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MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

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Joaquim Vieira: "Saí do Expresso por ter publicado uma notícia sobre Berardo ter dois processos por evasão fiscal"

"Mário Soares ameaçou processar-me, Balsemão processou-me e Saramago não processou porque estava morto". Joaquim Vieira em entrevista a João Miguel Tavares: a prisão, os despedimentos e a perseguição.

Joaquim Vieira é o terceiro convidado do Artigo 38 da Rádio Observador. O nome do programa de entrevistas de João Miguel Tavares foi escolhido por 38 ser o número do artigo da Constituição sobre a liberdade de imprensa. E os seus entrevistados serão jornalistas influentes da sociedade portuguesa.

Jornalista, autor de biografias não autorizadas de Mário Soares, Francisco Pinto Balsemão e José Saramago, Joaquim Vieira tem por norma contar tudo, uma vez que “a biografia é um retrato de corpo inteiro da pessoa”. Resultado: “O Mário Soares ameaçou processar-me, o Balsemão processou-me e o José Saramago não processou porque já estava morto”.

[Ouça aqui a entrevista a Joaquim Vieira]

Entrevista a Joaquim Vieira

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Nesta conversa, Joaquim Vieira fala do momento em que foi preso durante o Estado Novo,  da tortura do sono que não fez dele um herói, tendo confessado. Conta também como chegou ao jornalismo (porque era melhor do que ser datilógrafo) começando pela RTP até entrar no Expresso, saindo depois da direção por ter publicado uma notícia sobre Joe Berardo — que tinha acabado de se tornar sócio de Francisco Pinto Balsemão — ter dois processos por evasão fiscal. O jornalista recorda ainda como era Marcelo Rebelo de Sousa como diretor do Expresso e explica como ele próprio foi alvo de perseguições como forma de eventual chantagem por próximos de Mário Soares.

Sabes que eu descobri uma coisa a olhar para a tua página da Wikipédia. Nós temos um passado comum, salvo seja. Fomos os dois estudantes do Instituto Superior Técnico.
Olha não sabia que tinhas sido. (risos)

O que é que tu andaste a estudar…
Estudantes frustrados pelos vistos.

O meu profundamente frustrado. Eu só lá andei dois anos e meio em engenharia química, mas depois tive que fugir dali.
Eu ainda andei uns quatro anos, talvez.

E em que engenharia?
Engenharia de Minas. Tinha a paixão pela geologia.

A sério?
Na engenharia, o mais próximo da geologia era minas (risos).

As minas imagino que tenhas frequentado pouco, mas acabaste a frequentar prisões ainda do tempo do Estado Novo. Como é que foste parar a Caxias e a Peniche?
Fui preso por estar supostamente ligado a uma organização de extrema esquerda.

Supostamente?
Sim. Não, não estava…

Ainda não confessas nada?
Não, não estava. (risos) Na verdade não estava mas ajudava as pessoas. A PIDE elaborou uma acusação, dizendo que eu estava… e essa acusação foi dada como provada pelo Tribunal Plenário quando me julgaram e fui condenado a ano e meio de prisão.

E quanto tempo lá estiveste? Quase isso?
Quase ano e meio. Porque, entretanto, no fim, em finais de 1973, houve eleições para a Assembleia Nacional e o Marcelo Caetano, na altura chefe do Governo, decidiu a propósito desse ato eleitoral em que, como era costume, só foram eleitos deputados do partido único na Assembleia, celebrar e promulgar uma amnistia para os presos políticos. E acontece que o único preso que saiu com a amnistia fui eu. (risos)

A sério?
Estava a poucas semanas de acabar de cumprir a sentença.

Tiveste uma amnistia privada de Marcelo Caetano.
Exatamente. Tive essa honra porque a amnistia reduzia a pena em seis meses aos que estavam condenados a prisão maior, que era dois anos ou mais de dois anos, e ordenava a libertação imediata daqueles que estavam condenados a prisão correcional, que era prisão apenas até dois anos. E eu era o único que estava em prisão correcional.

Muito bem, mas tiveste de passar por aquelas coisas tipo torturas?
Tortura do sono. Isso era sistemático.

Era?
Sim. Toda a gente era submetida a isso, praticamente. Então quando havia um processo já com acusação ou suspeita de ligação a uma organização clandestina era inevitável.

"A certa altura, bastava um toquezinho com uma moeda em cima da mesa, que era a única peça de mobiliário que havia na sala para a pessoa já naquele estado de alerta ficar completamente desorientada da cabeça a tentar dormir, ficar acordada. Aquilo funcionava como uma espécie de tiro de canhão dentro da cabeça da pessoa. No meu caso, durante cinco dias e cinco noites"

Há quem diga que quem passa por isso não gosta muito de falar da experiência. Tu alguma vez falaste disso?
Não, se me perguntarem falo. Não tenho nenhum problema.

Então eu pergunto-te. Como é que isso funcionava?
Funcionava não deixar dormir a pessoa durante o dia, durante a noite. Dias e noites seguidos até obterem qualquer informação ou não obterem, consoante a capacidade de resistência do prisioneiro. A certa altura, bastava um toquezinho com uma moeda em cima da mesa, que era a única peça de mobiliário que havia na sala — era uma mesa e uma cadeira ou duas cadeiras, não me lembro bem — para a pessoa ficar completamente desorientada da cabeça . Aquilo funcionava como uma espécie de tiro de canhão dentro da cabeça da pessoa. No meu caso, [foi] durante cinco dias e cinco noites. A partir de certa altura, apareceu o inspetor do processo, o inspetor Tinoco, aliás muito conhecido dentro da sala de interrogatórios, e apontou para a janela com grades e dizia-me: “Olhe, é mais fácil o senhor sair por esta janela do que sair pela porta sem confessar”. Portanto era assim, também havia este elemento de tortura psicológica.

E tu aguentaste?
Acabei por confirmar as informações que eles já tinham obtido de outras pessoas que tinham sido presas antes de mim.

Isso é uma coisa que dói muito?
Não sou um herói nesse aspeto. Se não tivesse confessado, provavelmente a minha vida teria sido completamente diferente.

A sério?
Sim, porque era quase obrigado ou condicionado a seguir uma certa carreira política, de certa maneira. Mais tarde, com aquilo que eu aprendi em relação à política, não estava nada interessado em seguir uma carreira política na extrema esquerda, que era o caso. Mas a partir daí também essas aspirações praticamente ficaram eliminadas ou postas de parte. Enfim, ainda militei até depois do 25 de abril, mas não durante muito tempo.

MELISSA VIEIRA/OBSERVADOR

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Então e depois saíste também neste caso ainda antes de abril, saíste para França não é?
Fui libertado no fim de 1973 e depois por causa do mesmo processo corri o risco de voltar a ser preso e cumprir uma pena que estava prevista ser de dois a oito anos de cadeia. Resolvi exilar-me, mas com tanta sorte estive no exílio apenas pouco mais de dois meses porque, entretanto, interpôs-se o 25 de abril na minha vida e na vida dos portugueses.

E como é que iam as minas? E, então, o jornalismo?
Fui preso quando já estava a estudar no Técnico há quatro anos. Quando regressei de Paris voltei a inscrever-me no Técnico para acabar o curso, mas entendi que não devia estar na dependência económica da família porque isso já existia há muitos anos e comecei à procura de trabalho. Quis ser um trabalhador-estudante mas, entretanto, o Governo Provisório entendeu oferecer a um grupo de jovens candidatos a jornalistas um curso de formação de jornalismo em Paris. Isso era uma coisa curiosa, porque não havia cursos de formação de jornalismo em Portugal. E eu vi o anúncio e como andava à procura de trabalho resolvi candidatar-me. Aliás, eu na altura estava a trabalhar como datilógrafo. E claro que o jornalismo era mais interessante do que ser datilógrafo.

Curiosamente, trabalhava numa empresa de navegação chamada Soponata e preenchia manifestos de carga dos navios. E a sede dessa empresa era onde é atualmente a sede do jornal “Sol” e do jornal “i”. Há estes cruzamentos indiretos com a história do jornalismo. Eu vi o anúncio desse concurso — eram trinta candidatos que eles selecionavam e resolvi candidatar-me. Havia quatrocentas e tal aspirantes jovens à frequência do curso. E eu tive a sorte de ser selecionado e fui para Paris estudar jornalismo nesse mesmo ano de 74 ainda. E foi assim que mudei por completo a minha vida.

E tu quando voltas para Portugal tens logo o privilégio de entrar para a RTP, é isso? Foi logo. Começaste por cima.
Sempre quis fazer jornalismo escrito. Na altura em que regressámos já se estava no terceiro Governo Provisório, que não sabia o que havia de fazer de nós. Tinha lá uns jovens a estudar jornalismo em Paris, mas o objetivo que existiria ao princípio ninguém sabia qual era.

Tinham-se perdido os papéis.
Tinham-se perdido os papéis e havia um certo incómodo, porque eles não sabiam que ocupação nos dar. E nós regressámos e dissemos: “Então vocês mandaram-nos para Paris estudar jornalismo, agora arranjem-nos trabalho”. E eles, um pouco embaraçados, disseram: “Bom, nós não garantimos nada, mas o que podemos fazer é arranjar-vos uns estágios de dois meses em vários órgãos de informação que estejam controlados pelo Estado, pelo Governo, porque só aí é que podemos intervir e, depois, ao fim dos dois meses, vocês vão à vossa vida ou ficam porque eles vos querem lá, ou saem e vão fazer alguma coisa”. Não havia mais nada a não ser essa garantia.

Na reunião para a distribuição dos lugares havia alguns para a agência de informação (na altura penso que seria a “ANOP” ou talvez ainda a “ANI”, que era uma agência do Estado que vinha antes do 25 de Abril), para o Diário de Notícias, porque o capital [do jornal] era em grande parte controlado pelo Estado através da Caixa Geral de Depósitos, e para a RTP, para a rádio, RDP (ou ainda Emissora Nacional) e para o Rádio Clube Português, creio eu. Eu cheguei atrasado à reunião.

Ficaste com a RTP. Era o que restava?
Queria inscrever-me no Diário de Notícias, mas as dez vagas estavam preenchidas.

Portanto, acordaste tarde? Depois de uma noite, tiveste uma noitada…
Fiz uma noitada e disseram-me: “Só há lugares para a RTP” e eu: “A RTP? Mas eu em Paris não estudei jornalismo televisivo, o que é que eu faço? Pronto, está bem, inscrevam-me lá”.

E assim foi.
Eramos dez estagiários e acabámos por ficar cinco: foi preciso o nosso trabalho porque era o mês de eleições, abril de 75. Depois, ao fim do mês, disseram que precisavam de gente e que ficávamos na RTP. E foi assim que eu comecei.

Já tens quase 45 anos, perto disso, de jornalismo, não é?
Sim, exatamente.

Daqui a nada meio século de jornalismo. Isso significa que viste muita coisa e que acompanhaste toda a evolução do jornalismo em democracia. Muitas vezes quando encontrei pessoas mais velhas nas redações, nomeadamente no Diário de Notícias, havia por vezes aquela nostalgia de tempo passado, do género “No meu tempo é que era bom”, não é? Isto agora já não é a mesma coisa. Há a falta que faz o cheiro do chumbo. Tens alguma espécie de nostalgia desse jornalismo?
Não, não. Não sou nada saudosista.

Não?
Acho que é preciso acompanhar a evolução dos meios do ponto de vista tecnológico que é uma vantagem para os cidadãos e isso é que conta. Não tenho nada saudades, aliás.

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Mas em termos de qualidade do jornalismo? A maneira como ele evoluiu, porque evidentemente hoje em dia existe menos dinheiro.
Mesmo em termos de qualidade do jornalismo, não. As pessoas, os profissionais do jornalismo hoje em dia estão mais capacitados, têm outro tipo de formação. Quando eu entrei para o jornalismo ninguém estudava jornalismo, iam para jornalistas escritores frustrados, escritores potenciais, escritores com esperança de vir a publicar livros e eventualmente pessoas que conheciam outras pessoas e que não tinham nada para fazer, ou nenhuma ocupação fixa, que achavam que podiam trabalhar numa redação. É claro que havia pessoas muito talentosas nas redações e até bons repórteres, mas era um ofício construído de uma maneira completamente autodidata.

Do zero.
Do zero, a partir da experiência,. Havia outros que não passavam da cepa torta mas estavam como profissionais consagrados e com carreira solidificada, e assim ficaram até ao fim dos seus dias.

Depois transitaste para o Expresso que naquela altura tinha uma equipa, enfim, imagino eu, bastante mais ágil e versátil do que a RTP.
Na altura não tinha muito.

Não tinha?
Não, o Expresso estava um bocado a patinar.

Tu foste para o Expresso na década de 80 já, ou ainda não?
Eu fui para o Expresso em 1981, fevereiro de 81.

Mas o Expresso tinha sido fundado ainda há pouco tempo.
Sim o Expresso estava ainda a viver praticamente dos créditos ou da fama ou do prestígio que tinha conseguido, e bem conseguido, aliás com todo o mérito, antes do 25 de Abril, porque tinha sido o jornal que para aí naqueles meses, um ano e tal antes do 25 de Abril, mais desafiara o regime, sem dúvida nenhuma.

Apesar de ter sido fundado por alguém que até estava muito próxima ou muito ligada ao regime — fenómeno muito curioso –o Expresso também era um jornal que desafiava o poder. Antes e depois do 25 de Abril. Mas a partir de uma certa altura também o proprietário, Francisco Balsemão, saiu para fazer política. Aliás, entrou para o governo de Sá Carneiro em 79, fins de 79, e acho que aí o Expresso passou a viver muito à sombra da bananeira, a viver desse tal prestígio acumulado. Quando eu fui convidado para o Expresso, Marcelo Rebelo de Sousa era o diretor.

"Marcelo era muito divertido, embora na realidade inventasse muitas notícias. Mas inventar notícias para um político não está mal, pois nós verificamos que Boris Johnson foi jornalista correspondente em Bruxelas de vários órgãos de informação, inventou uma série de notícias e hoje em dia é primeiro-ministro, portanto isso é currículo para a carreira de um político"

Que tal era Marcelo Rebelo de Sousa como diretor?
Era muito divertido, embora na realidade inventasse muitas notícias. (risos) Mas inventar notícias para um político não está mal, pois nós verificamos que Boris Johnson foi jornalista correspondente em Bruxelas de vários órgãos de informação, inventou uma série de notícias e hoje em dia é primeiro-ministro, portanto isso é currículo para a carreira de um político. Posso adiantar exemplos de notícias inventadas pelo Marcelo enquanto eu lá estava, mas não vale a pena.

Então conta-me só uma, uma boa, vá.
Posso contar uma por exemplo na altura em que o Balsemão era primeiro-ministro, porque ele sucedeu ao Sá Carneiro que tinha morrido, na queda de avião em Camarate em fins de 1980. Estamos em fevereiro de 81 (quando eu fui para o Expresso) e no verão desse ano o primeiro governo de Balsemão praticamente estava o tempo todo em crise, uma crise de certa forma muito alimentada pelo próprio Marcelo no Expresso. Tinham dito, aliás, ao Balsemão: “Ele é menos perigoso, o Marcelo é menos perigoso se estiver no governo do que à frente do Expresso” (risos). Portanto, ele convidou o Marcelo para ir para o Governo (risos).

Na constituição do segundo governo de Balsemão, que foi no verão de 81, o Marcelo estava de saída, mas estava ainda a fazer notícias, porque as notícias políticas praticamente eram feitas por ele, e ele estava na redação do Expresso a ditar a notícia para uma secretária porque ele não escrevia, não datilografava e, portanto, ditava as notícias. Estava a dizer, a falar das pessoas que saíam do primeiro governo de Balsemão, das que iam para o segundo governo de Balsemão e qual era o destino, digamos assim, daquelas que saíam, e chegou ao nome de um Ministro das Finanças, que era o João Morais Leitão, muito amigo do Balsemão. Era advogado e em princípio iria regressar ao seu gabinete de advocacia, mas o Marcelo diz assim: “Ah, coitado do Morais Leitão, então a gente agora vai deixá-lo de fora? Não, vamos arranjar qualquer coisa para ele. Ponha aí, escreva aí que ele vai ser Presidente da Assembleia da República” (risos). E saiu essa notícia no Expresso: que o Morais Leitão ia ser presidente da Assembleia, coisa que nunca aconteceu, como se sabe. Isto é um exemplo concreto, da digamos assim, imaginação de Marcelo Rebelo de Sousa, que era muito ampla. A outra coisa célebre é ele ter ter escrito no Expresso: “Balsemão é lelé da cuca”. Isto foi uma frase que ficou. É fake news (risos).

Portanto, tu acreditas na história da vichyssoise [Paulo Portas contou que perguntou a Marcelo o  que se tinha passado numa reunião em Belém no início dos anos 80 com Mário Soares e Marcelo, que estivera presente, disse que tinham comido vichyssoise, o que não terá sido verdade].
Acredito na história da vichyssoise, sim. Embora não tenha sido testemunha.

Desse prato em específico não, mas de outros.
Exato.

Este teu percurso começou na RTP, depois foi para o Expresso, a Grande Reportagem onde também estiveste no Diário de Notícias. Atravessaste vários grupos de media. A liberdade em todos é idêntica?
Não, nuns há mais liberdade do que noutros. Eu considerei que havia uma margem de liberdade considerável no Expresso, mas não a 100%. Havia limitações: por exemplo, havia uma lista de pessoas que estavam proibidas pelo proprietário de colaborar no Expresso. Três pessoas só. E eu desconhecia essa lista, mas caí na asneira de já estar na direção e encomendar um cartoon ao Augusto Cid, que era umas das pessoas proibidas e depois tive de ouvir um responso do diretor por causa disso: “Então tu não sabes que
o Augusto Cid está proibido de colaborar no Expresso?”.  O Balsemão “não quer nem ele nem o, penso que era o Vasco Pulido Valente, e a terceira pessoa acho que era o Artur Portela Filho, por razões que eu nunca cheguei a perceber. Aliás, perguntei ao Artur Portela filho e ele também não me soube explicar qual foi a razão.

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E depois quando fizeste a transição para a “Grande Reportagem”, como é que a coisa correu aí?
Já agora vale a pena dizer que saí do Expresso por ter publicado numa notícia que o Joe Berardo tinha dois processos por evasão fiscal. Não é que a notícia fosse falsa, mas porque não convinha na altura publicar, porque o Joe Berardo tinha acabado de entrar para a SIC como sócio do Balsemão.

Isso foi em que ano?
Foi em 93.

Mas quando tu dizes “Saí por causa disto”, saíste mesmo por causa daquilo?
Estava na direção, era diretor-adjunto, era responsável por fechar a primeira página e a última e essa notícia saiu na última página, que, aliás, era uma notícia cujo título era para justamente informar que o Berardo tinha entrado como sócio do Balsemão na SIC. Na segunda-feira seguinte o Balsemão chamou-me ao gabinete dele e deu-me 24 horas para me demitir ou ser demitido da direção. E eu, ao fim de 24 horas, apresentei a minha demissão. Ainda fiquei como repórter principal ou grande repórter, qualquer coisa assim, durante uns tempos, a ganhar uns prémios de jornalismo, mas depois acabei por sair mesmo.

A partir daí a minha carreira jornalística no Expresso, no grupo Balsemão melhor dizendo — porque já havia um grupo na altura — estava completamente comprometida.

Mas ele mandou-te demitir da direção e não do jornal, é isso?
Não, da direção e não do jornal.

Mas tu sabias, mais uma vez, que como havia a lista proibida também havia notícias proibidas?
Não, não sabia. Até porque eu escrevi isso em toda a minha boa fé, porque sempre me tinha habituado, desde o início, ao Expresso como um espaço de liberdade: liberdade editorial e liberdade de opinião, com exceção dos tais três interditos. E a mim surpreendeu-me um pouco que houvesse essa atitude, mas também aqui, em abono do Balsemão, devo dizer que ele tinha uma carta do diretor, que era o José António Saraiva, a dizer que por causa de eu ter feito isso sobre o Joe Berardo ele tinha perdido a confiança em mim e, portanto o Balsemão disse : “Olhe o diretor perdeu a confiança em si, portanto eu não posso sustentá-lo na direção”.

"Não ceder é sair da carreira ou fazer outra coisa, mas Portugal é demasiado pequeno para isso. Hoje em dia talvez seja diferente porque temos a comunicação via digital e através do digital podemos, se quisermos, manter a independência: criamos um blogue, estamos sozinhos e ninguém nos vai massacrar a cabeça. Agora quando se está ligado a um grupo media pode ser complicado. Não quer dizer que seja uma regra instituída, mas há momentos específicos em que pode haver um choque de interesses"

Tens de me contar mais isso.
E eu compreendi que, tendo perdido a confiança do diretor e também do proprietário, não estava ali a fazer nada. Não ia fazer finca-pé. Podia dizer “então demitam-me”. Não valia a pena. Eu nessas coisas sou muito direto e se não me querem eu vou-me embora.

Apesar de tudo, o Francisco Pinto Balsemão tem uma imagem quase de uma espécie de príncipe do jornalismo nacional pelo seu papel no Expresso. Aquilo que tu contas aqui de qualquer forma é uma coisa grave. Achas que é muito difícil seres ao mesmo tempo alguém com uma importância no jornalismo, mas teres que necessariamente estar também metido nos negócios, e tudo isso não ser conflituante, ou seja, manteres uma espécie de pureza jornalística ao longo de toda a tua carreira, é possível fazer isto? Ou Portugal é demasiado pequeno e há alguma altura em que as pessoas têm que ceder?
Ceder ou não ceder. Não ceder é sair da carreira ou fazer outra coisa, mas Portugal é demasiado pequeno para isso, de facto. Hoje em dia talvez seja diferente porque temos a comunicação via digital e através do digital podemos, se quisermos, manter a independência: criamos um blogue, estamos sozinhos e ninguém nos vai massacrar a cabeça. Agora, quando se está ligado a um grupo media pode ser complicado, Não quer dizer que seja uma regra instituída, mas há momentos específicos em que pode haver um choque de interesses e, concretamente neste caso que eu referi, Balsemão estava muito empenhado no crescimento do seu grupo, na consolidação da SIC que, estava com problemas de audiências e era preciso dinheiro fresco, capital fresco para reforçar a estação de televisão. Não sei se o Joe Berardo trouxe o tal dinheiro fresco porque provavelmente fez um empréstimo (risos). Estou a ironizar. Não faço ideia.

Trouxe na mesma, não é? Se calhar não era dele mas era fresco.
Mas a verdade é que não esteve lá muito tempo. Eles zangaram-se ao fim de escassos anos, acho, e ele saiu.

Tu tens tido de qualquer forma uma relação atormentada com Balsemão, no sentido em que publicaste uma biografia não-autorizada sobre ele e foste processado também.
Sim, ele processou-me.

Quer dizer, foste processado à tangente, não é? O processo foi em primeiro lugar com…penso que eles chegam a ser primos, não é?
Alexandre Patrício Gouveia.

Exatamente.
Sim, sim. Primos em segundo grau.

Foi por causa das declarações que ele fez.
Exatamente.

Mas tu de qualquer forma também foste processado. E, só para recordar, foram declarações sobre Camarate, não é? Essa sombra que existe.
Essa telenovela.

Essa novela na democracia portuguesa, que continua a dar processos ao fim destes anos todos. Tu ganhaste já, não é? Vocês ganharam.
Sim, sim.

Nem sequer foram pronunciados?
Não.

Nem em primeira instância?
O Ministério Público não acompanhou a queixa. Tanto na Primeira Instância como na Relação os juízes entenderam não levar a julgamento.

Certo. Vocês têm uma não-relação, hoje em dia?
Eu e o Balsemão?

Sim.
Sim, quer dizer nunca mais falámos, mas se o encontrar também o cumprimento. Ele é uma pessoa cordial, eu também me considero uma pessoa cordial, mas cada um no seu terreno.

Mas nunca mais falaram desde a década de 90?
Não, falámos. Eu contactei-o.

Tu chegaste a contactá-lo para a questão da biografia não é?
Para a biografia. E escrevi-lhe até uma frase. Pretendi ser irónico e dizer “Olhe, tenho a sua vida nas minhas mãos”. Pedi a ajuda dele, a colaboração, e ele agradeceu-me, que já tinha tido vários contactos de autores, editores, etc., mas que declinava porque tinha o projeto de escrever. Na altura ele dizia que não sabia bem se iam ser as memórias ou uma autobiografia.

Mas deu-te acesso a documentação?
Deu-me acesso a documentação, documentação que dependia da autorização dele, tipo currículo, a ficha militar, carreira académica na Faculdade de Direito, no liceu, Nesse aspeto considero que ele foi generoso e até lhe estou agradecido por isso.

Tu fizeste até agora três grandes biografias, digamos assim. Quer dizer, tens outras coisas mais.
As fotobiografias.

As fotobiografias, mas biografias destas são três: Mário Soares, Francisco Pinto Balsemão e agora José Saramago.
Exato.

Dessas três qual te deu mais dores de cabeça? Dores de cabeça a fazer, por um lado, e depois as consequências daquilo que tu publicaste.
O Mário Soares ameaçou processar-me, o Balsemão processou-me, o José Saramago não processou porque já estava morto (risos). Qual delas me deu mais dores de cabeça? Talvez…o José Saramago deu-me muito trabalho, deu-me menos dores de cabeça precisamente porque ele já não estava cá para se aborrecer com algumas coisas que eu terei escrito.

"Tenho esta mania de que devo ser independente e que devo escrever aquilo que eu sei e que investigo e que é puro, independentemente de agradar ou desagradar as pessoas"

Sabes que o Ruy Castro tem a teoria de que não se pode escrever nenhuma boa biografia com a pessoa morta há menos de dez anos?
Eu sei. Quer dizer, a Pilar, a viúva de José Saramago, com quem eu tive uma excelente relação — que já tinha desde o tempo em que o marido era vivo e que chegámos a conviver e eu viajei com eles em Itália —  sempre falou comigo durante a elaboração da biografia e me respondeu a todas as questões, mesmo aquelas que podiam ser mais embaraçosas. Aliás, ela, como ex-jornalista, também penso que sabia qual era o meu papel nisto, mas a verdade é que depois de ter publicado o livro nem sequer me agradeceu o envio de um exemplar, e nunca mais falou comigo, portanto penso que também não terá ficado muito agradada.

E porque é que tens esse mau feitio, Joaquim Vieira?
Porque se calhar tenho esta mania de que devo ser independente e que devo escrever aquilo que eu sei e que investigo e que é puro, independentemente de agradar ou desagradar às pessoas. Se calhar em relação à minha carreira jornalística devo ser conhecido como aquele que morde a mão que lhe dá de comer porque saí do Expresso nestas condições e também quando estive a trabalhar na Grande Reportagem as coisas não terminaram da melhor maneira na relação com o proprietário na altura que era o Joaquim Oliveira. Mas isto é mais forte do que eu. Sou incapaz de ocultar ou omitir coisas na escrita só para agradar ao proprietário ou a qualquer outra pessoa.

Na altura em que tu saíste…não sei se se pode mesmo dizer que foste despedido da Controlinveste. Ou não te consideras despedido?
Fui despedido e deram-me uma indemnização que estava prevista em contrato.

Foste despedido da Controlinveste e depois a Grande Reportagem acabaria também por fechar, não é? 
Sim, ao fim de poucas semanas.

Estamos no final de 2005 e há uma notícia no Correio da Manhã que diz que o jornalista que terá de sair até sexta-feira foi igualmente informado de que a revista será fechada até dezembro. As razões são desconhecidas, mas depois acrescenta, “recorde-se que Vieira tem vindo a escrever sobre o polémico livro de Rui Mateus onde se aludia a ligações do PS de Soares ao caso Emaudio”. Foi essa a razão pela qual tu saíste? 
Não me foi explicado.

E achas que foi por causa disso?
Essa pode ter sido uma das razões, mas eu só posso especular. Outra foi porque, quando o Joaquim Oliveira que comprou o grupo Diário de Notícias, Jornal de Notícias, TSF à PT, resolvemos publicar um perfil biográfico dele. O nosso novo patrão. E talvez não lhe tenha agradado também alguns aspetos desse perfil biográfico. Não vou entrar em pormenores.

Também gostas de ter lenha para te queimares?
Pois, exato (risos). Não fui eu que escrevi o perfil, mas o jornalista veio ter comigo, disse “Olha, descobri isto”. É uma coisa que se calhar não seria muito simpática no contexto do percurso dele, biográfico, da família, etc., e eu disse “Está bem, isso existe, não é?” Um dado biográfico é interessante para o percurso da pessoa e, portanto, não vamos poder omitir isso, temos de publicar.

Mas que dado biográfico era esse?
Tinha que ver com um contexto familiar, que ele era filho de mãe solteira, que foi perfilhado por um homem com quem depois ela se veio a casar e que ela explorava um restaurante, uma casa de pasto no Norte. Que não seria apenas casa de pasto, mas pronto, não vou entrar nesse detalhe… quer dizer não tenho nada… isso está escrito, não é?

Certo. Aliás tu mesmo nas tuas biografias decidiste sempre avançar para aquilo que são também episódios da vida privada das pessoas que biografavas, não é?
Sim, sim.

E até muitas vezes a polémica surge um pouco daí. “Mas porque é que ele está a contar isto?” E porque é que contas isso, então?
Porque a biografia é um retrato de corpo inteiro da pessoa e, por isso, há aspetos que não podemos omitir. Quando eu publiquei a biografia do Mário Soares ele telefonou-me muito furioso a dizer: “Como é que você se atreve a publicar estas coisas sobre as mulheres, as minhas namoradas?”. As ex-namoradas dele, as várias.”Você não sabe que eu sou um homem casado?” E isso foi uma conversa muito dura mesmo e muito difícil. E eu disse, “Olhe, isto é como as biografias dos reis e das rainhas. Nós hoje em dia temos aí imensos livros que saem e contam os amores e os bastardos e as relações fora do casamento, os adultérios. Portanto, o senhor não foi rei, foi Presidente da República, está nas mesmas condições. A única diferença, felizmente, é que ainda está vivo. Mas eu não vejo razão para estar a ser diferente em relação a esses livros sobre pessoas que já morreram”. E ficou assim.

Mas o estarem vivos não faz diferença?
Para mim não, mais tarde ou mais cedo eles vão morrer. Infelizmente, é a lei da vida e são dados biográficos que acabam por ser importantes por uma razão ou por outra. É claro que  não quero expor o nome das pessoas. Ele é figura pública. A figura pública está mais exposta ao conhecimento que as pessoas devem ter da sua privacidade do que uma figura que não é pública. Aliás, há jurisprudência até do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre isso. A pessoa, de facto, que é político, que tem poder por uma ou outra razão (pode não ser político, pode ser um empresário, pode ser alguém do mundo do desporto, por exemplo), acaba por ver a sua vida privada mais exposta aos olhares do público.

Quando isso são elementos importantes de avaliação da biografia da pessoa, eu acabo por publicar, mas tento proteger às vezes o nome das pessoas que nesse caso interagiram com ela. No caso concreto de Mário Soares falei dos seus casos extraconjugais e ele ficou muito furioso porque não sabia o que é que lá estava no livro na primeira vez que falou comigo e, depois na tarde desse mesmo dia, já tinha recebido o livro e telefonou-me outra vez um pouco mais calmo e disse “Ah, afinal eu fui à procura no índice remissivo e não vi lá os nomes”. Ele estava com receio que eu falasse do nome de senhoras, ou de mulheres ou namoradas. A minha intenção era, sobretudo, falar de situações, não do nome de pessoas — acho que as senhoras tinham direito a preservar a sua intimidade, embora não do biografado por ser uma figura pública.

Chegaram a fazer as pazes?
Cruzei-me mais tarde com ele num restaurante, mas ele era muito cordial sempre, porque com o Mário Soares era sempre muito fácil fazer as pazes, não havia problema nenhum (risos). Mas fora isso depois nunca mais chegámos a falar.

Joaquim Vieira na apresentação da biografia não autorizada de Mário Soares (Lusa)

LUSA

O caso da Emaudio depois cruza-se com o caso Rui Mateus. Penso que no Expresso também tiveste contacto com essa história. E depois na Grande Reportagem e na biografia. É um caso que atravessa a tua carreira jornalística.
Eu falei desse caso pela primeira vez quando era repórter do Expresso, porque era jornalista de investigação e tudo o que tinha que ver com questões de bastidores e, sobretudo, quando envolviam dinheiros, interessava-me bastante. Aliás, devo dizer que estudei jornalismo em 74, como já aqui vimos, e 74 foi o ano em que o presidente Nixon se demitiu por causa do  “Watergate”.

Certo.
Eu estava a estudar jornalismo na altura e achei extraordinário que o homem mais poderoso à face da Terra tivesse sido derrubado por dois jornalistas. É claro que não foi só isso, mas o contributo dos jornalistas do Washington Post foi muito importante, e isso fascinou-me muito no jornalismo. Por causa disso quis ser jornalista de investigação.

Achas que o caso Emaudio é o “Watergate” de Mário Soares?
De certa maneira é, mas nós cá somos um país de brandos costumes e, portanto, não levamos essas coisas com tanto rigor.

Ninguém acendeu a luz?
Não. Havia ali, aliás, como depois mais tarde o Rui Mateus vem a provar nesse livro que publicou, “Os Contos Proibidos”, um tráfico de influências, digamos assim, com dinheiros à mistura e que era muito complicado. Levantava questões éticas e talvez até mais do que isso. Se houvesse alguma investigação… na altura a Procuradoria-Geral da República entendeu que não havia matéria para investigar, mas era assim…

Estamos a falar do grupo de comunicação social com ligações a Macau.
Sim, estamos a falar de um grupo que Mário Soares criou logo a seguir ao 25 de Abril com figuras que eram da sua área, incluindo o filho e outros que eram de grande confiança, para controlar o máximo possível de comunicação social, não só em Macau. Macau acontece quase por acaso, porque um dos membros do grupo, que é o Carlos Melancia, às tantas é nomeado Governador de Macau. Mas a intenção era controlar a comunicação social cá, como aconteceu mais tarde com José Sócrates. O projeto de José Sócrates tem parecenças com esse.

É por isso que o Mário Soares sempre teve uma complacência com o Sócrates muito grande?
Sim, se calhar identificou-se com ele nesses aspetos e também o Sócrates acabou por lhe arranjar dinheiro para a terceira campanha eleitoral que ele fez, essa campanha desgraçada já em 2005, e ele ficou eternamente reconhecido por isso, porque o Mário Soares ser candidato naquela altura era uma coisa que não caía bem no PS. Mas o Sócrates deu todo o apoio. E eu falei sobre isso porque, de facto, havia ali coisas que eu achava que mereciam ser denunciadas, mas na altura eu era um cavaleiro solitário porque as notícias saíam… Até ganhei um prémio de jornalismo, o Prémio Gazeta, mas não tinham muita consequência, aquilo era como água a cair na areia seca: ia por aí fora e as coisas rapidamente caíam no esquecimento.

Depois, mais tarde, apareceu a história do fax de Macau, publicada pelo Independente. Tinha que ver com esta questão também, mas, enfim, não vou agora desenvolver isso. Foram dar ao Independente porque estavam zangados comigo, porque eu inicialmente tinha falado disso no Expresso. Eu era um dos jornalistas a quem podiam dar essa informação.

Às vezes há uma diferença moral grande entre arranjar dinheiro para financiar campanhas e parte desse dinheiro acabar no bolso de alguém. Havia as duas coisas?
Não, não. Não tenho indicações sobre isso. Havia sobretudo tráfico de influências baseado na necessidade de obter dinheiro para projetos políticos. Não tenho provas de que o dinheiro fosse parar aos bolsos de Mário Soares concretamente, isso não sei, não orientei a investigação nesse sentido, mas também não soube nada concreto.

Quando publicaste  “Mário Soares: uma vida”, conseguiste uma coisa extraordinária que foi voltar a falar com Rui Mateus. Porque o Rui Mateus estava desaparecido na Suécia, não é?
Sim.

(Margarida Ramos / Global Imagens)

Margarida Ramos / Global Imagens

E não queria falar sobre mais nada e tu conseguiste que ele falasse para a tua biografia. Como é que conseguiste isso?
A curiosa história do Rui Mateus, mas aqui pronto estamos a falar de coisas já muito antigas e eu não sei se as pessoas conseguem localizar todos estes factos. O Rui Mateus era um dos elementos dessa equipa da Emaudio, da empresa criada por Mário Soares. Era uma pessoa muito próxima de Mário Soares, acompanhava-o por todo o lado, era tradutor nas relações internacionais, porque o Mário Soares, como sabem, sempre teve uma relação muito difícil com as línguas estrangeiras. Carregava-lhe a pasta, como Mário Soares depois disse, e tinha expectativa talvez que o Mário Soares o transformasse em, certa altura, seu ministro dos Negócios Estrangeiros, o que não veio a acontecer. Mas o Rui Mateus era um apoiante indefetível, inclusive nestes tais projetos que metiam recolha de dinheiros no estrangeiro e muita coisa passava pelo Rui Mateus, que conhecia tudo isso. E depois…

Zangaram-se.
Zangaram-se.

Publicou o famoso livro “Contos proibidos”, que saiu pela Dom Quixote.
Zangaram-se um bocado na sequência daquilo que eu publiquei no Expresso. Porque o Soares massacrou o Rui Mateus a dizer “vocês deixam sair estas informações, o tipo anda a publicar isto no Expresso, é um problema, vocês hão de me dar cabo da vida, do meu prestígio e eu vou deixar de trabalhar convosco e vou fazer estas coisas com outras pessoas”. E o Rui Mateus e essa equipa da Emaudio ficaram um pouco marginalizados pelo Mário Soares.

Como ficaram marginalizados — ainda por cima com dívidas acumuladas e com dificuldade em resolver todo esse problema, a empresa que era preciso fechar, estava, penso, na falência –, o Rui Mateus emitiu vários sinais, mandou recados ao Soares, o Soares já não queria nada com ele e depois ele, penso que um bocado por revanchismo, acabou por publicar esse livro onde contava os tais segredos proibidos, dos financiamentos e tudo isso. E, nessa altura, o Rui Mateus, que se tinha zangado comigo nessa primeira fase, quando publiquei essas coisas no Expresso, aproximou-se de mim. E disse “olhe, afinal você realmente tinha razão. Nós estávamos com o Soares por cima e tínhamos que desmentir…”. E eu acabei por ficar aí com uma relação mais próxima com o Rui Mateus.

E conseguiste convencê-lo a falar para a biografia. Foste à Suécia?
Não, não. Falámos só por telefone ou por e-mail, mas encontrei-me várias vezes com ele ainda em Portugal, antes de ele ir para o estrangeiro. Não sei se ele estava na Suécia, se estava nos Estados Unidos, a uma certa altura.

Olha, ainda a propósito deste caso, tu contas uma coisa na introdução desta tua biografia, falando de ti próprio: “A certa altura os soaristas à frente do grupo contrataram na ocasião um antigo segurança e motorista do ex-secretário-geral do PS para investigar a minha vida particular e vigiar os meus passos, à procura de algo do domínio privado que pudesse desacreditar, mas quando essa notícia surgiu na imprensa, Soares pediu ao seu sobrinho e chefe da Casa Civil de Belém, Alfredo Barroso, que telefonasse ao diretor do Expresso, José António Saraiva, para comunicar que o Presidente nada tinha que ver com o assunto e até condenava tais métodos”. De que é que tu estás aqui a falar, Joaquim Vieira?
Eu não desenvolvi isso porque foi objeto de notícia na altura. Esse antigo motorista e segurança de Mário Soares, o Manolo, — toda a gente o conhecia por Manolo — foi encarregado pelo Rui Mateus e pelos outros da Emaudio, quando eu publiquei essas coisas no Expresso, de andar a vigiar a minha vida privada para ver se arranjavam qualquer coisa que pudesse ser utilizado para fazer chantagem ou para me calar, penso eu.

Aliás, também me chegou um recado que, como sabiam acerca das circunstâncias da minha prisão, também poderiam usar isso. Usaram isso um bocado como chantagem. Foi através de uma outra pessoa ligada a Mário Soares, mas não pessoas da Emaudio. Esse relatório que o Manolo fez depois para a Emaudio até veio a público, eu tenho uma cópia disso. Ele andava atrás de mim no carro, acompanhava-me da redação do Expresso até casa, nos sítios onde eu ia para ver quais eram as minhas relações privadas, com quem é que eu eventualmente me relacionava — sendo eu solteiro —  e depois quereriam eventualmente usar essa informação ou para me desacreditar ou para fazer chantagem, não sei, porque na realidade nunca foi usado.

Mais tarde, falei com esse indivíduo e ele confirmou-me tudo também. Porque ele também foi um dos tais abandonados pelos soaristas. Não lhe pagaram ou correram com ele quando a coisa veio a público. Aí também estava um bocado aborrecido e resolveu também vir ter comigo e contar-me tudo o que se tinha passado. No fundo só confirmou aquilo que eu já sabia.

Mas há aqui um padrão, não? Porque tens Presidentes da República sempre fora de um escrutínio que achas que devia existir. Escreveste isto várias vezes sobre Mário Soares, mas também no caso de Cavaco Silva na altura das famosas “Escutas de Belém”, em que eras provedor do Público, em que também criticaste o jornal. Disseste basicamente que estiveram aqui a fazer um favor ao Cavaco Silva e nunca realmente o escrutinaram nem nunca investigaram que acusação era esta e porque é que ela tinha surgido.
Bom, porque através de uma fonte de Belém que não era identificada, o Cavaco Silva queixava-se de que o Governo, que na altura era o de José Sócrates, estaria a vigiá-lo. Depois apareceu a expressão “Escutas de Belém”. Não eram propriamente escutas, mas estaria a vigiá-lo por meios eletrónicos com uma intenção que não se sabia qual era. O Público publicou esta informação como sendo válida e sem cuidar de saber qual seria a intenção de Cavaco Silva ao divulgar a informação, porque na realidade não foi possível confirmá-la.

Uma das pessoas mencionadas na notícia, e que era apontada como espião do Sócrates junto do Cavaco, que era um assessor do Sócrates no governo, escreveu-me uma carta na minha qualidade de provedor a queixar-se de que o Público tinha falado com ele, tinha recolhido declarações dele e que essas declarações não eram publicadas nas notícias que o Público tinha divulgado. E eu achei aquilo um bocado estranho e iniciei a minha investigação interna. Perguntei aos jornalistas envolvidos o que é que se passava, porque é que ouvia um senhor, porque é que não publicaram, ainda por cima estando ele acusado de uma coisa grave. E a partir dessa troca de e-mails é que depois se desencadeou o escândalo das “Escutas de Belém” porque veio-se a descobrir uma coisa que eu sabia, mas que não podia publicar, que a fonte era um assessor de Cavaco Silva, o Fernando Lima e, de facto uma pessoa muito próxima do Presidente. E teve aquelas consequências que depois são conhecidas. Porque alguém desviou essa troca de e-mails para o Diário de Notícias e depois foi publicado no Diário de Notícias.

Nunca soubeste como é que essas…
Nunca soube e infelizmente tenho pena, porque naturalmente eu fui apontado como um dos suspeitos. Eu tinha os e-mails na minha posse, nunca se soube como é que isso aconteceu. Mas alguém no circuito terá desviado a troca de e-mails para o exterior.

Não acreditas no SIS [Serviço de Informações de Segurança]?
Acredito em tudo, até acredito na vigilância (risos). Mas a verdade é que essa vigilância nunca foi provada na altura, e eu fustiguei muito a direção do Público por causa disso, porque havia, digamos assim, uma espécie de fake news que era emitida diretamente do palácio de Belém, por isso havia uma responsabilidade política do Presidente nisso e o Público nunca tinha explorado essa linha de investigação, saber porquê e portanto até exigir responsabilidades políticas de Cavaco Silva. Aliás, isso serviu-me indiretamente para cair nas boas graças de Mário Soares, porque o Mário Soares há 18 anos que não falava comigo por causa das coisas da Emaudio que eu tinha publicado e, nessa altura, encontrou-se comigo por mero acaso e disse-me “Tenho que lhe dar os parabéns, aqueles textos que você publicou como provedor do Público acho uma coisa fantástica, e estou-lhe a dizer isto independentemente do que se passou entre nós no passado, considero que isso é assunto sanado”. E eu aproveitei para lhe dizer “Olhe, ainda bem que estamos aqui a falar, porque eu vou escrever a sua biografia, gostava que falasse comigo”. “Com certeza, então, telefone à minha secretária e diga que vai lá”.

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