O ex-secretário de Estado do Desporto — que durante oito anos foi o coordenador do PS na comissão parlamentar de Orçamento e Finanças — diz que “existiu má fé” do Governo na apresentação da proposta de descida do IRS e que com o complemento à descida do PS se pôs “fim ao ensaio de que só se iam começar a baixar impostos”.
João Paulo Correia diz que Pedro Nuno Santos “tem legitimidade” para impor um prazo de 60 dias ao primeiro-ministro para negociar a valorização de carreiras da função pública porque “se sabe agora que o país dispõe de condições de ir mais além na despesa do Estado”.
Sobre o desafio para um orçamento retificativo, feito pelo PS ao Governo, João Paulo Correia diz que “o silêncio da AD é ensurdecedor” e teme que também na valorização de carreiras (como a dos professores, policias ou oficiais de justiça), as propostas do PSD possam ser “medidazinhas” como a do IRS.
[Ouça aqui o Sofá do Parlamento com João Paulo Correia]
Embuste foi a palavra utilizada pelo PS para classificar o discurso do Governo quanto à descida do IRS. Porque é que durante o debate o PS também não procurou esclarecer o alcance da proposta do PSD?
O choque fiscal no IRS foi uma das principais bandeiras da AD na campanha eleitoral. Foi um dos principais compromissos para esta legislatura. O primeiro-ministro inicia o seu discurso no Programa do Governo exatamente por essa medida. Tendo escolhido como primeira medida, que gerou um enorme aplauso até das bancadas dos partidos que formam o Governo, a perceção pública geral foi que o Governo estava a anunciar um choque fiscal no IRS de 1500 milhões de euros. Veio-se a saber que não era assim. O Governo e o primeiro-ministro nunca procuraram no debate dizer o seu contrário. Aos olhos dos portugueses, esse anúncio acabou por ser encarado como um embuste, uma mentira, um engano. As pessoas sentem-se enganadas num dos principais compromissos de campanha.
Acha que existiu má fé por parte do Governo?
Claramente, existiu má fé. Procuraram manipular o debate parlamentar e chegámos à conclusão que afinal, não se trata de nenhum choque fiscal. Uma descida do IRS até o 8º escalão num montante máximo de 170 milhões de euros, quando o Governo do PS propôs ao Parlamento, e foi aprovado no Orçamento de Estado de 2024, mais de 1300 milhões de euros. Isto acaba por destruir o ensaio que o Governo procurou fazer no debate do programa de que só a partir de agora é que os impostos vão começar a descer. Foi isso que foi vendido na campanha pela AD e pelo Luís Montenegro e aqui no debate parlamentar foi isso que procuraram fazer. É mentira. A carga fiscal do nosso país é inferior à média europeia, é inferior à de Espanha, de França, e da Alemanha. O que é certo é que, apesar do IRS, do IRC e do IVA, que são os principais impostos, terem descido desde 2016, foram milhares de milhões de euros que deixaram de ser arrecadados pelo Estado e o que é certo é que a receita subiu, apesar da tributação descer. Porque é que isso aconteceu? Porque temos mais população empregada, o salário mínimo subiu, o salário médio subiu e é natural que, apesar da tributação descer, aumente a receita com isso fruto do crescimento económico do país.
Mas também por causa disso, o balão não ficou insuflado por parte do PS? Havia condições orçamentais para realmente duplicar a descida do IRS?
Na campanha, o PS alertou várias vezes para as contas erradas da AD. O nosso cenário macroeconómico está provado que é de longe o mais realista. Estamos até para saber de que forma é que o Governo vai cumprir as promessas que anunciou na campanha e também no discurso de abertura. A partir de agora tem de se seguir aquela velha máxima: ver para crer. É preciso conhecer em concreto as medidas, lê-las e estudá-las ao pormenor porque o Governo vai certamente cair na tentação de manipular novamente a informação e o discurso. Julgo que os portugueses perceberam que não vão ter nenhum choque fiscal no IRS e ainda bem que a imprensa tem denunciado e procurado passar a informação correta. Quem trouxe na verdade um choque fiscal no IRS foi o anterior Governo, que para 2024 traz uma redução de mais de 1.300 milhões de euros contra 170 milhões. O que demonstra, de uma vez por todas, que não só não é este Governo que vai iniciar a descida dos impostos e que o anterior Governo, ao longo dos anos, procurou dar continuidade à descida dos impostos.
O secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, diz que o Governo vai ter que cortar em algum lado porque acabou por rever o excedente em baixa. Isto não é sinal de que o Governo está disposto a investir na valorização, por exemplo, das carreiras públicas?
O Governo anunciou uma descida do IRC e também, por falar nessa proposta, convém lembrar que a taxa efetiva de IRC em Portugal é de 17%. O Governo prometeu descer dois pontos percentuais de 21 para 15 no espaço da legislatura. É uma boa notícia para 60% das empresas que pagam IRC, há 40% de empresas que não pagam, e nessas estão muitas micro, pequenas e médias empresas. Apesar de ao longo dos últimos os governos do PS terem tomado medidas na descida do IRC, aos olhos da direita e da AD não parece ser suficiente. O que é certo é que o investimento estrangeiro em Portugal atingiu níveis históricos e recordes sucessivos, ou seja, não foi por conta do IRC e da política fiscal que as empresas deixaram de investir e que o país deixou de ser atrativo ao investimento direto estrangeiro. Vamos conhecer em concreto o que é que o Governo propõe no compromisso com os professores, com os polícias e com os profissionais de saúde, para perceber exatamente o que está em cima da mesa e quanto custará. Porque pode ser uma medidazinha ao nível do que aconteceu agora com o IRS e seja também um embuste que venha defraudar as expectativas, porque o Programa do Governo não bate certo com aquilo que é a perspetiva deste excedente orçamental.
No caso do programa de estabilidade, o PCP e o Bloco de Esquerda vão forçar a votação. O PS está obrigado a votar a favor, tendo em conta que é apenas uma atualização do programa apresentado pelo anterior Governo?
O PS não está obrigado a votar a favor. O PS e o líder do partido têm vincado que cabe liderar a oposição. O PS apresentou medidas no programa do Governo. Pedro Nuno Santos apresentou medidas que fazem parte do programa eleitoral, que foi também sufragado e que esteve a cerca de pouco mais de 50 mil votos de ser o mais votado. Tem essa legitimidade, diria que até tem o dever de defender todas as propostas do programa eleitoral. Os partidos têm que se bater por causas e ideias que defenderam na campanha eleitoral e, por isso, é que receberam o voto dos eleitores. Foi muito importante que o líder do PS, no discurso de encerramento do Programa do Governo, tenha apresentado cinco medidas que vêm também fazer a diferença, como por exemplo o caso da abolição das portagens nas ex-SCUT.
Orçamento Retificativo. “Silêncio começa a ser ensurdecedor”
E é por isso também que este PS e Pedro Nuno Santos querem um orçamento retificativo, para mostrar uma viragem face à anterior governação?
Há áreas e matérias que são compromissos comuns a vários partidos e o PS está obviamente interessado em viabilizar esses compromissos que também são do Partido Socialista, nomeadamente os que identificou o secretário-geral sobre a valorização de determinadas carreiras na administração pública. São áreas que mereceram compromissos de alguns partidos, e do PS também, e por convicção o secretário-geral demonstrou essa disponibilidade imediata e por escrito ao líder do PSD.
E parece-lhe que o líder do PSD está a tentar empurrar estas matérias para o Orçamento do Estado de 2025?
É um silêncio que já começa a ser ensurdecedor. Luís Montenegro conseguiu destruir o estado de graça do Governo. Se existia, durava há 15 dias e foi destruído com este embuste e com o engano do IRS. Temos que esperar para perceber exatamente quais são as propostas em concreto. Quando o Governo diz, vamos negociar com os professores e com os polícias, temos que saber exatamente qual é a proposta, quanto é que isso custa, e se corresponde ao compromisso que o Partido Socialista também deseja que seja resolvido.
Mas neste caso a questão é quando é que isso vai ser apresentado ao país? Por exemplo, Luísa Salgueiro, José Luís Carneiro e Augusto Santos Silva, já defenderam que o PS deve estar aberto à possibilidade de negociar o Orçamento do Estado. Concorda com esta linha de pensamento?
Concordo que o Governo tem, de imediato, responder à disponibilidade manifestada pelo secretário-geral do PS de colocar em cima da mesa uma proposta que responda exatamente aos compromissos de campanha nestas áreas. Acho que isso é fundamental. Seria gritante, seria mais uma desilusão para muitos portugueses, que isso não viesse a acontecer.
E quanto ao resto, segue o “praticamente impossível” de Pedro Nuno Santos? Na aprovação do orçamento
Se dúvidas existissem antes do debate do programa do Governo, o embuste do IRS mostrou que o país precisa muito e cada vez mais de um PS que lidere a oposição e como alternativa e que faça a diferença em relação ao Governo. Há um mar imenso que afasta o PS e o PSD.
E essa polémica afastou ainda mais?
Essa polémica afastou ainda mais.
Acha que há condições para o país viver em duodécimos caso o orçamento chumbe? No passado a rejeição do orçamento significou a queda do Governo
Essa é uma boa pergunta para se fazer ao Presidente da República.
Governo de António Costa: “Não caiu por conta dos resultados da governação”
Integrou o Governo durante os últimos dois anos. O PS acabou por ser o principal responsável de ter desbaratado a maioria absoluta ou a culpa foi mesmo do famoso parágrafo?
O PS governou o país durante oito anos com resultados. Virou a página da austeridade, enfrentou a pandemia, recuperou o país do impacto pandémico e recolocou o país na senda do crescimento. O Governo não cai por conta dos resultados da governação, que muitos deles até estão no pódio da União Europeia em várias frentes. Foram as circunstâncias que todos conhecemos que levaram à queda do Governo. Neste momento, como militante, dirigente e deputado eleito pelo PS, entendo que o mais importante é falar daqui para a frente.
Na carta enviada a Luís Montenegro, Pedro Nuno Santos pediu a negociação da valorização das carreiras da função pública em 60 dias. Tendo em conta que o PS esteve os últimos oito anos no Governo, pode exigir prazos a um executivo que acaba de entrar em funções?
Sim, por duas razões. Esse também era o compromisso comum, não só do PS. E depois porque há algumas semanas tomámos conhecimento, porque foi apurado o saldo orçamental de 2023, e sabemos que o país dispõe de condições de ir mais além na despesa do Estado em relação a alguns compromissos desejados, como esses dos professores, polícias, profissionais de saúde e oficiais de justiça. Isto não era possível saber-se na altura da campanha eleitoral. Os compromissos assumidos pela AD foram assumidos no âmbito do cenário macroeconómico que a AD apresentou no programa eleitoral e prometeu aos portugueses que iria cumprir, com um crescimento económico de cerca de 3,5% até 2028, e não em função daquilo que é agora a perspetiva das contas públicas. No nosso entender, hoje o país dispõe de melhores condições para fazer esses avanços, fruto daquilo que foi a governação do PS.
E por isso pode agir mais rapidamente?
E por isso pode agir mais rapidamente, sim