Estaline morreu a 5 de março de 1953, vítima de uma apoplexia, três dias depois de ter sido encontrado caído no chão da sua biblioteca por uma velha criada da casa, Matrióna Petróvna, enviada ao interior dos aposentos do ditador pelo guardas que estranharam o seu silêncio. Os “camaradas de luta” de Estaline esperaram seis horas e dez minutos até que fosse ordenado que se baixasse a bandeira no Kremlin, anunciando oficialmente que o líder soviético estava morto. A notícia foi um choque para os milhões de cidadãos da União Soviética, que se viram subitamente desamparados sem a figura do homem que os orientava há 30 anos.
A notícia também apanhou o Governo dos Estados Unidos desprevenido. Dwight Eisenhower e o secretário de Estado John Foster Dulles tinham tomado posse há pouco mais de dois meses quando lhes chegou aos ouvidos a notícia da doença e morte de Estaline. A nova administração norte-americana queria “fazer recuar” o comunismo, só que acabou por ser confrontada com uma realidade que não tinha previsto — os herdeiros de Estaline estavam a tentar distanciar-se do seu antigo líder. E Eisenhower e Foster Dulles não souberam como responder ao desafio.
É a este período marcante da história do século XX que Joshua Rubenstein, professor na Universidade de Harvard e autor de Stalin’s Secret Pogrom: The Postwar Inquisition of the Jewish Anti-Fascist Committee (2010) dedicou o seu mais recente livro, Os Últimos Dias de Estaline. Analisando a cobertura noticiosa de então, documentos oficiais e testemunhos, Rubenstein procurou reconstruir os meses que antecederam e que se seguiram à morte do ditador, revelando o seu impacto na União Soviética e no mundo. O livro foi recentemente publicado em Portugal pela Objectiva e foi a esse propósito que falámos com o autor.
Este livro é centrado na morte do governante, mas também relata muitos dos acontecimentos que a antecederam e a sucederam. Ficamos a saber, por exemplo, que nos últimos meses de vida, Estaline queria fazer algumas mudanças na liderança do Partido Comunista. O que é que ele queria alcançar com estas alterações?
Existe o consenso, entre aqueles que estudam o último período estalinista, de que Estaline estava a planear uma purga aos altos cargos do partido. Antes do XIX Congresso do Partido acontecer em Moscovo, em outubro de 1952, Estaline anunciou alterações no Politburo [a autoridade máxima do Partido Comunista da União Soviética], que passou a chamar-se Presidium e a ter um maior número de membros [25]. Parece claro que estava a tentar diluir a autoridade de vários membros de longa data, como Vycheslav Mólotov, Anastas Mikoyan e Lavrenti Béria. Mikoyan admitiu nas suas memórias que tinha medo de ser liquidado e Mólotov, que tinha sido levado a divorciar-se da mulher [Polina Zhemchuzhina], que tinha sido detida em 1949, já não fazia parte do círculo fechado de Estaline. É difícil dizer o que esteve por detrás da decisão de Estaline. Ele trabalhou com aquele grupo durante muitos anos, contando sempre com a sua lealdade em várias crises graves, incluindo a Grande Purga, a Segunda Guerra Mundial e os primeiros anos da Guerra Fria. Existem razões para acreditar que Estaline pensava que podia haver uma nova guerra, desta vez com o ocidente e com os americanos, e que precisava de promover quadros mais novos [do partido] nos quais podia confiar.
Porque é que ele acreditava que podia haver uma nova guerra?
Depois de Mao Zedong ter conduzido o Partido Comunista à vitória [na China] em 1949, Estaline acreditava que uma “constelação de forças” estava a conspirar a favor do bloco soviético. Antecipando uma guerra com o ocidente, chamou ao Kremlin, em janeiro de 1951, os líderes partidários e ministros da Defesa do bloco soviético, tendo-se chegado a um acordo para aumentar significativamente os investimentos na Defesa. Não se esqueça que a Guerra da Coreia tinha começado em junho de 1950, depois de Estaline ter dado explícita permissão à Coreia do Norte para invadir a do Sul. E ele insistiu em alimentar o conflito mesmo depois de os chineses e norte-coreanos terem admitido que queriam negociar o fim da guerra. Foram os herdeiros de Estaline, assim que ele morreu, que deram início a novas conversações para acabar com o conflito.
Foi também nos últimos meses de vida de Estaline que foi divulgada a chamada Conspiração dos Médicos, uma larga campanha antissemita contra os médicos judeus, acusados de conspirarem para assassinarem os líderes soviéticos e de trabalharem para os Estados Unidos como espiões. Muitos foram julgados, deportados ou condenados à morte. A perseguição de judeus na União Soviética não era novidade, mas como é que se explica este ódio súbito contra os médicos?
É uma ironia trágica que Estaline tenha dado início às políticas mais antissemitas durante a Segunda Guerra Mundial, quando o Exército Vermelho estava a combater a Wehrmacht alemã. Como frisei no meu livro, o Kremlin começou rapidamente a purgar os judeus das principais instituições académicas, culturais e industriais, em 1943. Depois da guerra, à medida que a Guerra Fria ia ganhando forma e com o estabelecimento de Israel, em 1948, as suspeitas de Estaline em relação aos judeus tornaram-se ainda maiores. Ele duvidava da sua lealdade. O Comité Antifascista Judaico [criado em 1941] foi encerrado nesse ano, e muitos dos seus líderes foram detidos. As instituições culturais iídiches foram fechadas. A campanha anti-cosmopolitista de 1949 não passou de um ataque disfarçado ao papel dos judeus na cultura soviética. Apesar de o julgamento dos membros do Comité Antifascista Judaico ter decorrido em segredo, na primavera e no verão de 1952, e a execução dos 13 réus ter sido feita também em segredo, a 12 de agosto desse ano, a Conspiração dos Médicos foi anunciada publicamente a 13 de janeiro de 1953. A esta seguiu-se uma onda de propaganda antissemita na imprensa soviética.
Segundo o autor, na altura, viviam na União Soviética cerca de 2,5 milhões de judeus, sobretudo em grandes cidades como Moscovo, Leningrado e Carcóvia. “Eram, globalmente, bastante instruídos e em muitos casos ocupavam lugares de visibilidade em instituições científicas e culturais.”
Não era um pouco arriscado anunciar publicamente a perseguição de judeus dentro da União Soviética depois do que tinha acontecido durante a Segunda Guerra Mundial?
Tanto quanto sabemos, Estaline não via risco nenhum em atacar os judeus soviéticos desta forma. Mas o facto de a propaganda associada à Conspiração dos Médicos ter desaparecido da principal imprensa soviética a 20 de fevereiro [de 1953], uma decisão que apenas Estaline podia ter tomado, faz-nos questionar se ele estava a repensar até onde a devia levar. Não se esqueça que os médicos que foram detidos não foram julgados, nem em segredo nem num tribunal aberto, apesar de o regime ter prometido, a 13 de janeiro, que “uma investigação irá chegar brevemente ao fim”, uma indicação óbvia de que estava a ser planeado algum tipo de procedimento ou de julgamento de fachada.
Sabemos a origem desta desconfiança da parte de Estaline? Porque é que ele decidiu implementar medidas antissemitas?
Estaline sempre teve opiniões antissemitas, mas foi obrigado a camuflá-las durante muitos anos porque estava e tentar liderar um partido que tinha lutado contra o regime antissemita do czar e que defendia crenças internacionalistas. A mudança mais dramática nas políticas de Estaline aconteceu com o início da Guerra Fria e o estabelecimento de Israel, em 1948. Estaline estava a tornar-se cada vez mais paranoico, nas suas crenças e ações. Os judeus soviéticos receberam com entusiasmo os diplomatas israelitas em Moscovo, e muitos tentaram voluntariar-se para combater por Israel durante os primeiros anos da independência do país. Estaline não podia tolerar a ideia de os cidadãos soviéticos mostrarem o seu entusiasmo por um governo estrangeiro que, ainda por cima, era judeu.
A propaganda da Conspiração dos Médicos foi rapidamente absorvida pelos cidadãos, desencadeando reações um pouco por toda a União Soviética. Podemos dizer que este é um bom exemplo da forma como a população tinha sido, ao longo dos anos, ensinada a acreditar cegamente na versão do regime?
Sim, temos documentos que confirmam que a propaganda estridente associada à Conspiração dos Médicos estava a afetar as relações sociais. A população tinha sido “ensinada” no que acreditar e as pessoas começavam a comportar-se à luz de o regime apoiar oficialmente o antissemitismo.
E que comportamento era esse?
Perante o anúncio da Conspiração dos Médicos, em 1953, muitos cidadãos soviéticos entenderam que não havia problema em atacar judeus em geral, e não apenas os médicos. Há muito que o regime os tinha ensinado a comportar-se e no que tinham de acreditar. Houve incidentes em que cidadãos individuais, e até membros do partido, foram longe de mais, que incluíram ameaças abertas e ataques a judeus. Pelo menos de acordo com os relatórios internos do partido, este tipo de agitação social não era tolerada.
Estaline foi encontrado desmaiado no chão por uma velha criada, Matrióna Petróvna, a 2 de março de 1953. Tinha tido uma apoplexia. Apesar de não reagir a qualquer estímulo, os membros do Presidium só decidiram chamar um médico no dia seguinte. Foi uma decisão motivada apenas por medo ou houve outros motivos?
Esta velha criada foi enviada aos aposentos privados de Estaline porque os guardas, que tinham ordens de não deixar ninguém entrar sem ter sido chamado, estavam muito ansiosos. Acreditavam que era pouco provável que ela levantasses suspeitas caso ele estivesse bem. Quando o encontraram caído no chão, alertaram os membros do Presidium e deixaram a decisão de chamar assistência médica para homens como Béria e Malenkóv. Estes deixaram a dacha a meio da noite, afirmando que parecia que Estaline estava a dormir normalmente [alguns relatos referem que ressonava] — que não estava — e que os guardas tinham entrado em pânico. Foi só quando os guardas voltaram a mostrar-se preocupados que, na manhã seguinte, chamaram assistência médica. É bem possível que os herdeiros de Estaline tivessem consciência de que ele estava gravemente doente e que quisessem que a natureza seguisse o seu curso. Foi só quando os guardas insistiram que alguma coisa estava mal que eles chamaram os médicos à dacha.
A dacha era a residência oficial de Estaline. Localizada perto de Kuntsevo, tinha sido concebida como um lugar onde o líder pudesse descontrair e “distrair-se com passeios entre as árvores e as roseiras ou alimentar as aves”. “Podia receber funcionários do Governo e o ocasional convidado estrangeiro”, explica Rubenstein no seu livro.
A autópsia de Estaline foi divulgada a 7 de março de 1953, no Pravda, com todos os pormenores sobre os danos cerebrais e cardíacos sofridos. Sobre isto, o Joshua escreveu que “o país precisava da confirmação de que Estaline morrera de morte natural”. Porque é que isso era tão importante?
A principal acusação da Conspiração dos Médicos era a de que eles tinham planeado secretamente assassinar os líderes soviéticos. Menos de dois meses depois, Estaline colapsou. Antes disso, a imprensa soviética nunca tinha dado a entender que ele estava doente. Dada a autoridade esmagadora de Estaline, os seus herdeiros precisavam de afastar qualquer receio em relação à sua súbita doença. As suspeitas não podiam ser lançadas sobre os médicos ou sobre os homens que estavam prestes a suceder-lhe.
Sempre houve muita especulação em torno da morte de Estaline, com muitos a acreditarem que tinha sido assassinado. O seu livro mostra claramente que não foi isso que aconteceu. Isto significa que podemos ter certeza absoluta da causa da morte?
A União Soviética era uma terra de impossibilidades ilimitadas. Por exemplo, por um lado é impossível provar que ele não foi envenenado, mas não se esqueça que os médicos que o atenderam no início de março e que fizeram a sua autópsia continuaram a praticar medicina [nos anos que se seguiram]. Um deles escreveu nas suas memórias o que viu e experienciou, outros puderam viajar para outros países. Se houvesse alguma circunstância suspeita, os médicos teriam percebido e teriam falado sobre isso a determinada altura. Ou teriam sido purgados por quem quer que tivesse lavado a cabo o golpe.
Os herdeiros de Estaline temiam que, com a sua morte, o país mergulhasse no caos. Existia mesmo essa possibilidade?
A autoridade de Estaline era tão abrangente que os seus herdeiros temiam que a sua morte perturbasse severamente o país. Eles viram as gigantescas multidões nas ruas de Moscovo, a incapacidade de as controlar devidamente e as perdas de vidas desnecessárias. Também houve mortes em Leningrado e em Tbilisi [na Geórgia, na sequência das manifestações de pesar pela morte do ditador]. Os seus herdeiros temiam a resposta da população e não sabiam como é que o país iria aceitar a sua própria autoridade para governar.
A rapidez com que os novos líderes soviéticos implementaram medidas depois da morte de Estaline é surpreendente. Uma delas foi a libertação de mais de um milhão de prisioneiros de campos de trabalhos forçados, a maior de sempre desde a criação do gulag. Porque é que eles estavam tão decididos a afastar-se das políticas estalinistas?
Eles sabiam que ele era um monstro e que tinha deixado o país num beco sem saída, tanto economicamente como no que dizia respeito às relações com o ocidente. Perceberam que precisavam de se dissociar da Conspiração dos Médicos, da Guerra da Coreia e de encontrar uma forma de mitigar as tensões numa Europa dividida. Também sentiram que era necessário tranquilizar a população, para que esta percebesse que o terror arbitrário de Estaline tinha chegado ao fim.
Disse que Estaline levou o país a um beco sem saída. O que é quer dizer com isso?
Os herdeiros de Estaline chegaram ao poder num momento delicado — as crescentes tensões da Guerra Fria, a Guerra da Coreia, os refugiados que fugiam da Alemanha do Leste para Berlim Ocidental, e a introdução de armas atómicas no arsenal dos dois lados. Os líderes do novo Kremlin não podiam ignorar as condições económicas do país. A Segunda Guerra Mundial tinha devastado a União Soviética e, mesmo que as forças armadas tivessem beneficiado de investimentos significativos, a população continuava a viver em habitações de fraca qualidade com poucas esperanças de melhorias de vida. No XIX Congresso do Partido, em outubro de 1952, Estaline deixou claro que o sector de consumo não podia melhorar por causa dos gastos que tinham de ser feitos com o exército por causa do “cerco capitalista”. Foi por isto que as declarações de Malenkóv durante o funeral de Estaline, durante as quais ele prometeu à população que iriam ter melhores condições de vida, foram tão importantes.
Depois da morte de Estaline, os novos líderes deixaram claro que estavam dispostos a iniciar conversações com os Estados Unidos da América. Apesar disso, o Presidente norte-americano, Dwight D. Eisenhower, mostrou-se relutante em dar uma resposta aos soviéticos, deixando escapar uma oportunidade de chegar a um acordo de paz. Porque é que Eisenhower teve tanta dificuldade em tomar uma decisão?
Apesar de explorar o tipo de oportunidade de “relaxamento” que existia nos meses que se seguiram à morte de Estaline, escrevi esse capítulo [“Uma oportunidade para a paz?”] com cuidado porque não queria entrar no terreno da contra-história. Ninguém pode dizer com certeza o que podia ter sido alcançado se o Presidente Eisenhower, que tinha então tomado posse, se tivesse reunido com os líderes soviéticos. Sabemos que os americanos foram apanhados de surpresa pelos gestos do Kremlin, tanto na política doméstica como nas relações internacionais. Eisenhower e os seus conselheiros esperavam que as coisas ficassem piores depois da morte de Estaline e não estavam preparados, psicologicamente ou no que diz respeito às políticas governamentais rígidas, para admitirem que existia uma oportunidade genuína para uma melhor relação. Acredito que Eisenhower e o seu Secretário de Estado, John Foster Dulles, não tiveram coragem e imaginação para lidar com o Kremlin na primavera fatal de 1953.
Acredita que as coisas podiam ter sido diferentes se Eisenhower tivesse conseguido responder de maneira diferente? Churchill tinha uma outra posição, por exemplo. Sempre defendeu que devia ser realizado um encontro com a União Soviética.
Winston Churchill tinha um sentido de história diferente dos americanos. Ele pressionou Eisenhower para se encontrar com Estaline no início de 1953, e voltou a pedir um encontro depois da morte dele. Apesar de Eisenhower reconhecer que a morte de Estaline criou uma oportunidade única e imprevisível, não tinha confiança suficiente nisso para conseguir ultrapassar as suas próprias hesitações ou a posição inflexível de Foster Dulles.
A relação entre os Estados Unidos e a Rússia sempre foi difícil. Cada presidente norte-americano parece querer lidar de forma diferente com a situação. Olhando para a história dos dois países, porque é que acha que isto acontece?
As tensões entre os Estados Unidos e a Rússia precedem a queda dos Romanov, em 1917, e continuaram depois do colapso da União Soviética, em 1991. Não é possível esperar que dois países, com uma grande população e território, com sistemas políticos e memórias históricas diferentes, se deem bem sem uma negociação e contacto cuidadoso e continuado. Lamentavelmente, os líderes dos dois países atuaram sem o conhecimento adequado das intenções do outro. Mas não se esqueça: apesar de cada país ter desempenhado um papel na criação destas tensões, estamos a falar, por um lado, de uma democracia funcional, com todos os desafios que isso traz e, por outro, de um país que passou por uma monarquia profundamente conservadora, uma ditadura cruel e genocida com pretensões imperialistas e que tem hoje um regime autoritário que procura minar as instituições democráticas na Europa e nos Estados Unidos.