Marques Vidal já informou Marcelo Rebelo de Sousa de que está disponível para continuar como procuradora-geral da República. Depois de, inicialmente, parecer decidida a deixar funções no final do mandato a 12 de outubro, até por considerar que o seu cargo não é renovável, e de ter informado Marcelo dessa sua intenção num primeiro encontro com o Presidente da República, a PGR terá cedido aos muitos apelos recebidos, incluindo os do próprio chefe de Estado. Numa segunda reunião em Belém, que aconteceu nas últimas semanas, Marques Vidal já mostrou essa disponibilidade. A conversa recente entre Presidente e PGR foi completamente ao encontro dos desejos de Marcelo, que da primeira vez não só lhe terá manifestado o apreço pelo trabalho realizado, como solicitado que ponderasse continuar por um segundo mandato, independentemente dos diferentes entendimentos jurídicos que existem sobre o assunto.
A decisão pode mesmo estar a ser acertada nos pormenores finais, para ser apresentada antes do final do prazo do fim do mandato: a 12 de outubro. Aliás, o período de substituição pode decorrer no mês anterior à tomada de posse, ou seja, de facto podia acontecer já a partir de agora, mas as agendas de Costa e de Marcelo obrigam a esperar. O primeiro-ministro parte este domingo, 16, para a primeira visita oficial a Angola — e não é, neste contexto, uma visita qualquer. Marca o reatar das boas relações entre os dois países, depois da tensão diplomática provocada pelo processo da Operação Fizz, que acusou Manuel Vicente, antigo vice-presidente angolano, de ter corrompido um procurador português. Angola recusou notificar o ex-governante dessa acusação, por entender que Vicente goza do regime de imunidade, e o caso acabou num braço de ferro entre as procuradorias gerais dos dois países, com Joana Marques Vidal a assumir-se como o rosto de um Ministério Público que insistia no julgamento do angolano cá, resistindo aos pedidos de Luanda para que o processo fosse enviado para lá — como acabou por ser. Anunciar a recondução da Procuradora Geral em cima da visita recordaria um tema que o próprio Governo, pela boca do ministro dos Negócios Estrangeiros, classificou de “irritante”. Depois, quando sair de Luanda, António Costa segue diretamente para a Áustria, para um Conselho Europeu informal para discutir o tema quente das migrações.
Por seu lado, o Presidente da República, que termina esta sexta-feira o encontro do Grupo de Arraiolos na Letónia, vai ter agenda cheia nos próximos dias, sobretudo pelo norte do país. Assim, os dois só se encontram em Lisboa na sexta-feira, dia 21.
E, por isso, é muito provável que a decisão só aconteça na semana seguinte. Até porque, há ainda que fazer um compasso de espera para que António Costa possa cumprir um formalismo com que já se comprometeu: ouvir os partidos com assento parlamentar sobre o assunto.
Como essa será a semana do regresso dos debates quinzenais, depois das férias parlamentares, o tema será incontornável. Se quiser esvaziar o debate desta pressão, Costa pode querer resolver o assunto nos dias imediatamente anteriores, ou seja, entre segunda e terça-feira, dias 24 ou 25.
Partidos unânimes do elogio. PS menos efusivo
Para já, só o CDS disse claramente que Joana Marques Vidal devia ser reconduzida no cargo, pela voz da líder Assunção Cristas, que desafiou mesmo Marcelo Rebelo de Sousa a ouvir os partidos sobre o assunto. E isto porque a líder dos democratas-cristãos sabe que a opinião dos partidos, da esquerda à direita, sobre o desempenho do cargo pela atual PGR é positiva. Aliás, o próprio secretário-geral do PSD José Silvano deixou mesmo escorregar a sua posição “pessoal”, em declarações na Universidade de Verão do partido, defendendo que Marques Vidal fosse reconduzida. Rui Rio veio a seguir colocar freio na tentação de se “partidarizar uma nomeação que deve ser tudo menos partidarizada”. O elogio estava feito e foi até secundado por alguns nomes que não estando na primeira linha das críticas a Rio marcaram também a sua posição, como o eurodeputado Paulo Rangel, ou a líder da JSD Margarida Balseiro Lopes. Nenhum confirma terem concertado as declarações, mas a verdade é que também não interessava a Rio que se pensasse que estava a entrar em contradição com o que já dissera antes sobre o Ministério Público. Assim, pode apenas dizer que não quer partidarizar o assunto e deixar outros falarem.
No PCP e no BE, também já estava a ser seguida a mesma linha de argumentação oficial do PSD: não falar da recondução para não contaminar o exercício do cargo com posições partidárias contra ou a favor. Ainda assim, os dois partidos elogiaram o exercício de mandato por Joana Marques Vidal. Jerónimo de Sousa, do PCP, reconheceu que “em muitas matérias houve avanços significativos” e o líder parlamentar do Bloco, Pedro Filipe Soares, veio também admitir que “a PGR tem tido um papel muito importante em processos muito relevantes da justiça portuguesa, em particular no combate à corrupção”.
Não que o PS não o tenha feito, mas o afinco com que o fez foi bem menor e logo doseado com a interpretação do que diz a Constituição sobre o mandato. Carlos César disse logo em janeiro — quando a ministra da Justiça deixou o PS nestes maus lençóis ao defender o mandato único do PGR a título individual — que a Constituição não dizia isso. Mas devia dizer, segundo o líder parlamentar do PS. Aliás, esta semana na TSF, veio afirmar que “o mandato não pode ser eternizado”. Claro que deixou, tal como todos os outros partidos, a sua “apreciação positiva” sobre o trabalho de Marques Vidal, mas para logo a seguir avisar que “o exercício desse mandato deve ficar o menos condicionado possível a quaisquer cuidados no sentido da pessoa ser reconduzida ou não. Por isso tenho sobre esta matéria uma opção preferencial para que exista um mandato único independente de estar ou não na lei”.
António Costa blindou a sua decisão, mas no PS vai-se argumentando a toda a volta para sustentar que uma não recondução até protegeria o próximo PGR de ficar associado a uma facção que pressionou aquela leitura constitucional. O contrário também se aplica, isto é, quem prefere olhar para o mandato de PGR como único e mesmo assim aceita reconduzir Joana Marques Vidal fica liberto de futuras associações.
Sempre que o primeiro-ministro foi diretamente questionado sobre o assunto nos últimos tempos, contornou-o sem cerimónias: “Esta matéria não é uma matéria de luta partidária”. Mas a verdade é que o PS não faz a mesma avaliação, que os outros partidos fazem, do mandato de Joana Marques Vidal — o próprio António Costa já se mostrou publicamente descontente com a demora na investigação ao caso Tancos (bem como o próprio Marcelo ou Rui Rio, aliás). No meio socialista, a ação concreta do Ministério Público nos últimos anos é colocada mais como fruto das alterações legislativas que deram maior raio de ação (acesso a informação financeira por exemplo) à investigação judicial, do que propriamente à figura que PSD e CDS escolheram para PGR.
O primeiro encontro antes das férias e o poder de Marcelo
A recondução de Joana Marques Vidal começou a ser tratada por Marcelo antes das férias presidenciais. Mas, no primeiro encontro entre ambos, a PGR mostrou-se irredutível. Para Marques Vidal, colocavam-se três problemas: em primeiro lugar, era já público que ela própria entendia que o mandato não era renovável, na interpretação que fazia da lei. Isso mesmo tinha deixado claro, em 2016, na intervenção que fez num encontro internacional em Varadero e que ficou registada neste vídeo, publicado pela Procuradoria Geral de Cuba. “O mandato tem uma duração única de seis anos”, disse na altura. Além disso, a polémica em torno da recondução deixou a magistrada “muito desconfortável”, descrevem várias fontes ao Observador. Marques Vidal não queria, em nenhuma circunstância, manter-se no cargo sem que a escolha fosse considerada consensual ou havendo qualquer margem para dúvidas sobre o mérito da decisão. Temia, por exemplo, poder ser usada como arma de arremesso político. Nessa linha, via um outro obstáculo: a futura relação com o Governo e, sobretudo, com a ministra da Justiça. O facto de Francisca Van Dunem ter vindo suavizar a posição que tinha assumido na entrevista que lançou a polémica, com o tal esclarecimento de que se tratava, apenas, de uma opinião pessoal, não descansava a Procuradora, que terá deixado claro que não poderia ignorar os prejuízos de uma relação distante — ou até mesmo difícil — com a titular da pasta da Justiça. Ainda para mais tendo em conta que, no debate parlamentar que se seguiu à entrevista da Van Dunem, no início do ano, o próprio António Costa tinha admitido que pensava da mesma forma, apesar de insistir que era prematuro falar sobre o tema. Sendo certo que a nomeação cabe ao Presidente da República, Marques Vidal não queria ser uma imposição na lista de nomes que cabe ao Primeiro-ministro indicar, sabendo que, a partir dali, representaria sempre um problema para Costa.
Preocupações que terá relatado, nesse primeiro encontro, a Marcelo Rebelo de Sousa. Mas, logo aí, o Presidente ter-se-á mostrado bastante persuasivo. Quer pelos elogios ao trabalho desenvolvido na investigação judicial contra a corrupção aos poderes político, económico e até futebolístico em Portugal, quer pela forma como organizou o Ministério Público.
E foram essas capacidades de Joana Marques Vidal que Marcelo foi também elogiando e defendendo junto de António Costa nas reuniões semanais com o primeiro-ministro, tentando mostrar-lhe os custos políticos e sociais da saída de uma PGR defendida por todos os partidos e com uma imagem muito positiva na sociedade, como uma das poucas corajosas que enfrentou os poderes instituídos. Até porque isso pode… valer votos.
No segundo encontro com a Procuradora, o Presidente percebeu que algo tinha mudado. As muitas ‘pressões’ mediáticas e políticas para que continuasse tinham chegado à PGR por muits vias e havia já receptividade nesse sentido. Faltavam as condições políticas ideais. E aqui Marcelo tem um poder determinante: o poder de nomear.
Pode parecer pouco significativo, mas é um grande poder. E tem sido muitas vezes usado. Apesar dos (três) nomes para o cargo de procurador-geral da República serem indicados pelo Governo (normalmente depois de falar com os outros partidos), podem todos ser vetados em Belém. Sucessivamente. É pouco habitual saber-se como se processaram as nomeações. Mas o normal é tudo ser negociado antes de forma a que o nome indicado seja aprovado de imediato. Se isso não acontecer e houver algum braço-de-ferro, teoricamente, o Presidente pode rejeitar todos os nomes que o Governo lhe levar. É por isso que tudo se discute antes. E que é levado muito em conta este poder presidencial. Com pelo menos dois ex-procuradores-gerais, a preferência do então Presidente foi determinante: Souto Moura e Pinto Monteiro.
Agora podemos estar perante uma situação semelhante. Costa pode indicar, mas só Marcelo pode nomear. E a Marcelo não interessa seguramente ser o Presidente que não reconduz a PGR que abriu uma investigação a um ex-primeiro-ministro, ao maior banqueiro do país (e seu amigo) e ao maior clube nacional. Mas Costa também não deve querer um conflito presidencial — com um Presidente com elevados níveis de popularidade — num último ano de legislatura onde a relação com os parceiros da geringonça vai ser tudo menos fácil.
Para já a Presidência fecha-se em copas. “Não há nenhuma novidade sobre este assunto, nada”, diz fonte do Palácio de Belém. Marcelo Rebelo de Sousa já deu a entender que tem a gestão deste calendário na cabeça e que não pretende desviar-se do plano. Por enquanto, publicamente, só tem desdramatizado. “Não há razão para nenhuma dramatização. A democracia é natural, as instituições funcionam, ainda há menos de um ano tomei uma decisão sobre a nomeação do presidente do Tribunal de Contas, vou tomar agora relativamente a chefias militares por proposta do Governo, faz parte da vida das instituições, sem dramatizações”, disse o Presidente da República. Mas no habitual comentário dos domingos na SIC, Marques Mendes já alertou que a não recondução de Marques Vidal ficaria colada a uma“leitura perigosa” de tentativa de condicionamento da investigação judicial.
Seja como for, Marques Vidal saiu de Belém com outro tipo de atitude. Se em agosto, no Ministério Público, todos apostariam na sua saída, o mesmo já não acontecia no final do mês. Os sinais em relação à distribuição de processos e até à arrumação do gabinete, mudaram após o segundo encontro com Marcelo. Que, ao contrário do que chegou a ser noticiado, sabe o Observador, não ficou assim tão indignado com a investigação a Manuel Vicente e muito menos com o tempo que leva o caso Tancos nas mãos do Ministério Público.
As estratégias políticas do PS e do PSD
Para António Costa, a recondução de Joana Marques Vidal não terá custos políticos relevantes. Antes pelo contrário. Poderá até ser uma decisão que o beneficiará eleitoralmente. António Costa, tal como Francisca Van Dunem, não quererão ficar associados a uma possível leitura de tentativa de controle do Ministério Público por parte do Governo que uma eventual não recondução de Marques Vidal poderia promover. Van Dunem, aliás, conseguiu apaziguar a tensão que existia entre o PS e as magistraturas desde o primeiro dia do Governo Sócrates. Foi precisamente esse apaziguamento que Costa pretendia quando a escolheu — e numa altura em que já se sabia Sócrates estava a ser investigado pelo MP.
A saída para a ministra da Justiça não é difícil. Supondo que o segundo mandato da PGR é anunciado antes do debate quinzenal de dia 26, se a ministra for confrontada no Parlamento com as suas anteriores posições, pode sempre dizer que afirmou desde o início que ter defendido um único mandato era uma opinião pessoal.
Aliás, no início de setembro, após um artigo de opinião do eurodeputado Paulo Rangel que defendia a nomeação de Joana Marques Vidal para mais um mandato, era precisamente isso que fontes próximas de Francisca Van Dunem enfatizavam: “Obviamente, que a ministra sabe que a Constituição não impede a recondução da procuradora-geral. As suas declarações de janeiro são uma interpretação pessoal, como já foi explicado na altura pela ministra e pelo primeiro-ministro”. Ou seja, a ministra da Justiça não rejeita(va) a recondução da actual PGR.
Acrescente-se um último ponto: quer António Costa, quer Francisca Van Dunem têm igualmente um curriculum de combate à corrupção, a área em que Joana Marques Vidal é mais elogiada, diz respeito. Como ministro da Justiça de António Guterres, não só indicou José Souto Moura para o cargo de procurador-geral — e em cujo mandato se iniciaram as investigações do processo Freeport ou Apito Dourado —, como apoiou e reforçou a Polícia Judiciária no combate à corrupção. Já Van Dunem, ela mesma procuradora-geral adjunta (agora juíza conselheira), foi diretora do DIAP de Lisboa entre 2001 e 2007, tendo a 9.ª Secção daquele departamento, que investiga em exclusivo a criminalidade económica-financeira, tido uma crescente importância sob a sua direção.
Do lado do PSD, a última declaração de Rui Rio também lhe permite uma ‘saída limpa’, após ter chegado a fazer um balanço negativo da atuação do Ministério Público. “A partidarização deste tema [PGR] é um erro”, disse, acrescentando que não falará do tema “enquanto o primeiro-ministro e o Presidente da República não colocarem o problema em cima da mesa”. Foi a estratégia que seguiu logo nos debates com Pedro Santana Lopes, na disputa pela liderança do PSD, depois das críticas que tinha deixado no primeiro confronto. A partir daí, Rio justificou que o “balanço negativo” era uma “apreciação global sobre o sistema de Justiça” e não uma crítica a Marques Vidal. Ora, se num primeiro olhar, a distanciação pode ser vista como um ‘entregar’ de toda a iniciativa política a António Costa sem tomar parte numa decisão que é um dos assuntos políticos do momento, numa outra análise permite também a Rio não se pronunciar sobre algo que pode estar já fechado e ir assim ao encontro da vontade do Presidente da República, que não gostou nada de ver o assunto servir para fazer política partidária. O que não quer dizer que não tenha feito perceber o sentimento do PSD sobre o assunto. Para além dos seus críticos, já apareceram no apoio à PGR quer o secretário-geral do partido, José Silvano, quer a líder da JSD, Margarida Balseiro Lopes.
Como reagirá o MP a um segundo mandato de Marques Vidal
A recondução de Joana Marques Vidal sempre foi vista com bons olhos dentro do Ministério Público, mas não propriamente num tom festivo.
Expliquemos. Em primeiro lugar, é opinião generalizada na classe que o procurador-geral só deve fazer um mandato de seis anos — para reforçar a independência com que exerce as suas funções e impedir eventuais alianças com o poder político para a obtenção de um segundo mandato. Tem sido essa, aliás, a opinião expressa pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, liderado por António Ventinhas. A visão é estrutural e abstrata e nada tem a ver com Joana Marques Vidal — cujo mandato merece palavras de elogio de Ventinhas e dos procuradores contactados pelo Observador.
Por outro lado, há algo que desagrada de forma generalizada aos magistrados do MP no discurso mediático de apoio à recondução da PGR: a ideia de que o combate à corrupção só existe por causa de Joana Marques Vidal. “O Ministério Público é um corpo de magistrados e esse combate nasce de um esforço colectivo e de especialização que nasceu há muitos anos com Cunha Rodrigues”, diz um desses procuradores, aludindo ao procurador-geral que exerceu as funções entre 1984 e 2000.
Apesar desse desagrado — que é dirigido à comunicação social e que tem raízes na ideia, muito cara ao MP, de coletivo em detrimento do individualismo —, muitos procuradores fazem um balanço positivo da procuradora-geral e vêm com bons olhos a sua continuidade.
Joana Marques Vidal ganha muito por ter sido a sucessora de Fernando Pinto Monteiro. Ou seja, o seu mandato vence claramente pelo contraste. Se Pinto Monteiro entrou em 2006 focado em acabar com o “poder feudal” do “conde, visconde, marquesa e duque” do MP, utilizando os poderes hierárquicos de forma clara para impor a sua visão aos procuradores, Joana Marques Vidal fez precisamente o contrário.
Não foi por acaso que os conceitos da “autonomia externa” — “sem a qual não existe uma verdadeira independência do poder judicial” — e da “autonomia interna” — “reconhecendo a competência própria de cada magistrado” — ocuparam uma parte importante do seu discurso de tomada de posse no dia 12 de outubro de 2012. Durante os seis anos do seu mandato, Marques Vidal foi fiel a um aprofundamento da autonomia. Ao contrário de Pinto Monteiro, não avocou nenhum processo mediático, nem as eventuais divergências internas na magistratura chegaram à praça pública. Apostou, sim, em criar condições para que os magistrados das diferentes categorias hierárquicas, nomeadamente o procurador que tem o processo nas mãos, pudessem levar a cabo o seu trabalho. Os procuradores, nomeadamente os que dirigem os processos mais mediáticos, reconhecem que tiveram todas essas condições hierárquicas. Mesmo quando foram cometidos alguns exageros, como no caso da investigação ao ministro Mário Centeno pelo alegado crime de recebimento indevido de vantagem devido a bilhetes para ir ver um jogo de futebol do Benfica.
Outro ponto decisivo em termos internos foi a forma como apostou numa organização mais clara do Ministério Público, nomeadamente no que diz respeito ao exercício de competências do Departamento Central de investigação e Ação Penal (DCIAP). Criado em 1999, por Cunha Rodrigues, como um órgão da Procuradoria-Geral da República, o DCIAP tem competências de coordenação a nível nacional e é aquele onde se investigam os casos mais complexos da criminalidade económico-financeira que tenham ocorrido em diferentes distritos judiciais. Certo é que isso nem sempre aconteceu, muito por culpa da falta de magistrados que existiu no DCIAP durante muitos anos e da concorrência clara que existia com o Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa.
Marques Vidal não só terminou com essa concorrência, como nomeou uma pessoa fulcral para o sucesso do seu mandato: Amadeu Guerra. Olhado com desconfiança quando foi conhecido o seu nome como sucessor de Cândida Almeida, o procurador-geral adjunto, que vinha da área administrativa, pegou num departamento caótico e descredibilizado — muito por via das declarações públicas da sua diretora e das intervenções do procurador-geral Pinto Monteiro — e deu-lhe uma força que nunca tinha tido até agora.
Amadeu Guerra não só organizou o DCIAP de forma eficiente em termos administrativos e de investigação, como conseguiu atrair os melhores procuradores do DIAP de Lisboa e de outros departamentos e deu autonomia aos magistrados que têm os processos a seu cargo. Os procuradores do DCIAP reconhecem-lhe algumas das maiores qualidades de qualquer chefe: acredita no trabalho do seu subordinado e protege-o de qualquer influência externa.
Foi assim que nasceu a Operação Marquês, o Universo Espírito Santo, o caso Vistos Gold, a Operação Lex, o caso José Veiga e tantos outros casos judiciais que ajudaram a cimentar a ideia de que o mandato de Joana Marques Vidal é marcado pelo facto de que “não há privilégio nenhum pelo facto de se ser magistrado, político ou banqueiro”. As palavras são do ex-procurador-geral Souto Moura (2000/2006), mas resumem bem a visão que os procuradores ouvidos pelo Observador defendem para o MP.
Com Joana Marques Vidal ou sem Joana Marques Vidal
Desde que começou o debate público sobre a eventual recondução de Joana Marques Vidal, têm surgido nomes de hipotéticos substitutos, não se sabendo, pelo menos de forma oficial, se estão ou não na lista que António Costa gostaria de apresentar a Marcelo Rebelo de Sousa. Um deles, provavelmente o mais bem colocado caso o plano de manter Marques Vidal acabasse por não se concretizar, seria o do seu número dois. O vice-procurador-geral da República, Adriano Cunha, é visto como um homem muito discreto que, eventualmente, poderia continuar a linha seguida pela atual procuradora-geral. Foi escolhido por ela — e eleito, por voto secreto, pelo Conselho Superior do Ministério Público — deixando a função de procurador-geral adjunto que ocupava na altura.
O nome de Orlando Romano, antigo diretor nacional da PSP, terá sido também considerado nos bastidores do PS, avançou o jornal Sol, há três semanas, mas estará fora das escolhas de Costa, apurou o Observador, pelas ligações aos socialistas e ao próprio primeiro-ministro. Na eventual lista, caberia ainda o nome de João Silva Miguel, atual diretor do Centro de Estudos Judiciários, que é juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, mas fez toda a carreira como magistrado do Ministério Público.