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Dom Juan Carlos no dia em que assinou a sua abdicação, a 18 de junho de 2014. Felipe VI seria proclamado Rei no dia seguinte
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Dom Juan Carlos no dia em que assinou a sua abdicação, a 18 de junho de 2014. Felipe VI seria proclamado Rei no dia seguinte

JUAN CARLOS HIDALGO / POOL/EPA

Dom Juan Carlos no dia em que assinou a sua abdicação, a 18 de junho de 2014. Felipe VI seria proclamado Rei no dia seguinte

JUAN CARLOS HIDALGO / POOL/EPA

Juan Carlos é "o Rei sem abrigo" numa nova biografia: “Aquela infância, com a dureza que foi, justifica muitas coisas de hoje em dia”

O diplomata José de Bouza Serrano reuniu memórias, fotos e muita História numa biografia de Juan Carlos I a que deu o nome "O Rei sem abrigo". "Tive algum convívio com ele e é interessantíssimo."

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Quando José de Bouza Serrano começou a sua carreira diplomática, em 1978, Juan Carlos I era Rei de Espanha há três anos. É bem conhecida a história que conta que Francisco Franco o escolheu para seu sucessor e quando o ditador morreu o país vizinho tornou-se a única monarquia reposta na Europa durante o século XX. Juan Carlos nasceu em Roma, quando a família estava no exílio, atualmente, quase 10 anos depois de abdicar, vive em Abu Dhabi e as visitas a Espanha são escassas. É por isso que o diplomata português deu à biografia que escreveu o título O Rei sem abrigo. “Claro que é um bocadinho provocatório, tem de ser”, disse em conversa com o Observador. O livro chegou às livrarias no passado dia 23 de janeiro.

Bouza Serrano é neto de avô espanhol, uma das paragens da sua longa carreira diplomática foi na embaixada em Madrid, cruzou-se com o agora Rei emérito inúmeras vezes de ambos os lados da fronteira e assume uma forte ligação a Espanha. Depois de ter escrito uma biografia de Isabel II, A viúva de Windsor, decidiu responder a um desafio antigo e contar a história de Juan Carlos I. O livro arranca com uma descrição de uma questão que pode passar despercebida, mas que faz toda o sentido sob o título da obra. O local onde estão sepultador os reis de Espanha, El Escorial, está cheio e não há lugar para os próximos membros da realeza que morram e tenham direito a ter lá a sua última morada. Os corpos vão inicialmente para uma sala se chama “pudridero” onde tem lugar a decomposição ao longo de um intervalo de tempo entre os 20 e os 40 anos, até irem para o túmulo eterno.

Grande parte do livro é dedicada à infância e à juventude do príncipe de Espanha, depois aos quase 40 anos de reinado que “terminaram daquela maneira abrupta ‘sex, drugs e rock & roll’”, dedica um capítulo ao que chama de “grave doença do Corinnavírus” e ainda há espaço para os anos que sucederam a abdicação, em 2014, rico em contextualização histórica, política e memórias pessoais. Em julho de 2023 vendeu a sua coleção de loiça da China em miniatura ao Museu do Oriente, fez um livro sobre o tema, e quando abriu a exposição a infanta Margarida, irmã de Dom Juan Carlos, não faltou à inauguração.

O diplomata assumiu postos em vários países da Europa e foi embaixador na Dinamarca e nos Países Baixos. É um admirador convicto da monarquia, confessa que viu com surpresa a abdicação de Margarida II e que suspeita que o próximo a deixar o trono seja o Gran-duque do Luxemburgo. Para já não tem mais livros no horizonte e conta voltar aos planos iniciais que tinha para a reforma: aprender alemão e a jogar bridge.

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José de Bouza Serrano fotografado na sua casa, em Lisboa

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Juan Carlos “era o joguete nas mãos do Franco e do Dom Juan, o pai”

Quando foi a primeira vez que se encontrou com Juan Carlos?
Era miúdo, um adolescente, foi no golf do Estoril. Estava num grupo de pessoas e às tantas o Rei, que na altura era príncipe, veio e falou a uma série de pessoas e apresentaram-me. Era uma personagem que eu já conhecia e também tinha ideia da família real espanhola, que cá vivia, por causa daquela frase do meu avô: “E o nosso Rei que vive no Estoril”. O meu avô Salvador, a quem eu dedico este livro, era galego, espanhol. A minha mãe casou com um português, mas era filha de espanhóis, o meu avô Salvador e a minha avó Rosa. Tivemos sempre uma ligação a Espanha e ainda temos hoje em dia.

Herdou o Rei Juan Carlos como seu também?
Não, mudei logo a agulha e percebi que o meu Rei não era aquele. O meu pai não achava graça nenhuma a reis e vinha de uma família republicana. E percebi que havia a casa de Bragança e eu era português. Ainda hoje os sirvo e ainda agora tive esta coisa muito simpática de poder ajudar no casamento da infanta Dona Maria Francisca, que foi muito interessante. Há 28 anos, eu e a minha mulher viemos de Bruxelas de propósito para o casamento do sr. Dom Duarte e da sra. Dona Isabel. E poder ajudar 28 anos depois no casamento da filha é uma coisa gira, para mim que gosto de tradição, de convicções e de causas.

Como é que viveu esse dia?
Eu estava extenuado e aconteceu uma coisa muito desagradável no meio daquilo tudo. Quando me sentei à noite, no jantar em Sintra, estava o antigo embaixador dos Estados Unidos da América com a mulher a dizer: “Vamos ter agora um grande problema com esta questão de Israel”. E eu disse: “Mas o quê?”, não sabia de nada. Eu estava num outro mundo, estava concentrado na cerimónia e nas pessoas. [O ataque do Hamas em Israel que fez dezenas de reféns aconteceu no dia do casamento.] Quando fiz o meu concurso para conselheiro de embaixada foi exatamente [com um trabalho] sobre o Médio Oriente e a questão da Palestina. Tínhamos de estudar uma série de pontos e [este] nunca saiu da agenda nestes 40 anos que eu fui funcionário diplomático.

Já vamos no Médio Oriente, regressemos ao que nos pôs à conversa: o seu livro. Como surgiu a ideia de o fazer e o que procurava com ele?
O meu editor, o Francisco Camacho, da Leya, sabia que eu tinha um arquivo. [Espanha] foi a minha primeira embaixada. Eu, a Maria e os três miúdos fomos para Madrid, portanto tenho imensas recordações. O Francisco Camacho disse: “Você devia fazer uma biografia do Rei Dom Juan Carlos. E eu pensei, mas torci-me imenso e disse: “Gostava muito, é um personagem de quem gosto muito, tive algum convívio com ele e é interessantíssimo, mas como é que eu o salvo? Não tenho maneira de o salvar. Os quase 40 anos de reinado terminaram daquela maneira abrupta ‘sex, drugs e rock & roll’, era só malas de dinheiro, e esta namorada alemã e estas coisas todas”. Por isso disse não. E o Francisco disse: “E então se for a Isabelinha?” A Rainha Isabel II. Eu disse: “Não sei, nunca fiz uma biografia.” A “Isabelinha” correu bem [o livro chama-se A viúva de Windsor, 2022]. Ainda ficou um livro com 600 páginas e fiquei satisfeito.

Mas acabou por voltar a Juan Carlos.
Pois é, porque os amores da vida vão sempre contra. Voltei, tinha tanta coisa, propus e ele [o editor] aceitou logo.

"O Franco disse ao Dom Juan: 'Veja vossa alteza, dois irmãos hemofílicos, uma filha cega, um filho morto. O povo não gosta disso, gosta de príncipes felizes.' É verdade, mas o Franco tudo o que fosse para achincalhar o Dom Juan, ia buscar."

A primeira metade do livro é só sobre a infância e a juventude do Rei. Porquê tanto espaço para estas fases da sua vida?
Porque é a parte desconhecida dele em Portugal. Tem uma grande parte em Portugal e tem, talvez, a chave justificativa de um príncipe, uma criança, que era utilizada pelos adultos a seu belo prazer nas maiores lutas. Ele era o joguete nas mãos do Franco e do Dom Juan, o pai. As pessoas nunca levaram em conta a ideia dele. Há uma coisa tremenda, quando ele vai para Espanha pela primeira vez, que era o sonho do pai, vai no Lusitânia Expresso à noite, cheio de frio, e tem todos os fidalgos e grandes de Espanha à espera e nem lhe deram um copo de água ou uma refeição quente.

Ele nessa altura era um menino com 10 anos.
Mesmo com as responsabilidades de ser um herdeiro da coroa e de ser o príncipe das Astúrias para quem acreditava nisso. Nunca para o Franco, porque nunca instaurou a monarquia, instaurou uma monarquia nova na pessoa dele. É triste. Há uma coisa que é dramática e que creio que em português nunca se tinha escrito, é que foi ele que matou o irmão. Ele tinha a arma e foi um acidente. Também me custou escrever. Lembro-me, era miúdo, lá em casa lia-se O Século, e apareceu naqueles dias, que eram feriados, uma fotografia a preto e branco, os príncipes no Estoril e a família real e tudo muito discreto, [com a informação de que era] um disparo acidental quando estavam a limpar uma arma. Essa parte desenvolvi bastante, mas não de uma maneira mórbida. As pessoas também me perguntaram: “Porquê o Escorial?” [que é o início do livro]. Porque ele [Juan Carlos] hoje em dia não tem para onde ir. Se ele morre fora, têm que o trazer para o Escorial, onde não tem túmulo. Portanto, toda a família real, não tem sítio. Pergunto-me, será que quando sopram ventos de mudança e de República o património nacional pode arranjar dinheiro para fazer uma nova cripta de reis no Escorial? Se [Juan Carlos] morrer vai para o “pudridero” 20 anos até que o corpo fique consumido para entrar nos maravilhosos sarcófagos de bronze, mas nem esses tem porque eram só 26.

Então essa decisão teria de ser tomada em breve porque já não há espaço para ninguém a partir de agora?
Não há. [Juan Carlos] fez muito bem e teve a cumplicidade de Felipe González que, como presidente do governo socialista, decretou o Dom Juan III [o pai], que nunca reinou e a condessa de Barcelona também têm lugar no Escorial e não poderia, porque era mãe de Rei, mas não poderia ter lugar ali porque eles não reinaram. Pode ser uma falsa psicologia minha, mas eu acho que aquela infância, com a dureza que foi, justifica e explica muitas coisas de hoje em dia. A falta dos afetos. Ele era muito namoradeiro. Vinham os grandes de Espanha, estavam ao serviço, rodavam, depois voltavam para Madrid, pagavam uma série de coisas e eles viviam um bocado desse dinheiro.

A família real no Estoril. Dom Juan e Dona Maria com os quatro filhos, Alfonsito, Juan Carlos, Pilar e Margarita

DR

Quem espera abrir o seu livro e ler uma história de príncipes e princesas, na verdade vai encontrar um xadrez político muito complexo.
E também uma infância muito dramática e triste. Reproduzo uma fotografia, porque fui ao cemitério de Cascais prestar homenagem aos pais de um amigo meu e numa das tumbas estava lá a pedra do Dom Alfonsito, donde o pai, antes de morrer, quis que ele fosse incorporado no panteão dos infantes no Escorial. As pessoas acham que é muito pesado, mas é a vida. O Franco disse ao Dom Juan: “Veja vossa alteza, dois  irmãos hemofílicos, uma filha cega, um filho morto. O povo não gosta disso, gosta de príncipes felizes.” É verdade, mas o Franco tudo o que fosse para achincalhar o Dom Juan, ia buscar.

Juan Carlos teve a vida dominada por este xadrez político, mas toda a realeza europeia durante o século XX passou por ele por causa da agitação política na Europa. Tem essa ideia?
Tenho, claro. O problema é que esse xadrez político foi ao contrário, foi para aniquilar impérios e destruir tronos. No fundo, no século XX não há outra reabilitação monárquica de um trono. Foram destruídos pela onda da Primeira Guerra Mundial e da Segunda. A Roménia não voltou, a Bulgária [também não]. A Grécia muito mais recente e próxima de nós e muito mais a ver com o tema do livro. A Itália também. Aliás, há pouco tempo estive com a grande namorada do Juan Carlos. A princesa Maria Gabriela de Sabóia veio cá a um grande jantar de um amigo meu. Ele trouxe uma série de pessoas reais aqui e fez um grande jantar presidido pelos duques de Bragança no Grémio Literário. Adorei, tenho uma fotografia a mostrar-lhe os botões de punho que o pai dela me deu. Tenho tanta idade, conheci muito bem o Rei Umberto também. Demos um passeio, ela quis passar por Cascais e almoçar em Carcavelos. Estavam uns dias lindos. O livro já estava acabado. Falámos de tanta gente. Eu tenho intimidade para lhe perguntar sobre o Dom Juanito, mas não era namorada oficial. Ele [Juan Carlos] quando estava na academia militar, tinha uma fotografia [dela] e o diretor disse-lhe: “Tire isto daqui, Alteza, pode vir cá o generalíssimo e não gostaria de ver uma fotografia destas ao lado da sua cama”.

O golpe de Estado foi a grande consagração dele, o 23F. Foi uma noite. Ele [Juan Carlos] acordou o filho e trouxe-o. Ele vestiu-se com o uniforme de capitão geral das Forças Armadas, com condecorações e tudo, mandou vir câmaras de televisão e falou ao país. Ele fez o que a neta está a fazer, esteve no exército, na marinha e na força aérea e conheceu sempre muitos militares e isso facilitou. Os espanhóis não eram monárquicos. O Franco apoiou-se no exército, mas era poder pessoal.

E foi muito tempo de ditadura.
Foram 40 anos e depois [os membros da família real] estavam proibidos. Ele [Juan Carlos] jurou bandeira e os pais não foram. Quando andava no colégio era o único que os pais não iam visitar, porque não podiam entrar em Espanha. A condessa de Barcelona ficou sempre a odiar o Franco por não se ter podido despedir do pai. Não lhe davam o passaporte e quando ela chegou o pai já tinha morrido.

Foi em Sevilha que ele morreu.
Pois, eles vieram para Portugal por ser perto e por ser parecido. Saíram da Suíça, estiveram em França antes, mas também não podia ser. A infanta Pilar nasceu em Cannes. Toda a Europa estava assim, nós é que estávamos aqui nesta ponta, era uma ponta privilegiada. Ser periférico também tem vantagens. Conto isso, porque acho que interessa enquadrar política e geoestrategicamente. Houve sempre tentativas de anexar Portugal, também. Quando veio o Sánchez Albornoz para cá como embaixador o Salazar disse-lhe: “Sim, sim, mas não olhem para nós como futuros associados territorialmente”, deixou tudo bem claro. Não há memória, porque as pessoas não têm memória, mas há registos. Os diplomatas escrevem telegramas, informações de serviço, os militares escrevem coisas. Tudo isso, anos mais tarde, se não foram destruídas, mas há sempre alguém que guarda, tudo se vem a saber.

Ventos de mudança, em Espanha e na Europa: As mulheres “na realeza esperaram, mas aglomeraram”

Fazendo a ponte entre a história do livro e a atualidade, diz-se que em Espanha, por estes dias, a monarquia também está fragilizada, mas a última vez que se tentou implantar uma república acabou por se tornar uma ditadura, como escreve no início do livro. Acha que sopram realmente ventos de mudança em Espanha? O reinado de Leonor poderá estar em perigo?
Está, está em perigo. Acho que sim. Porque o Sánchez quer ser Presidente da República, é o sonho dele. Mas todas as experiências republicanas foram completamente subvertidas. A guerra civil foi brutal porque as pessoas não podem pensar que estavam de um lado os bons e de um lado os maus, aquilo foi sem justificação nenhuma, mataram-se, imensa gente. Quando eu estava no Vaticano havia em todas as missas de beatificação, freiras e padres, que foram mortos e assassinados durante a guerra e já estávamos a muitos anos de distância. O interesse do Estaline na Europa do sul era enorme. Interessava-lhes uma coisa, e nós ainda sofremos isso depois do 25 de Abril, que era as colónias. Nós éramos pequenos peões num esquema maior. Foi brutal a guerra civil em Espanha. Mas o Adolfo Suárez conseguiu legalizar o Partido Comunista. Em Portugal também. Toda a gente achava que era a grande esquerda que lutava pela liberdade e quando fomos a votos, vimos que só 14% é que se interessavam pelo Partido Comunista. E esses passaram a sete. Era o que dizia o embaixador de França em Espanha: “Se vocês não legalizam o Partido Comunista ficará sempre a ideia que não é uma democracia plena, porque há um partido que não consegue ser legalizado”.

Escreve no seu livro que os norte-americanos não apoiaram a passagem de Franco para a monarquia com medo que Dom Juan fosse um Rei frágil e acabasse por ser o comunismo a tomar conta de Espanha.
Exatamente. Eles tinham medo de apoiar o Dom Juan pai e que depois os russos conseguissem fazer umas eleições em que a Frente Popular ganhasse e, pelas urnas, chegavam à esquerda.

Então deixaram estar Franco para não correr o risco?
Pois. O Franco era mau, mas era um mal menor.

Juan Carlos e Sofia quando se tornaram reis (1975), com Fidel Castro e Collor de Melo na Feira de Sevilha (1992), a ler uma mensagem em resposta ao golpe 23F, no dia do juramento de Felipe VI

STRINGER/AFP/Getty Images

Em outubro vimos o Juramento da Constituição da princesa Leonor e foi um momento memorável. Logo de seguida começaram a surgir as acusações de adultério da rainha Letizia. 
Isto está tudo montado.

Tem-se escrito muito sobre a rainha, nomeadamente o jornalista Jaime Peñafiel.
Que está “gaga” e quer protagonismo. E teve um momento em que por ter uma filha toxicodependente, pediu ajuda à rainha Sofia, mas não podia fazer nada e ele ficou sempre com uma pedra no sapato. Ele tem defendido sempre o Rei [Juan Carlos], mas não pode com a Letizia.

Há teorias que defendem que tudo isto foi orquestrado pelo Rei Juan Carlos. O que pensa deste momento tão tumultuoso?
Penso que não. O Rei Dom Juan Carlos nunca gostou daquele casamento, sempre achou Letizia uma convencida. Eles eram republicanos e laicos. A Letizia hoje em dia, dentro da estrutura monárquica europeia e mundial, é uma majestade fidelíssima, uma majestade católica. Ela não se benze. Ele sim e as miúdas também. Foram à Rainha Isabel, ele baixou a cabeça e benzeu-se, porque era uma morta cristã que estava ali, e ela nada. Ela disse ao cardeal que quando conheceu o príncipe viu a luz e esteve a preparar-se para casar pela Igreja. Ela era divorciada, mas como era um casamento civil era um vínculo que não conta para a Igreja católica. Foi a sorte deles. E havia a história do aborto, que ele terá dito: “Se a minha mãe sabe disto então é que não nos deixa casar”. Isso passou e depois apareceu aquele primo dela que tinha as instruções para ir à clínica onde foi feito o tal aborto. Tudo isto está publicado e escrito, mas não sei se é verdade ou não. Agora, todas estas coisas são um pasto extraordinário para a imprensa de esquerda que quer devorá-los. Não vejo que o Rei… tudo o que ele sacrificou desde miúdo pela instituição. Ele abandonou o país, que é uma coisa tristíssima para alguém que nasceu no exílio, depois de 40 anos de reinado ter de sair. Ter de abdicar já foi violentíssimo e ter de sair do país foi horrível. Não acredito que fosse pôr mais achas na fogueira. É um golpe direto ao coração da instituição.

"Ele [Juan Carlos] está num sítio que em termos de imagem não é fantástico, não está numa democracia, está numa monarquia absoluta e dura. Também o puxaram para lá e isto é que eu acho que é uma vingança dele. 'Não me querem, então vou para onde me querem', e então foi para ali e agora até lá tem o neto."

Escreve a dada altura que o Rei Juan Carlos fez mote de vida o juramento de “nunca mais passar fome”. Serão as más escolhas que fez em adulto uma tentativa de compensar as privações da infância? O que é que correu mal na queda dos últimos anos?
Sim. Quando ele tratou das duas crises energéticas, na Guerra do Golfo e na outra anterior a isto tudo, a Espanha ficou sempre preservada porque forneceram sempre petróleo a Espanha, porque o Franco mandou o Dom Juan Carlos falar com os “queridos irmãos” e ele tinha muito boa relação, mesmo com os regimes totalitários, que sempre gostaram muito dele como interlocutor. Era respeitado e estava-lhes muito próximo.

Quando diz “queridos irmãos” refere-se às pessoas do Médio Oriente?
Sim e da Arábia. Não vejo hoje em dia, de maneira nenhuma, uma intimidade do Rei Felipe VI com esses regimes. Nem a Letizia deixava. Ele [Juan Carlos] está num sítio que em termos de imagem não é fantástico, não está numa democracia, está numa monarquia absoluta e dura. Também o puxaram para lá e isto é que eu acho que é uma vingança dele. “Não me querem, então vou para onde me querem”, e então foi para ali e agora até lá tem o neto. Acho que sim, esta compensação foi do que correu mal na infância. E mesmo afetivamente, estas mulheres todas, é um bocadinho essa necessidade.

O que é que ainda pode salvar a imagem do Rei emérito a esta altura?
Uma mudança de regime, no arco da governação. Era o que lhe tinha dito o Feijóo. Esta saída foi uma imposição do Sánchez, do Podemos e daquela gente toda.

Pensava que o Rei tinha saído para proteger o filho.
E foi, mas obrigado. Ele foi aos 60 anos da infanta Elena [no passado mês de dezembro] e acho que até correu bastante bem. Só não foram as infantas, foram os primos e deram um ar de família real coesa, que sabemos que não é. Ele [Juan Carlos] teve de voltar de avião para Londres, onde dormiu num hotel, porque está proibido pelo governo de dormir na Zarzuela, que foi a casa que a madame Franco decorou quando ele era príncipe de Espanha e casou com a princesa Sofia da Grécia. E foi onde ele viveu toda a vida e onde se aborrecia muitíssimo agora durante a pandemia e onde ele instalou, a poucos metros, a própria Corinna. É notável como isto se passa no século XXI. Mas se as pessoas reais fossem como os outros não tinham graça nenhuma.

Sofia e Juan Carlos. 60 anos depois da grande boda grega em que disseram “o sim” três vezes

Acha que a família real tem capacidade para ultrapassar as acusações que fazem à rainha e ao Rei? Em 2024 estas questões já não são um problema?
Vamos ver quem está no governo. Acho que em Espanha não é tanto problema dos súbditos ou dos cidadãos, é mais quem os controla e governa. Há uma clivagem tremenda entre a esquerda e a direita, brutal. Entretanto nasceu muita gente, nasceram imensos miúdos que não sabem o que era o franquismo. Nós que temos 70 anos é que sabemos tudo o que era isto e podemos ter uma visão de como era a Espanha antigamente.

Disse que ficou surpreendido com a abdicação da Rainha Margarida. Porquê?
Fiquei. E temo, mas isto é pessoal, que ela esteja mais doente do que quer dizer. Ela sempre teve problemas de joelhos, costas. Mas achei-a tão comovida, ao mesmo tempo, porque no fundo, vai contra o que ela pensava. Ela também era, dentro daquela tradição, do próprio do Juan Carlos: “Me voy a la cama con la corona puesta”. Era a ideia deles, que morriam na cama com a coroa posta. E a própria rainha Sofia, nas entrevistas que deu, dizia: “Os reis não abdicam”. Não era a tradição, era até à vida. Mas na Holanda sempre houve a tradição da abdicação, é uma maneira de fazerem economias, sempre foram muito forretas. A Rainha Beatriz não é rainha emérita, é princesa, só volta a ser Rainha quando morrer.

A Rainha Margarida era a última Rainha do mundo. No entanto a próxima geração é quase toda composta por mulheres.
Tirando a Dinamarca…

O Reino Unido, o Luxemburgo…
Acho que o Luxemburgo vai ser para o ano. Ele [Grand-duque Henri] está cansado.

O que podemos esperar de uma geração quase toda de rainhas no futuro? Isto é uma novidade, é um sinal do século XXI.
É muito bem. As mulheres também têm o seu protagonismo. Na realeza esperaram, mas aglomeraram. Agora o que lhes vão fazer a eles não sei. Vão ficar consortes? Em muitos países não passam de príncipes consortes. Antigamente só havia três: o Henrique da Dinamarca, que sofria muito como estatuto, o Filipe da Grã-Bretanha e o Klaus dos Países Baixos. Havia três rainhas. Aliás, o quadro mais caro que tenho cá em casa é a Rainha da Dinamarca pelo Andy Warhol, uma serigrafia assinada, numerada e verdadeira. Depois quis comprar o da Rainha Beatriz, mas eram 27 mil euros e não tinha, porque gostava de ter das duas rainhas a quem apresentei credenciais.

Bouza Serrano com Dom Juan Carlos no Porto em 2010 e também com a rainha Sofia no Funchal no mesmo ano

DR

Um título provocador ou uma verdade incómoda?

Uma das coisas que torna este livro especial é o facto de estar recheado de memórias suas, como cartões, fotografias. Sempre guardou estas lembranças todas?
Sim, sempre. E, no princípio da carreira, ia no ministério porque estava no protocolo e ia a jantares com os meus colegas, mas tomava notas nas costas dos menus se havia por exemplo um discurso que me podia ser útil. Vamos aprendendo a pouco e pouco. Há pessoas que falam lindamente. “Olha que ideia gira, se tiver de fazer um discurso daqui a uns anos isto é uma coisa boa.” Ou então se havia uma gafe e eu tomava nota nos menus. Como dedico o livro ao meu avô Salvador tenho uma série de coisas pessoais e de família [no livro] e tenho uma ligação a Espanha e fui incluindo as memórias no livro também. O meu editor deixou e eu fiquei grato, não vou fazer memórias.

Tem esses menus todos consigo?
Tenho, tenho. Mas depois deixei de fazer. Tenho uma fotografia do Alfonso XIII [que está no livro] com os netos e eu conheci-os a todos. A bebé que está ao colo é a infanta Margarida e o miúdo louro que está a olhar é o Rei de Espanha, Juanito. Pedi à minha amiga Sandra Torlonia, que é mãe do conde de Lecquio, que me escrevesse os nomes todos e ela escreveu e eu achei que era giro publicar essa carta porque era inédito. O meu filho Francisco odeia. “O pai não devia pôr uma única fotografia”, mas qual era a graça?

Vamos ver este seu livro em Espanha?
Eu adorava, mas isso é uma questão editorial. Não sei qual é o interesse que eles têm sobre um estrangeiro que fale sobre o Rei deles. Para mim era a consagração da minha vida. O meu avô Salvador gostaria. Quando recebi a fotografia autografada dos condes de Barcelona, para a Maria e a para mim, depois de ter organizado a condecoração quando o [Presidente] Mário Soares foi condecorar o conde de Barcelona com a Grande Cruz de Cristo. Foi lá e foi a primeira vez que o Rei foi à nossa embaixada. O meu embaixador deu-me carta branca, mas controlava tudo. Tratei de várias coisas com o coronel secretário do conde de Barcelona e, no fim, muito simpaticamente o conde de Barcelona e a condessa mandaram-me uma fotografia autografada dedicada e assinada por eles e com uma carta do coronel secretário. O meu avô teria ficado muito contente ao saber que o neto mais novo recebeu uma fotografia autografada de “nuestros reyes que viven en Estoril”, que era uma coisa impensável.

Na capa tem uma fotografia imponente do Rei, e depois chama-lhe com o título “o Rei sem abrigo”. Porquê este título?
Claro. Um homem que está proibido de dormir no palácio onde viveu quase 60 anos? Claro que é um bocadinho provocatório, tem de ser. A ideia era exatamente essa, dar o tom chocante do homem que mudou radicalmente o país em pleno século XX, e também XXI. Foi ele que pôs a Espanha no grupo dos mais importantes, fez aquelas coisas todas, como os Jogos Olímpicos, as grandes realizações e agora não pode nem dormir em casa. Deus queira que não lhe aconteça nada e longa vida ao Rei, mas se ele morresse, hoje em dia, ia para o “pudridero”, nem sequer túmulo tem.

"O Rei sem abrigo. Don Juan Carlos I de Espanha", de José de Bouza Serrano (Oficina do Livro)

O que é que o seu editor disse deste título?
O Francisco achou horrível. E quem também achou horrível foi a Rita Ferro que disse: “Sem ler o interior, é o pior título da década”. Mas não é. Sou cavaleiro de Malta, preocupo-me com as pessoas em necessidade e em pobreza e já há muitos anos. Mas um Rei que está proibido de dormir no seu próprio país, numa casa onde viveu sempre, é um sem abrigo. Eu sei que é um bocadinho duro, mas é para fazer o contraste entre, realmente, ter um estatuto de realeza e não poder ficar no seu país, o que é anti-constitucional. Ele, hoje em dia, não tem uma única ação contra ele em sítio nenhum.

Então porque é que não o deixam ficar no Palácio da Zarzuela?
Porque o Sanchéz não quer. É péssimo. O Podemos, antigamente, eu soube isso e acredito… Lembra-se da história do “por qué non te callas?”. Adorei que ele o dissesse. Ele deu voz ao que toda a gente queria dizer. Mas a partir daí, como Chávez financiava o Podemos, financiou também para denegrir a família real espanhola, por mais que, aparentemente, tenha feito as pazes com o Dom Juan Carlos. Mas o Podemos durante muito tempo, sempre que podia, mordia na família real.

E o filho, Felipe VI, não poder fazer nada pelo pai.
Pois não pode, está atado de pés e mãos porque o pai entregou o poder absoluto que recebeu do Franco ao sistema parlamentar que implementou. Ele abriu mão de tudo, só ficou como capitão geral das Forças Armadas, mas mais nada. E o Dom Juan Carlos é honorário. O Rei não pode dizer “eu não assino este decreto da amnistia”.

40 anos ao serviço da diplomacia: “Para mim a Espanha era uma coisa natural”

Quando começou o seu percurso na vida diplomática?
Eu tinha 28 anos quando entrei para a carreira diplomática, já era casado e tinha um filho. Estava no Estado, tinha o meu curso de direito e concorri. Entrei para adido de embaixada e nessa altura estava no Palácio Foz numa coisa que se chamava secretaria de estado da comunicação social. Depois fui tratar das relações públicas no ministro António Barreto, que era ministro do Comércio e Turismo e depois foi ministro da Agricultura. Nessa altura entrei no concurso ao ministério dos Negócios Estrangeiros e sou admitido. Entrei como adido de embaixada, que era muito menos do que eu ganhava na altura, quando se está a começar a vida com filho e tudo é sempre difícil fazer as contas, mas era uma vontade que eu tinha e entrei para o ministério dos Negócios Estrangeiros. Entramos como adidos de embaixada, depois somos confirmados como terceiros secretários, depois como segundos, primeiros e depois conselheiros, mas para conselheiro foi introduzido entretanto um concurso e o tema que escolhi foi o Médio Oriente e a questão da Palestina. É um trabalho com júri que apresentamos e defendemos.

José de Bouza Serrano na primeira e na última vez que apresentou credenciais ao Rei Juan Carlos I, em 1984 e em

DR

Depois da Dinamarca voltei para cá. Convidaram-me para chefe de protocolo de Estado onde estive três anos e meio. Foi muito cansativo, mas correu bem. Estive sempre com o mesmo chefe de estado, que foi o professor Cavaco Silva. Depois fui para a Holanda, o meu último posto no estrangeiro. Quando estava a acabar o meu posto na Holanda telefonou-me o meu ministro, que era o professor Santos Silva, a dizer: “Sabemos que vai sair e queremos convidá-lo, aproveitar a sua experiência…” e era para inspetor diplomático e consular. É a terceira figura do ministério. Há o secretário geral, diretor político e o inspetor diplomático e consular.

O que faz o inspetor diplomático e consular?
Inspeciona as missões todas, as embaixadas, os funcionários, os orçamentos, outra coisa muito importante que são os inventários, os bens das embaixadas e todas as questões disciplinares. Às vezes há embaixadores que berram com as secretárias, às vezes há pessoas que recebem dinheiro indevidamente, há pessoas que fazem obras sem ter autorização para isso, há pessoas que criam “sacos azuis” para terem mais facilidade no dia a dia na gestão. É complicado, mas é muito interessante. Também se criam inimizades. Eu tentei fazer uma inspeção preventiva. Foi o meu último cargo, reformei-me com 70 anos no dia 20 de julho de 2020.

De todos os sítios por onde passou, qual o país que lhe deixa mais e melhores memórias?
Claro que eu sou mais do sul, entre Lisboa, Madrid e Roma não preciso de mais nada. Tive também muito boas recordações da Dinamarca, também do meu último posto na Holanda. Quando estive em Itália, Roma, estive numa situação muito especial que era o Vaticano, que é um posto único. É a cabeça do mundo. Foi sempre com o Papa João Paulo II, depois quando estava como chefe de protocolo organizei a vinda cá do Papa Bento XVI. Gostei muito e compensou as agruras e maçadas de outras coisas. Para mim a Espanha era uma coisa natural e Itália também era uma coisa extraordinária. Quando eu chumbei no quarto ano de liceu, que ninguém chumba, mas eu chumbei. O meu disse-me: “E agora vais repetir tudo, porque é que não aprendes uma língua?” E eu fui para o instituto italiano e foi ótimo. Fiz o primeiro ano e um bocadinho do segundo e mais não, e o meu pai depois pagou-me uma viagem a Itália e fiquei sempre apanhado. Também gostei da Bélgica, estava convalescente, tinha tido um cancro do cólon, e fui para Bruxelas onde fui muitíssimo bem tratado. Tinha imenso trabalho era antici na REPER [Representação Permanente de Portugal Junto da União Europeia], mas como não havia lugar na REPER fui para a embaixada unilateral junto do Rei. Foram três anos e meio muito interessantes.

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