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Adriana Martins, 21 anos, estava entusiasmada por começar a trabalhar num resort de luxo no Algarve, depois de três estágios na área da cozinha e pastelaria. “Claro que ninguém sabia que isto ia acontecer, mas custa sempre porque é o início da carreira. E tinha tudo para começar da melhor maneira“, diz ao Observador. Começou o contrato a 2 de março, mas a 22, já depois de decretado o estado de emergência, o resort rescindiu o contrato durante o período experimental.
Os colegas que iniciaram funções na mesma data de Adriana — na sua maioria jovens — também foram dispensados; os que já trabalhavam há mais tempo no hotel (inclusive, os que já tinham passado o período experimental) ficaram em layoff simplificado. O regime criado pelo Governo proíbe às empresas que a ele adiram despedir trabalhadores, mas permite-lhes que não renovem contratos ou que os denunciem durante o período experimental, o que deixa casos como o de Adriana sem proteção legal — e sem direito ao subsídio de desemprego (só descontou durante 20 dias).
“Disseram-me que, possivelmente, quando isto tudo melhorasse, me poderiam chamar, mas não deram certeza”, conta. Natural de Vila Real, Adriana saiu do Algarve e voltou para casa dos pais. Como não tem o período mínimo de descontos necessário para aceder ao subsídio de desemprego, está sem rendimentos. Já se inscreveu no centro de emprego e procura, autonomamente, trabalho fora da área.
Na hotelaria, este ano está perdido. Já enviei currículo para um restaurante no Algarve, mas também me disseram que não estão a contratar. Na minha área ou tenho a sorte de me chamarem nesta altura, o que acho complicado, ou então só mesmo para o ano. Agora estou a tentar noutras áreas — supermercados, lojas de roupa –, e, mesmo aí, nem sei se vou ter sorte. O problema é que quase nenhum setor está a contratar. Está mesmo complicado.”
Adriana Martins faz parte de um dos grupos mais afetados pelo desemprego decorrente da crise pandémica: é jovem, trabalha na hotelaria, no Algarve, tinha um contrato a termo (de oito meses) e estava no período experimental.
Segundo João Cerejeira, economista e especialista em mercado laboral, era expectável que os mais jovens viessem a ser os mais afetados pela crise da Covid-19, tal como aconteceu com a crise de 2008. Por um lado, devido à sua situação contratual — “têm contratos mais precários”. Por outro lado, “a crise está a cair em cima de um setor que criou muito emprego nos últimos anos, que é o turismo”. Com o crescimento do emprego, o setor “não vai tanto buscar trabalhadores a outros setores, mas a pessoas que estão a entrar na vida ativa”.
Segundo os dados do Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), no final de abril havia em Portugal 392.323 pessoas desempregadas, mais 48.562 do que em março, mas mais 71.083 do que no mesmo mês de 2019. Entre os mais afetados estão as mulheres e quem tem como habilitação escolar o ensino secundário. “Os estudos mais recentes têm mostrado que quem tem mais qualificações tende a estar em ocupações em que, por um lado, é mais possível o teletrabalho e, por outro lado, a necessidade do contacto próximo com outros trabalhadores é menor (à exceção da Saúde)”, enquadra João Cerejeira. São, portanto, profissões que, por ser possível trabalhar em casa, não ficaram em risco.
Os dados do IEFP mostram ainda que foram os trabalhadores com menos de 25 anos ou que têm entre 25 e 34 anos os que viram, em termos percentuais, o desemprego mais subir em abril face ao mês anterior, respetivamente 20,19% e 25,11%.
O Algarve, muito dependente do turismo, foi a região mais afetada: face a período homólogo de 2019, o número de inscritos nos centros de emprego aumentou 123,9%; em relação a março, a subida foi de 21,9%. “O peso do Algarve no novo desemprego é, aliás, sintomático, ao contrastar com o seu diminuto peso relativo na estrutura do emprego, revelando as consequências de grande concentração das suas atividades em torno do turismo“, escreve João Ramos de Almeida, economista e autor do estudo “Novo desemprego: As fragilidades de uma opção produtiva nacional“, do Barómetro do Observatório sobre Crises e Alternativas.
Não é, por isso, de estranhar que tenha sido a atividade do “alojamento, restauração e similares” a que mais desemprego registou em abril face ao mesmo mês de 2019 (+60,6%).
Ao Observador, Francisco Figueiredo, dirigente da Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo (FESAHT), diz que, na hotelaria, “mal começou a crise” iniciaram-se diversos processos de despedimentos: de trabalhadores contratados que ainda estavam em período experimental; a revogação de contratos a termo, “alguns antes dos prazos terminarem”; ou a antecipação de férias.
Alguns empregadores, acrescenta, “empurraram os trabalhadores para bancos de horas negativos“. São casos em que os hotéis mandaram os trabalhadores para casa, com o salário garantido, mas que esperam, quando a atividade for retomada, que as horas em falta que os trabalhadores forem acumulando sejam repostas. “Há trabalhadores que devem centenas de horas aos hotéis. Foram mandados para casa, para depois terem de trabalhar até ao final do ano e os hotéis terem trabalho suplementar de borla“, critica o sindicalista.
Tiago Jacinto, coordenador do Sindicato da Hotelaria do Algarve, acrescenta ao Observador que “mais de metade dos vínculos no setor do turismo são precários“, não sendo, por isso, surpresa que sejam esses os contratos os mais afetados. Na próxima terça-feira, a estrutura sindical organiza uma manifestação em frente ao Ministério do Trabalho — a quem já pediu uma reunião, mas sem resposta — para exigirem medidas, como a reversão dos despedimentos.
Depois do alojamento e da restauração, as atividades mais afetadas são a indústria do couro (+42,7% face a período homólogo de 2019) e as “atividades imobiliárias, administrativas e dos serviços de apoios” (+41,2%). Esta última agrega atividades como as agências de viagem, call-centers, operadores turísticos, assim como organização de eventos, área na qual trabalhava Ana (nome fictício), 26 anos, que estava a um mês de entrar nos quadros quando lhe foi comunicado o despedimento.
Precários representam mais de metade dos novos desempregados
Ana ia ficar efetiva em abril, numa agência de organização de eventos, em Lisboa. Nesse mês completar-se-iam dois anos de quatro contratos a prazo que foram sendo sucessivamente renovados na mesma empresa. Com a pandemia, o setor dos eventos ficou “praticamente parado” e a agência anunciou o layoff para uns (sobretudo, os mais velhos) e decidiu não renovar os contratos a prazo (que abrangem, na sua maioria, os mais jovens).
A decisão foi comunicada a Ana em meados de março — com a obrigatoriedade de que gozasse férias até à data em que, teoricamente, passaria a efetiva. Neste momento, procura emprego noutras áreas, como secretariado e administração. “A minha experiência é na área dos eventos, mas esse é um setor que está parado e acredito que nos próximos tempos não tenha muita saída.” À semelhança de Adriana, também voltou para casa dos pais, mas manteve um quarto em Lisboa para onde, acredita, será possível regressar em breve.
João Cerejeira considera que o desemprego de 2020 poderá assemelhar-se em vários aspetos ao da última crise. Mesmo na fase da retoma. “Os que estão na margem — têm os contratos mais precários, estão a entrar na força de trabalho — tendem a ser os primeiros a ser afetados com as crises, mas também são os primeiros a ver uma redução mais rápida do desemprego durante a recuperação. Se olharmos para a última crise foi assim. O desemprego jovem ultrapassou os 40%, mas tem vindo a diminuir. Foi uma redução muito rápida, mas uma subida muito maior na fase inicial da crise”.
É também isso que espera Maria Coelho, 25 anos. Com o encerramento das escolas a 16 de março, Maria, que acompanhava crianças dos 3 aos 6 anos nas atividades pós-escolares numa escola pública, ficou desempregada. A empresa, subcontratada por uma autarquia, não lhe renovou o contrato de um mês, o terceiro deste género que tinha desde janeiro. “São aqueles contratos ingratos, por mais que trabalhe nunca vou ter direito a nada“, diz ao Observador. Antes disso, desde setembro, esteve na mesma escola, mas a recibos verdes.
Casos como os de Maria, Ana e Adriana estão espelhados nos números de IEFP. Segundo dados do instituto, dos 63.643 pedidos de emprego ao longo do mês (um número que não contempla quem entretanto conseguiu arranjar emprego), a maioria (36.322) apontou como razão para a procura de emprego o “fim do trabalho não permanente”, seguido de “despedido” (16.280). Mais de 2 mil despediram-se e em 2.010 casos houve um despedimento por mútuo acordo. 754 eram trabalhadores por conta própria.
Com um bebé de 18 meses a cargo, e um irmão a estudar no secundário, a Maria vale a ajuda dos pais, que também não é muita — a mãe não trabalha por doença, o pai recebe o salário mínimo. A jovem informou-se junto da Segurança Social sobre que apoios poderia pedir, além do abono de família que lhe dá cerca de 150 euros por mês. Foi informada de que não tem direito nem ao subsídio de desemprego, nem ao subsídio social de desemprego (que esgotou antes de conseguir o trabalho a recibos verdes). Por isso, os serviços aconselharam-na a pedir o Rendimento Social de Inserção (RSI).
O pedido foi feito a 8 de abril — e mais de um mês depois, ainda não sabe se foi deferido ou não. “O que me disseram quando fui, há duas semanas, à Segurança Social, foi que os pedidos estão muito atrasados, que às vezes podem demorar mais de três meses a receber. Mas eu preciso [do apoio] para pagar contas agora, não daqui a três meses.” O Observador questionou o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sobre os tempos médios de deferimento do RSI, mas não obteve resposta.
Rendimento Social de Inserção “agilizado”. Mas inscrição nos centros de emprego continua obrigatória
Maria Coelho, formada em análises laboratoriais e com cursos do IEFP no currículo, como técnica de Proteção Civil, já procurou emprego “em todo o lado”, como em supermercados. Mas em tempos de pandemia “não está fácil“. Pelo menos, com descontos garantidos. “Quando me querem dar trabalho, é sem descontos… essas ofertas não faltam. Mas eu tenho um filho para criar. Tenho de pensar é no nosso futuro“.
“Disseram-nos que seria só durante três semanas”. Quando o casal fica sem rendimento ao mesmo tempo
Na casa de Cláudia Silva, 37 anos, e Lino Barros, 42, de Vila Nova de Famalicão, não entrou rendimento durante cerca de mês e meio. Cláudia foi despedida em março, de uma lavandaria industrial (onde trabalhava há menos de um mês), tal como cerca de 30 outras colegas com contratos iniciados recentemente — algumas tinham contratos com agências de trabalho temporário. “Fizeram-nos assinar a folha [para o desemprego], disseram-nos que em princípio seria só durante três semanas, que depois nos voltariam a chamar. Toda a gente achava que ia ser uma coisa breve. Como se viu, não foi”, refere ao Observador.
O marido, tatuador de profissão, viu o estabelecimento que gere encerrado em meados de março. Desde então continua de portas fechadas, com o apoio da Segurança Social para trabalhadores independente que tiveram quebra de atividade (e que lhe deu, até ao momento, cerca de 560 euros pelos dois meses sem faturação).
Trabalhadores sem descontos vão poder pedir apoio de até 219,4 euros
Os dados do IEFP sobre o “estado civil do desempregado e condição laboral do cônjuge” mostram outra realidade preocupante: o número de casais em que estão ambos no desemprego continua a aumentar desde o início do ano e, em abril, eram já 6.612 (em janeiro, eram 5.451). São mais 710 casais face a março.
No início de maio, Cláudia conseguiu emprego num supermercado, mas durante os dois meses que esteve em casa não teve direito ao subsídio de desemprego porque já o tinha gozado antes. Também não preenchia os requisitos para o subsídio de desemprego subsequente. O que valeu à família, com dois filhos, de 7 e 11 anos, foram as poupanças. “Mas é chato — e sei que é para toda a gente — porque começamos a ver aquilo que estivemos a construir até agora a sair, sem que nada realmente entre. Seria muito mais difícil se não tivéssemos conseguido sequer pôr algum dinheiro de lado, porque por menos que seja é sempre uma ajuda. Se não fossem essas poupanças, teria de pedir ajuda à minha mãe e ao meu pai para que, pelo menos, não faltasse nada na mesa dos meus filhos.”
“Portugal continua a ser o país da Europa com acesso mais difícil ao subsídio de desemprego”
Se, em abril, foram inscritas mais 48.562 pessoas nos centros de emprego do que em março, apenas há mais 24.134 a receber prestações de desemprego, num total de 197.949, (que corresponde a um acréscimo mensal de 13,9% e de 17,2% face a abril de 2019).
Como pode esta diferença ser explicada? Sobretudo pelo facto de os jovens, os mais afetados, não terem o período de descontos mínimos para aceder às prestações. “Portugal continua a ser o país da Europa onde o acesso ao subsídio de desemprego é mais difícil e as condições em termos do número de dias de descontos são mais rígidas”, afirma João Cerejeira.
Para dar resposta a alguns destes casos, o Governo alargou, no início de maio, os critérios para aceder ao subsídio social de desemprego: o prazo de garantia (o período de descontos mínimo) passa de 180 dias para 90 dias no regime geral e de 120 dias para 60 dias no caso de trabalhadores que fiquem desempregados devido à caducidade de contrato a termo ou denúncia do contrato de trabalho durante o período experimental.
O subsídio de desemprego abrangeu 169 016 pessoas (+16,3% face a março) e a receber o subsídio social de desemprego inicial estiveram 8.381 pessoas (+7,4%). Também aqui se vê o maior impacto do desemprego nos jovens: das novas prestações atribuídas, sobressaem “os grupos com idades mais baixas”, segundo dados do Ministério do Trabalho: no grupo de 24 ou menos anos houve um aumento de 52,1%, entre os 25 e os 34 anos a subida foi de 32,7%, entre os 35 e os 44 anos de 20,4%, e entre os 45 e os 55 foi 17,1%.
“O confinamento social foi uma dura prova para os portugueses. Mas teve uma peculiaridade: revelou sinais de fragilidade daquela que parece ser a estratégia produtiva nacional – os serviços e o turismo”, resume João Ramos de Almeida.