Reportagem na província de Ninawa, Iraque
John Alias não consegue esconder o sorriso aberto e caloroso, acentuado pelo contraste com a devastação nas ruas de Qaraqosh, uma pequena cidade a 15 quilómetros de Mossul, no norte do Iraque. Já passa do meio dia e o calor do deserto iraquiano ultrapassa, por aquela hora, os 40 graus à sombra — também por isso não se vê ninguém naquelas ruas onde, desde agosto de 2014, não há uma única casa inteira. A casa onde John vivia com a família antes de o Estado Islâmico ter tomado o controlo da cidade e ter bombardeado, demolido ou queimado todos os edifícios, está finalmente prestes a poder ser habitada novamente. O homem, de 65 anos, supervisiona os trabalhos de restauro da casa e vai ajudando os construtores no que pode. Já se ultimam os detalhes finais: a escada ainda precisa do corrimão, as paredes de uma segunda demão de pintura e as janelas novas esperam ainda ser montadas no devido lugar.
Professor de química e pai de três filhos quase adultos, John perdeu tudo quanto tinha há quatro anos, quando os radicais do Estado Islâmico atacaram Mossul e ali estabeleceram a sua capital de facto no Iraque. Mas, tendo em conta o contexto, pode considerar-se um dos privilegiados: em outubro do ano passado, conseguiu voltar à cidade onde nasceu e, com a ajuda da Igreja Católica, está quase a voltar a casa. Por isso, nem quando mostra as marcas deixadas na sua parede pelos estilhaços de uma bomba detonada a cinco metros dali pelos terroristas perde a alegria do olhar — embora o sorriso se desvaneça por breves instantes quando lembra o momento em que voltou à cidade e viu tudo o que tinha perdido.
“Perdi tudo o que tinha na casa. A mobília foi toda roubada e a casa foi incendiada”, conta. A noite de 6 de agosto de 2014 ainda lhe assalta a memória todos os dias. Estava ali, naquela casa, quando as “bombas a cair” e a fuga do exército iraquiano lhe asseguraram do inevitável: o Estado Islâmico, que no mês anterior tinha conquistado definitivamente a cidade Mossul, aproximava-se dali e não havia muito tempo para escapar. “Peguei na minha família e fugi para Erbil. Só levei os documentos e algum dinheiro que aqui tínhamos”, lembra John. A família acabou por ficar três anos a viver em Ankawa, o bairro cristão de Erbil, a capital do Curdistão iraquiano, dependendo quase exclusivamente da solidariedade da Igreja Católica, que em menos de uma semana se viu a braços com milhares de deslocados internos a chegar em massa ao norte do Iraque à medida que o Estado Islâmico tomava o controlo de dezenas de aldeias e vilas cristãs na planície de Nínive.
Fotogaleria. As imagens do regresso dos iraquianos a casa, quatro anos depois do Estado Islâmico
Só em outubro de 2017, três meses depois de o controlo daquela região ter sido novamente tomado pelas forças iraquianas com o apoio da coligação internacional liderada pelos Estados Unidos, é que John conseguiu regressar a Qaraqosh. “Fiquei muito triste e muito revoltado quando vi a minha casa destruída. Só pensava que não tinha feito nada de mal ao Estado Islâmico para me destruírem a casa. Nem eu nem ninguém neste bairro. Ninguém tinha feito nada”, lembra agora. Na altura, desanimou. Pensou em deixar a cidade definitivamente, talvez tentar sair do país. Foi a Igreja que o convenceu a ficar ali com a família. Agora, a vida vai gradualmente regressando à normalidade possível. O filho estuda Medicina na Universidade de Mossul, para onde vai e vem diariamente; a filha mais velha já terminou os estudos e a mais nova está agora a retomar o ensino secundário. John conseguiu voltar a dar aulas — são precisos professores para reabrir as escolas — e a casa da família voltará a ser o seu lar definitivo em breve. Há medo. Mas “o futuro é bom, porque a família é unida”.
A fuga a meio da noite em agosto de 2014
O caso de John está longe de ser único. Ele e a família foram apenas cinco dos cerca de 150 mil cristãos que, em agosto de 2014, tiveram de fugir das inúmeras cidades, vilas e aldeias de maioria cristã da planície de Nínive, região histórica da antiga Mesopotâmia que ainda hoje alberga as raízes do Cristianismo. No mês anterior, a poucos quilómetros dali, na Grande Mesquita de Mossul, o jihadista Abu Bakr al-Baghdadi tinha declarado oficialmente a criação do Estado Islâmico, autoproclamando-se califa e exigindo a obediência de todos os muçulmanos do mundo. “É um fardo aceitar esta responsabilidade de vos liderar. Não sou melhor que vocês ou mais virtuoso que vocês. Se me virem no caminho certo, ajudem-me. Se me virem no caminho errado, avisem-me e parem-me. E obedeçam-me tanto como eu obedeço a Deus”, pediu al-Baghdadi no púlpito da grande mesquita, vestido de negro, após ter declarado a criação do califado e hasteado a bandeira do Estado Islâmico no minarete do templo. Era o dia 4 de julho de 2014, a primeira sexta-feira do Ramadão daquele ano.
A organização terrorista, um antigo ramo da Al-Qaeda que tinha aproveitado a Primavera Árabe e a guerra civil na Síria para se estabelecer e expandir a partir da cidade síria de Raqqa — que conquistou em janeiro de 2014 —, havia alargado o seu território ao Iraque e oficializado a sua presença no mundo após anos de clandestinidade. A partir daquele momento, começaram a suceder-se os vídeos de decapitações, os raptos, as batalhas sangrentas no Médio Oriente e os atentados terroristas na Europa. Naquele mesmo mês de julho, as mulheres de Mossul foram obrigadas a passar a usar a burqa e submetidas à mutilação genital forçada. As notícias do terror eram diárias, mas a ambição do Estado Islâmico não ficou por ali. Depois de conquistar Mossul, a organização procurou expandir o seu território no Iraque a toda a planície de Nínive. Um mês depois da tomada de Mossul, os terroristas avançaram além da cidade e conseguiram tomar o controlo de dezenas de povoações daquela região, obrigando milhares de pessoas a fugir sem rumo para o norte do país, à procura de abrigo na região do Curdistão e noutras cidades mais longínquas.
Foi o caso de Zeki Isho e de Nadjet Younes, pais de sete filhos adultos e naturais de Teleskuf, uma vila cerca de 30 quilómetros a norte de Mossul. As notícias que chegavam de Mossul preocupavam a família, mas nada os preparara para o que ali vinha. “Nós aqui no Iraque já esperamos tudo. Antes do Estado Islâmico, já havia a Al-Qaeda. Mas o que nunca esperámos foi que o Estado Islâmico conseguisse tomar o controlo da cidade de Mossul”, conta Zeki na sua casa de Teleskuf, que foi incendiada pelos terroristas e já reconstruída pela Igreja Católica Caldeia, a principal denominação cristã daquela região. A família fugiu da vila quatro dias antes da invasão pelo Estado Islâmico, para Zakho, uma cidade curda já perto da fronteira do Iraque com a Turquia, porque nesse dia Zeki tinha ido a Tel Kaif, uma vila mais a sul onde o Estado Islâmico já tinha chegado.
“Quando a luta começou em Tel Kaif, soubemos que o Estado Islâmico vinha aí. Como somos cristãos, tínhamos medo que nos matassem e levassem as nossas mulheres. Fui a Tel Kaif em agosto e no mesmo dia voltei e levei a minha família embora daqui”, lembra Zeki Isho. A família, que toda a vida tinha vivido em Teleskuf, viu-se obrigada a fugir em poucas horas. “Fugimos só com o que tínhamos connosco, deixámos tudo o resto na casa. Levámos o dinheiro, os documentos e as roupas da minha mulher”, conta. Os vizinhos fugiram todos na mesma altura e a vila ficou deserta. Sem ninguém a quem recorrer nas autoridades civis, a família voltou-se para o bispo, que lhes arranjou um lugar para ficar em Zakho durante um ano e meio.
O plano não era ficar longe de casa tanto tempo. Habituados a fugir de casa durante os picos de tensão entre o exército e grupos terroristas, a família achou que ficaria fora de casa no máximo por dez dias. “Por isso, deixámos cá tudo. Acabou por durar três anos”, conta o homem, que hoje trabalha como auxiliar na igreja local, gerindo o plano de reconstrução das cerca de 1.400 casas de Teleskuf que foram destruídas (total ou parcialmente) ou incendiadas pelo grupo terrorista. Após um ano e meio em Zakho, a família mudou-se para Alqosh, uma outra cidade a cerca de 40 quilómetros de Mossul, imediatamente para lá da fronteira do território reclamado pelo Estado Islâmico. Foi a forma de os netos poderem frequentar uma escola — em Zakho todas as escolas eram curdas e por isso as aulas eram em língua curda e não em árabe, como acontece nas escolas controladas pelo governo iraquiano.
Percorrendo as vilas e aldeias em torno de Mossul encontram-se histórias em tudo semelhantes à daquela família. Em Qaraqosh, a mesma cidade onde John Alias já está a reconstruir a sua casa, Ghazuan e a família já conseguiram regressar ao seu lar, que também foi queimado e destruído pelo Estado Islâmico. “Os terroristas queimaram a nossa casa, esta casa”, diz o homem, engenheiro de transportes e locutor numa rádio local, lembrando as “bombas e as explosões nas ruas” que ainda hoje perduram nas marcas das centenas de estilhaços nas paredes exteriores da casa. “Roubaram tudo da minha casa, e o que não roubaram foi queimado. Só sobrou a árvore de Natal”, lembra Ghazuan, com os seus 40 anos, sentado ao lado da mulher, que prefere não falar, e das duas filhas — Crispy, de quatro anos, que nasceu três meses antes da invasão do Estado Islâmico, e Emily, de dois anos, que nasceu já em Erbil durante o período de refúgio da família.
Ghazuan fugiu com a família para Duhok, 60 quilómetros a norte de Mossul, também na expectativa de regressar a casa dois ou três dias depois. “Quando cheguei a Duhok e vi na televisão que o Estado Islâmico tinha mesmo tomado o controlo de Qaraqosh, pensei que tudo estava acabado”, revela. “Quem não vive aquele dia não sabe o que é perder tudo. A casa, a vida toda, tudo, num dia.” Ficaram sete meses em Duhok e depois mudaram-se para Ankawa, o bairro cristão de Erbil, onde a esmagadora maioria dos deslocados que tinham fugido daquela região já se encontrava.
“Toda a gente fugiu para Ankawa. Chegava a haver três e quatro famílias por apartamento, uma família inteira a viver num quarto”, lembra o padre Tahbet Yousif, pároco de Karemles, uma pequena vila a 15 quilómetros de Mossul que também foi completamente devastada. Ali viviam 900 famílias antes da invasão terrorista, que chegou de surpresa. Por ser tão perto de Mossul e mesmo à beira da estrada que liga à cidade, foi das primeiras vilas a ser tomada pelos terroristas, na noite de 6 para 7 de agosto de 2014. “Escapámos duas horas antes de o Estado Islâmico chegar”, recorda o padre, que foi o último a abandonar a vila, qual capitão de um barco naufragado. “Eu fui no final e levei os manuscritos antigos da igreja, como um Evangelho do século XIII, os registos dos batismos e o Santíssimo Sacramento que estava no sacrário”, lembra o sacerdote.
Naquela vila, com oito mil anos de história, o Estado Islâmico apropriou-se de uma creche que passou a usar como armazém e fábrica de bombas. “Encontrámos lá materiais para fabricar bombas, explosivos e TNT, no meio dos brinquedos das crianças”, lembra o padre Tahbet, um dos primeiros a voltar à vila depois da libertação. O templo de Santa Bárbara, uma enorme igreja construída num monte à entrada de Karemles, converteu-se numa das primeiras posições estratégicas do Estado Islâmico fora de Mossul. “Veem aquelas aberturas na colina? São buracos onde os snipers se escondiam.”
Em Ankawa, na cidade Erbil, instalou-se o caos. Em poucos dias perto de 150 mil pessoas chegaram àquele bairro. Zaid Alniser, arquiteto de 34 anos natural de Bagdade, vive ali desde 2006 e lembra-se do dia em que, quando voltava do trabalho, encontrou as ruas cheias de gente ao ponto de não conseguir passar com o carro. Passou aquela noite de 7 de agosto a ajudar como podia aquelas pessoas que continuavam a chegar vindas das aldeias da planície de Nínive. “Naquela noite andámos a receber as famílias que chegavam. Andávamos nas ruas a cuidar de quem vinha. Dávamos comida, acolhíamos as pessoas em casa… Nessa noite, acolhi três famílias em minha casa. Ficaram a viver lá durante cerca de seis meses”, conta Zaid ao Observador em Qaraqosh, onde está a oferecer o seu trabalho como arquiteto nos projetos de recuperação e reconstrução das aldeias da região.
A reconstrução de uma região devastada
“Fui ter com o bispo e disse-lhe que gostava de ajudar a renovar as casas e a trazer as pessoas de volta para aqui. E ele disse-me: ‘Vais ser o representante da Igreja Ortodoxa Síria no comité?”, conta Zaid. Oriundo de uma família ortodoxa, Zaid é já o arquiteto oficial da Igreja Ortodoxa Síria, após ter desenhado inúmeras igrejas para a instituição. Atualmente, encontra-se a terminar a nova catedral ortodoxa de Erbil, após a catedral de Mossul ter sido destruída pelo Estado Islâmico. O comité a que se refere é o NRC (sigla inglesa para Comité de Reconstrução da Planície de Nínive), uma organização formada em fevereiro de 2017 pelos líderes das três principais denominações cristãs do Iraque — a Igreja Católica Caldeia, a Igreja Ortodoxa Síria e a Igreja Católica Síria –, em parceria com a fundação pontifícia Ajuda à Igreja que Sofre, com o objetivo de reconstruir e repovoar as aldeias e cidades cristãs da região depois da reconquista de Mossul no ano passado.
Numa região em que os padres cristãos são os principais líderes comunitários, foi precisamente para eles que todas as famílias em desespero se voltaram. Mas também eles tiveram de fugir dali e voltaram-se para os bispos, que pouco tiveram para oferecer senão as igrejas, os centros paroquiais e as propriedades eclesiásticas da zona norte do país. Depois da libertação, os padres foram os primeiros a regressar às suas paróquias e abraçaram desde o primeiro momento o desafio de as reconstruir, assumindo-se como líderes efetivos das comunidades — mais do que os presidentes de câmara ou outras autoridades civis, que ali não têm mais do que um poder simbólico de representação dos habitantes.
O padre Salar Boudagh, pároco caldeu de Teleskuf, está à frente do processo de reconstrução daquela vila, que, na verdade, apenas esteve sob controlo efetivo do Estado Islâmico durante oito dias. “Depois, os peshmerga [forças armadas curdas] tomaram o controlo da vila novamente, mas foi palco de guerra durante três anos. Toda a gente fugiu. Os peshmerga estiveram três anos a lutar contra tentativas do Estado Islâmico de recuperar a vila”, explica o padre, lembrando concretamente o “grande ataque de 3 de maio de 2016”, em que o Estado Islâmico conseguiu novamente controlar a vila. Só em 2017, já depois da libertação de Mossul, é que o perigo desapareceu.
“Eu fiquei em Alqosh, onde a maioria das pessoas daqui se refugiou. Fiquei com as pessoas”, lembra o padre, que agora percorre as ruas de Teleskuf para inventariar o prejuízo. “Aqui foram entre 400 e 500 as casas que ficaram destruídas, além de um jardim de infância que era gerido por uma congregação de irmãs dominicanas e um orfanato das irmãs caldeias. As crianças órfãs agora estão em Alqosh”, explica. Mas o êxodo já se começou a reverter significativamente. Só ali, 867 das 1.287 casas danificadas já foram reconstruídas e 73% das famílias já regressaram. Além dessas, outras 400 famílias mudaram-se para lá, oriundas de locais como Batnaya ou Tel Kaif, que ficaram totalmente destruídos e para onde ninguém quer voltar.
Também em Bartella, a pouco mais de 10 quilómetros da entrada de Mossul, os números impressionam. Das cerca de 2.500 famílias cristãs que ali viviam, mil já regressaram, para 600 casas já reconstruídas pelo mesmo comité, explica o padre ortodoxo Jakob Tersley, responsável por aquela povoação. Por toda a região, os cartórios paroquiais estão transformados em autênticos escritórios de engenharia. No pequeno gabinete do padre Jakob acumulam-se plantas técnicas da vila, desenhadas pelo NRC, onde estão identificadas todas as casas e o grau de destruição a que foram sujeitas: se são do tipo C (parcialmente destruídas), do tipo B (incendiadas) ou do tipo A (totalmente destruídas). “Aqui há aproximadamente 2 mil casas de famílias cristãs. Já reconstruímos 600 casas, temos 500 do tipo C ainda por concluir, e ainda não conseguimos começar as do tipo B. Precisamos de ajuda financeira para continuar o processo”, diz o padre.
Mas é em Qaraqosh que o aparato é maior. A cidade é a maior povoação cristã do Iraque e ali “todas, mas mesmo todas as casas sofreram algum tipo de destruição”, explica o padre sírio-católico George Jahola, pároco e coordenador do projeto de reconstrução da cidade — financiado pelo NRC e por outras organizações não-governamentais que se quiseram associar à iniciativa. O número total de casas afetadas na cidade é de 6.936 — a totalidade. A maioria sofreu danos parciais na estrutura ou foi incendiada, sendo por isso classificada com os tipos C ou B, mas algumas centenas foram completamente destruídas. Daquelas, 2.344 já foram reconstruídas e mais de 50% das famílias já regressaram — apesar de muitas não estarem ainda nas suas casas. É o caso de John Alias e da sua família, que se encontram em instalações temporárias enquanto decorrem as obras na sua casa.
“Somos cristãos, não odiamos o Estado Islâmico. Amamos toda a gente”
Zeki Isho e Nadjet Younes, o casal idoso de Teleskuf, regressou à vila em maio de 2017 para encontrarem uma casa completamente queimada e destruída. A alegria por regressar ao local de origem desvaneceu-se quando viu a casa. “Pensámos em sair do país”, admite Zeki. Foi a Igreja, por via do padre Salar Boudagh, que os convenceu a ficar ali, numa povoação que em tempos foi o centro económico da região. “Havia 300 lojas aqui”, recorda o homem. Todas foram destruídas pelo Estado Islâmico. Mas agora, a vida está gradualmente a voltar a Teleskuf. “Estão lojas a abrir, a Igreja já abriu algumas lojas, um hospital. Até já há um café”, comenta Zeki, visivelmente animado com a ideia de poder contribuir para a recuperação do lugar. “Adoramos a nossa vila e queremos ficar aqui para a proteger.”
Mas não é só a reconstrução da casa e a recuperação económica da vila que fazem o casal querer ficar em Teleskuf. É, sobretudo, a possibilidade de um futuro melhor, porque “a Igreja está a prometer a juventude”. Promovendo cursos profissionais, incentivando o estudo na Universidade de Mossul e envolvendo os jovens nos trabalhos da paróquia, o padre Salar tem contribuído para a fixação dos mais jovens numa povoação em ruínas. “É difícil, mas as pessoas estão a voltar à normalidade”, resume o padre.
Em Bartella, às portas de Mossul, o antigo polícia Mushtuq Taufik e a mulher Ashwak Botros também já voltaram a casa. “Esta é a minha vila. Se eu não volto, se ninguém volta, como é que sobrevive?”, questiona Mushtuq na sua casa recém-reconstruída, onde nos recebe com o padre Jakob — a quem se desdobra em agradecimentos. Quando os militantes do Estado Islâmico chegaram a Bartella vindos de Mossul, Mushtuq e Ashwak, com as filhas Shnouda, Sidra e Sarah, fugiram para o norte do país, sem rumo. Como a maioria dos outros deslocados internos, foi em Erbil que encontraram refúgio durante mais de dois anos. “Estávamos com medo. Sempre que estivemos fora, só pensava em voltar para aqui”, diz Ashwak, interrompendo o marido enquanto este lembra emocionado o dia em que teve de fugir de casa. “Graças à Igreja e não a outras instituições, como a ONU, a nossa casa foi reconstruída”, insiste.
A invasão do Estado Islâmico obrigou o governo iraquiano a reorganizar as forças policiais da região, destacando a maioria dos agentes para as grandes cidades, como Mossul ou Bagdade. Mas os salários constantemente atrasados — num ano recebeu dois meses — fizeram-no repensar a profissão. “Para quê colocar a minha vida em perigo com o Estado Islâmico se nem me pagam o salário”, pergunta. Também neste caso foi na Igreja que encontrou a solução. Ainda em Ankawa, tornou-se motorista da Igreja, trabalho que ainda hoje desempenha para auxiliar o padre Jakob. Para o futuro, Mushtuq e Ashwak só querem uma coisa: “Que os filhos acabem a escola e vão para universidade. Mas só quando for seguro ir estudar para Mossul”.
É difícil esquecer o que aconteceu. De um dia para o outro, o Estado Islâmico tomou de assalto dezenas de cidades e aldeias, obrigando milhares de pessoas a largarem tudo o que tinham e a fugir no meio da noite para o norte do país apenas com a roupa que tinham vestida. “Ninguém cuida deste povo”, lamenta Ammar Hendi, sentado numa cama da sua casa reconstruída em Qaraqosh. A família deixou Erbil para voltar à cidade natal em outubro de 2017. Lá, encontraram uma casa parcialmente destruída, com a fachada destruída e repleta de buracos de bala. “Quando chegámos, começámos a tratar da casa. O comité [NRC] pagou o arranjo”, explica Ammar. “Sem a fundação não tínhamos nada. Nunca estaríamos à espera de ajuda do governo”, atira o professor universitário, que esteve deslocado durante três anos antes de conseguir regressar a casa e ao seu antigo emprego.
Ammar não tem dúvidas de que foi a fé cristã que lhe permitiu ultrapassar aquele período — que incluiu uma passagem por França em busca de tratamentos médicos para a mulher que não correu da melhor forma. Na casa multiplicam-se imagens religiosas. Crucifixos, miniaturas de Nossa Senhora de Lourdes, terços… E no discurso de Ammar, repetem-se as referências bíblicas. Até a maior de todas, a do perdão. “É difícil esquecer o que aconteceu”, reconhece. “Mas somos cristãos, não odiamos o Estado Islâmico. Amamos toda a gente”, acrescenta de seguida, pedindo apenas empregos estáveis para a família e paz para o futuro. “O Estado Islâmico foi embora, mas pensamos todos os dias no que vai acontecer no futuro. A situação no Iraque muda todos os dias.”
A longa espera pelo regresso
Apesar de vários milhares de pessoas já terem conseguido voltar, atualmente, cerca de 95 mil cristãos iraquianos ainda aguardam uma oportunidade para regressar às suas casas em Mossul ou nas cidades e aldeias da planície de Nínive. Segundo as últimas estimativas da fundação Ajuda à Igreja que Sofre, principal organização a dinamizar e a financiar os projetos de reconstrução levados a cabo pelo NRC no Iraque, são cerca de 12 mil as famílias que ainda vivem deslocadas dos seus locais de origem em Erbil e noutras regiões do Curdistão iraquiano.
É o caso de Khaler Aziz Abel Ahad, de 66 anos, e da sua mulher, Hanna, de 62. O casal, natural de Mossul, vive hoje num contentor com duas divisões no campo de deslocados Ashti 2, nos arredores de Erbil. O campo, que chegou a acolher cinco mil pessoas em 2015, já só tem hoje 200 residentes e está, para todos os efeitos, encerrado. Mas as pessoas que não conseguiram regressar ficaram sem solução — e continuam a viver ali. “Não temos lugar para voltar e não queremos voltar para Mossul. Sofremos muito lá. Antes do Estado Islâmico foi a Al-Qaeda, mataram muitos de nós”, diz Khaler.
A família é natural de Mossul, mas mudou-se para Qaraqosh pouco antes da ocupação pelo Estado Islâmico, depois de dois dos seus parentes terem sido mortos por radicais islâmicos. Dono de uma loja onde fabricava e vendia portas e janelas no bairro comercial de Wadi Agab, Khaler viu de perto durante anos a guerra entre os norte-americanos e os Mujahidin, os guerrilheiros islâmicos. Mas nunca tão de perto como no dia em que dois dos seus primos foram mortos a tiro naquele bairro. No mesmo dia, Khaler pegou na família e fugiu para Alqosh, onde ficou um mês até se estabelecer em definitivo em Qaraqosh.
A casa de Mossul ficou com os vizinhos, que tomaram conta dela até serem expulsos pelo Estado Islâmico, que chegou duas semanas depois. “Eles chegaram a meio da noite, escreveram o ﻥ [inicial da palavra ‘nazareno’ em árabe, usada para identificar os cristãos] na parede e disseram ‘têm de sair imediatamente’. Ficaram com a casa, que agora só tem as paredes. Roubaram tudo”, lembra o homem. No mês seguinte, também Qaraqosh foi tomada pelo Estado Islâmico e a família teve de voltar a fugir — desta vez para Erbil, onde a Igreja lhes encontrou uma casa onde puderam ficar, com outras famílias. Três anos depois, com o final do domínio do Estado Islâmico sobre a planície de Nínive, a família tentou arrendar um apartamento em Erbil, mas não conseguiu pagar as contas durante muito tempo, e acabou por ter de sair da casa.
Numa tentativa de obter alguns rendimentos, a família arrendou a casa de Mossul a uma família muçulmana por 200 mil dinares mensais — o equivalente a cerca de 145 euros, um valor manifestamente insuficiente para sustentar uma casa. Por isso, voltaram a pedir ajuda à Igreja e encontraram-na no padre Emanuel Kallo, responsável do campo, que os acolheu no final de 2017. “Ainda não visitámos Mossul depois da ocupação. Não temos motivação para lá ir. Vimos a morte nos nossos olhos, não é fácil voltar lá”, diz Khaler, lembrando como “até o cemitério o Estado Islâmico destruiu” e como a organização terrorista usou a casa do seu irmão como tribunal. “Esperamos sair deste campo, não é bom viver num contentor. Mas não conseguimos. Não temos dinheiro para pagar as contas”, conclui o homem.
No que depender do padre Emanuel Kallo, ninguém vai ser forçado a sair do campo se não tiver possibilidades para o fazer. “Tentaremos ficar até ao último momento com eles, para que as pessoas não tenham de ficar a viver em contentores para sempre”, explica o sacerdote, que antes da ocupação do Estado Islâmico era pároco em Mossul. “Nunca pensei que a minha missão enquanto padre fosse a de ser diretor de um campo de refugiados”, confessa. Mas foi o trabalho que lhe calhou em sorte quando, “finalmente”, em 2015, o governo iraquiano e o governo regional do Curdistão chegaram a um acordo para implementar campos que pudessem acolher os milhares de cristãos que enchiam as ruas, os centros comerciais, as igrejas e as escolas de Erbil.
“No início, o campo tinha 5 mil pessoas, mas agora são poucas. Cerca de 200. Muitas destas famílias precisam do campo para prepararem o regresso a Bartella, Qaraqosh e outras cidades. Vamos tentar ajudar as pessoas a regressar à planície de Nínive ou a Mossul ou então a arrendar algo por aqui. Há dificuldades com muitas famílias em voltar à vida normal, mas estamos a tentar ajudá-las. Se elas não tiverem uma casa, tento ajudar a encontrar uma. Ficamos em contacto com as famílias que saem daqui para as ajudarmos. Mas uma coisa é certa: não podemos ficar sempre nesta situação, de estar sempre a pedir ajuda. Temos de tentar sair desta situação”, explica o padre, que hoje se divide entre o acompanhamento daqueles que ainda vivem no campo e o trabalho de recuperação em Mossul.
Para o padre, é essencial começar desde já a reconstruir a igreja e outras infraestruturas religiosas em Mossul, além das casas. “Muitas famílias hoje ainda acham muito difícil voltar a Mossul. Mas se as pessoas virem que há uma igreja, que há um padre, talvez comecem a regressar. O que as impede de voltar lá é a falta de confiança”, defende. Por isso, já está em curso o processo de construir uma igreja na cidade. Ou melhor, de levar para lá uma igreja. O templo feito de contentores que estava no campo de refugiados em Erbil está a ser transportado para a cidade para servir de igreja nos próximos tempos. E muitos dos contentores residenciais que ocupavam o espaço do campo estão a ser levados para Mossul para servirem de residência para estudantes universitários, numa tentativa por parte da Igreja de fixar estudantes na cidade.
“É a minha vocação. Podia ser padre em qualquer lugar do mundo, mas recusei. Gosto de estar ao serviço da minha missão no lugar que Deus escolheu para mim”, afirma o padre. E esse lugar é um dos mais difíceis do mundo, consolo de uma minoria num país em guerra permanente. Em Mossul, a igreja do padre Emanuel já montou, em colaboração com várias ONGs, uma creche, uma escola, um centro de workshops para mulheres, vários campos de jogos e um salão para atividades de jovens. Mas grande parte do seu dia ainda é passado em Erbil junto dos 200 iraquianos que ainda não conseguiram voltar a casa. Desses, cerca de um quarto são naturais de Mossul. As outras são oriundas dos locais mais diversos da planície de Nínive. Muitos dos que estavam no campo saíram do país para procurar refúgio na Europa. “Demasiados”, lamenta o padre. “Os seres humanos são livres e fazem o que quiserem. Eu vou fazer o que tenho de fazer.”
E agora? A falta de emprego e um futuro incerto
Steven Nasrat Hanna, de 24 anos, e Marena Assaim Shamoon, de 20 anos, vão casar daqui a três meses. Os dois jovens, naturais de Teleskuf, representam uma bolha de esperança e de futuro naquela vila destruída e são o orgulho dos locais. Quiseram voltar e casar na igreja da terra onde nasceram, entretanto reconstruída graças aos dotes de arquiteto do padre Salar Boudagh e ao financiamento de várias organizações não governamentais. Mas apesar de, para aquela vila, os dois jovens representarem o futuro, é precisamente o futuro que mais os preocupa.
“O problema vai ser depois do casamento. Onde é que posso trabalhar? Como é que posso viver? O que é que posso fazer para ter dinheiro para a minha família? Essa é a questão”, diz Steven. Há poucas respostas para estas perguntas legítimas. Ali em Teleskuf, o padre Salar tem ativamente procurado criar empregos para atrair as pessoas de novo para a vila. Por isso, muitos dos que já regressaram trabalham precisamente para a paróquia, como motoristas, sacristães, tesoureiros ou construtores civis. O esforço negocial do sacerdote convenceu também uma ONG austríaca a abrir ali uma fábrica de produção de comida pré-cozinhada, que deu emprego a algumas dezenas de pessoas. Mas ainda faltam empregos. “Quero ver se arranjo outras ONGs que queiram ajudar a construir aqui algumas fábricas. Tenho em mente uma fábrica de gelo, por exemplo, muito necessária aqui”, explica.
A criação de emprego é também uma das principais preocupações do padre Jakob Tersley, de Bartella. “Há famílias que querem mesmo voltar, mas há outras que não têm condições”, explica o sacerdote ortodoxo. A Bartella já regressaram mil das cerca de 2.500 famílias que ali residiam e que tiveram de fugir por causa do Estado Islâmico. Muitas gostariam de voltar aos seus empregos antigos, e muitas vezes só precisam de uma pequena ajuda da igreja. “Imagine que uma família é proprietária de um mini-mercado. Esse mini-mercado ainda existe fisicamente. Mas a família precisa de um sítio para ficar e precisa de um incentivo para conseguir abastecer a loja antes de retomar o negócio”, diz o sacerdote.
É isso que a Igreja tem procurado fazer. “Muitas das lojas que existem na vila são propriedade da Igreja ou foi a própria Igreja que as reconstruiu. É um incentivo para criar empregos”, destaca o padre Jakob. E os números são significativos. “Entre 100 e 150 famílias que já regressaram têm agora empregos relacionados com a Igreja”, sublinha o sacerdote, detalhando que esses empregos incluem as creches, as obras de reconstrução, a enfermaria e várias lojas. Um número que é comparável com a percentagem de funcionários públicos num país como Portugal, onde cerca de 15% dos trabalhadores são funcionários do Estado. Ali, quem garante as funções do Estado são as igrejas. “A Igreja está ativamente à procura de criar empregos para as pessoas”, garante.
Explore no mapa os locais referidos neste artigo:
Os medos, esses, não desaparecem. Entre os iraquianos, a interrogação ainda é diária: afinal, para onde foi o Estado Islâmico? Há quem acredite que muitos dos militantes cortaram as barbas e se integraram em grupos de deslocados quando se tornou evidente que as forças iraquianas iriam retomar o controlo da cidade de Mossul, estando hoje a viver disfarçados em várias comunidades, à espera de uma oportunidade para se reorganizarem. Outros estarão escondidos em pequenas comunidades no deserto ou nas montanhas. Para um povo que se habituou a viver em guerra, porém, o medo já não mete medo. “Nasci em 1984 e não me lembro de um ano da minha vida sem ser em guerra”, desabafa o arquiteto Zaid Alniser. “Mas já visitei muitos países e não quero deixar de viver no Iraque, que é o meu país, o país que eu amo”, acrescenta. O medo ainda lá está e continuará a estar. Mas a vontade de voltar a casa será sempre maior.
O Observador viajou para o Iraque juntamente com outros meios de comunicação europeus a convite da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS/ACN)