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O secretário de Estado norte-americano foi a Kiev há menos de duas semanas e deu nas vistas. Antony Blinken, que tem reconhecida experiência como guitarrista, subiu ao palco de um bar na capital ucraniana para dar um espetáculo: “Keep on Rockin’ in the Free World”, de Neil Young, foi o tema que escolheu para interpretar e passar assim a mensagem de que “o mundo livre” está com a Ucrânia.
Outra ação de Blinken nessa visita passou mais despercebida — embora seja muito mais importante. Há meses que o governo ucraniano apela a que os Estados Unidos alterem a sua “linha vermelha”: a Casa Branca proíbe que o armamento norte-americano fornecido a Kiev seja utilizado para atingir território russo, como a cidade de Belgorod, frequentemente atacada com drones ucranianos. E, quando o secretário de Estado da administração Biden foi questionado uma vez mais sobre essa matéria durante a visita a Kiev, Blinken foi menos contundente do que tem sido habitual: “Não temos encorajado nem auxiliado ataques fora da Ucrânia. Mas, no final do dia, a Ucrânia é que tem de decidir por si própria como vai conduzir esta guerra”.
Estaria Blinken a sugerir uma autorização velada de Washington a que os ucranianos usem o armamento dos Estados Unidos da forma que bem entenderem? A dúvida ficou a pairar no ar. E, no entretanto, Kiev foi exercendo a sua pressão. Uma delegação de deputados ucranianos foram aos EUA reunir-se com congressistas para apelar a uma mudança desta política. E o próprio Presidente Volodymyr Zelensky deixou claro o pedido em entrevista ao The New York Times para retaliar em território russo: “[Os russos] atuam calmamente, porque compreendem que os nossos parceiros não nos dão autorização”, lamentou.
E eis que, esta quarta-feira, a notícia surgiu. O mesmo jornal avançou que, depois de regressar de Kiev, Antony Blinken mobilizou o seu Departamento de Estado para iniciar “um debate vigoroso” dentro do governo norte-americano sobre se esta proibição deve ser levantada. A proposta, dizem as fontes do Times, “ainda não foi apresentada formalmente ao Presidente, que até agora tem sido a pessoa mais cautelosa” nesta área.
Informalmente, porém, não há dúvidas de que Joe Biden está a par do debate — seria altamente improvável que viesse a saber pelos jornais que está em curso uma discussão sobre a alteração de fundo de uma política norte-americana. Mas porquê agora esta possível mudança? E, se avançar, que consequências pode trazer para a Ucrânia e para o mundo?
Kharkiv tornou o “tempo maduro” para discutir uma mudança de política
Um nome explica tudo: Kharkiv. Ao longo das últimas semanas, a segunda maior cidade da Ucrânia voltou a estar debaixo de ataque cerrado da Rússia, que diz ter em vista a criação de uma “zona-tampão” para proteger a cidade fronteiriça de Belgorod — alvo frequente dos ataques de drones ucranianos.
E se esta nova ofensiva parece ter surgido de surpresa para quem acompanha as notícias, no terreno todos estavam a par de que era uma forte possibilidade. Nos últimos dois meses, a Rússia reforçou os seus contingentes militares em Belgorod, com as equipas de reconhecimento ucraniano conscientes do aumento dessa pressão militar, mas sem puderem reagir. “Podíamos ter interrompido os planos russos antes de a ofensiva começar, mas não pudemos, porque não temos autorização do governo americano”, desabafava um soldado no terreno ao The Telegraph.
Dentro dos círculos militares norte-americanos, começaram a soar os alarmes. “A política norte-americana criou um grande santuário onde a Rússia conseguiu acumular a sua força de invasão terrestre e a partir de onde dispara bombas planadoras e outro tipo de sistemas de longo-alcance”, escreveu George Barros, analista principal da Rússia no Instituto para o Estudo da Guerra. E o especialista militar não se ficou pela constatação, instando mesmo o seu governo a repensar a política atualmente em vigor: “Os EUA deviam permitir à Ucrânia atacar alvos militares legítimos na retaguarda russa com armamento fornecido pelos EUA.”
Outras vozes de peso juntaram-se a esse eco. William Taylor, antigo embaixador norte-americano em Kiev, disse taxativamente que “os ucranianos devem ter direito a ripostar” e que isso é “auto-defesa básica”. Victoria Nuland, antiga vice-secretária de Estado de Blinken que deixou o cargo há dois meses, aproveitou uma entrevista à ABC para tornar pública a posição que vinha a defender internamente há muito, apesar de estar em minoria no Departamento de Estado: “Se os ataques vêm diretamente da Rússia, essas bases passam a ser alvos legítimos. Acho que é altura de dar mais ajuda aos ucranianos para atacar essas bases dentro do território russo.”
Vários congressistas começaram a dizer o mesmo, escrevendo até uma carta a pedir uma mudança de política, que contou com o apoio do presidente da Câmara dos Representantes, o republicano Mike Johnson.
E a pressão já vinha de há algumas semanas, vinda até de outros países, que se juntaram ao pedido ucraniano, com particular destaque para o Reino Unido. “Tal como a Rússia ataca o território da Ucrânia, é compreensível que a Ucrânia sinta a necessidade de se defender”, disse publicamente o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, em Kiev, uma semana antes da visita de Blinken. David Cameron deixou claro que os ucranianos são livres de usar os mísseis de cruzeiro Storm Shadow, fornecidos por Londres, da forma que bem entenderem: “A Ucrânia tem completamente o direito de ripostar contra a Rússia.”
Posição reforçada pela Lituânia, com o responsável da diplomacia de Vilnius a acrescentar numa entrevista que os ucranianos “devem poder atingir território russo, as suas linhas de abastecimento e as suas unidades militares que se preparam para atacar a Ucrânia”. “Só um lado é que é obrigado a respeitar regras”, lamentou Gabrielius Landsbergis. “Temos de largar estas regras que criámos.” Até em França o tema começa a ser debatido: “O tempo está maduro” para uma alteração desta política, decretou o deputado francês Jean-Louis Bourlanges, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros da Assembleia Nacional e membro do partido Modem, aliado do Presidente Emmanuel Macron.
Ao Times, responsáveis do Departamento de Estado norte-americano reconhecem que foi a situação em Kharkiv que lançou a discussão interna: “As forças de Moscovo colocaram armamento mesmo do outro lado da fronteira no nordeste da Ucrânia com Kharkiv como alvo. Sabendo que os ucranianos só poderiam usar os drones e armamento não-americanos para retaliar.”
As “linhas vermelhas” de Washington que foram mudando ao longo do tempo
As consequências de uma alteração da “linha vermelha” de Washington, contudo, são imprevisíveis. E se algum setor militar e político norte-americano acha que este deve ser um imperativo para ajudar à defesa da Ucrânia, há quem alerte para os riscos.
É o caso de Emma Ashford, investigadora do Stimson Center especializada em Estratégia, que numa entrevista à PBS explicou que esta pode ser uma porta que, depois de aberta, já não volta a ser fechada. A situação em Kharkiv “é uma coisa”, diz a analista, admitindo que “os EUA podem querer levantar algumas das restrições que impuseram”. “O que me levanta mais preocupações é o facto de isto aumentar a capacidade de ataques de longo-alcance. A Ucrânia já usa armamento não-americano para atacar refinarias e fábricas russas. Preocupo-me — e penso que a Casa Branca também — com a possibilidade de permitir à Ucrânia usar armamento norte-americano para isso. Seria uma escalada.”
Uma escalada para lá do apoio que pode já estar em curso de forma menos declarada. Os ataques ucranianos a Belgorod começaram inicialmente por ser reivindicados por grupos paramilitares russos pró-Ucrânia, mas, com o avançar do tempo, começaram a ser assumidos por Kiev — sempre com recurso a armamento não-americano, garantiam.
Mas um incidente em maio do ano passado criou a dúvida sobre se não haveria outro tipo de envolvimento de Washington quando veículos de combate norte-americanos foram detetados em vídeos filmados em Belgorod. Inicialmente, Washington distanciou-se do assunto e questionou até a veracidade das imagens — mas esta acabou por ser confirmada tanto pelo Washington Post como pelo New York Times.
Perante isso, o Pentágono prometeu uma investigação. Em causa poderá estar o desvio de material norte-americano por parte das forças ucranianas, sem conhecimento dos Estados Unidos, como notava à ABC à altura Mark Cancian, coronel norte-americano reformado que trabalha agora no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais. Mas John Hardie, especialista norte-americano em política russa, levantou ao canal outra possibilidade: “Talvez os responsáveis norte-americanos tenham assobiado para o ar.”
Certo é que à altura o porta-voz da Casa Branca John Kirby reafirmou a “linha vermelha” norte-americana: “Não queremos ataques dentro da Rússia com recurso a armamento fornecido pelos Estados Unidos”, reforçou. O aviso que havia sido feito pelo próprio Presidente Joe Biden em 2022 mantinha-se de pé: “Estamos a tentar evitar a III Guerra Mundial”, disse frequentemente o chefe de Estado dentro da Casa Branca, que reforçou publicamente essa política num artigo de opinião publicado em maio de 2022.
Desde então, contudo, a “linha vermelha” norte-americana foi avançando. Em 2022, a administração Biden era contra o envio de armamento de longo-alcance para a Ucrânia, precisamente por temer que fosse usada para atacar território russo. Entretanto, os EUA passaram a autorizar o envio de mísseis ATACMS. Em 2022, os EUA eram contra ataques ucranianos ao território da Crimeia, anexado pela Rússia em 2014, por temer retaliação de Moscovo. Um ano depois, Washington passava a permitir a Kiev que o fizesse, por considerar que a Crimeia é território na verdade ucraniano, embora ocupado pela Rússia.
Agora, para além dos pedidos públicos para usar armamento norte-americano em território russo, os responsáveis ucranianos têm também pedido aos Estados Unidos que aumentem a sua colaboração nos ataques a Belgorod ao nível dos serviços secretos, pedindo mais informações sobre os alvos a atacar, garante o New York Times. Oficialmente, Washington nega estar a fazê-lo. Mas, há menos de um ano, um responsável do Pentágono admitia ao mesmo jornal que os ataques a Belgorod não são assim tão mal vistos internamente: “Oiça, é uma guerra. Isto é o que acontece numa guerra.”
O risco da retaliação russa. Ocidente “a brincar com o fogo”?
Mas qual o problema em concreto de a Ucrânia usar armamento e informações norte-americanas para atingir Belgorod ou outro território russo? O problema é o risco de uma escalada, já que a Rússia pode considerar que passa a ter direito a retaliar não apenas sobre os ucranianos, mas também sobre os Estados Unidos (e, possivelmente, outros países-membros da NATO).
E Moscovo tem repetido várias vezes que essa retaliação pode assumir a forma mais perigosa de todas, através de armamento nuclear. No discurso que fez ao Parlamento russo em fevereiro deste ano, por exemplo, Vladimir Putin voltou a levantar essa possibilidade perante o cenário de envio de militares de países da NATO à Ucrânia sugerido por Macron.
Em relação às notícias mais recentes, o Kremlin reagiu no mesmo tom, acusando o Ocidente de estar a “brincar com o fogo” e a colocar no mesmo plano Kiev, Washington, Londres, Bruxelas “e outras capitais ocidentais”. A perspetiva de armamento fornecido pelo Ocidente ser usado para atacar território russo fez o porta-voz Dmitry Peskov reagir enfaticamente: “Esta posição é completamente irresponsável, completamente perigosa e tem consequências.”
Muitos desvalorizam, contudo, as ameaças russas. “A dissuasão funciona. O senhor Putin não é suicida, ele sabe que se atacar a NATO, perde”, afirmou o ex-embaixador norte-americano William Taylor. O Presidente ucraniano concorda: “Ele pode ser irracional, mas ama a própria vida”, afirmou Zelensky sobre a possibilidade de escalada nuclear.
Os serviços secretos norte-americanos consideram que o recurso do Kremlin a armamento nuclear não está excluído, mas coloca-o como mais provável em apenas três cenários: “Se o poder pessoal de Putin estiver ameaçado, se o Exército começar a colapsar totalmente na Ucrânia ou se estiver em risco de perder a Crimeia.”
A isso soma-se o facto de o Kremlin ser useiro em declarações apocalípticas sobre o recurso a armamento nuclear, nunca tendo, porém, avançado para tal — nem sequer quando os ucranianos começaram a bombardear a Crimeia com armamento americano, algo que a Rússia tinha definido como “linha vermelha”.
Mas isso não significa que o risco é nulo e que uma decisão como esta não venha a ter consequências imprevisíveis e graves. “Não podemos ignorar o potencial para erros de cálculo”, alertou o académico Christopher Morris. “Sobretudo se [os russos] entenderem ataques diretos no seu território como uma ameaça existencial.”
E qualquer escalada pode levar a uma reação, mesmo que não seja a mais grave de todas. “Falamos muito da questão nuclear, mas essa não é a que me preocupa”, nota a académica Emma Ashford, que diz ver muito espaço para a Rússia retaliar de outras formas, sobretudo através de ações de “sabotagem” em países europeus. “Ainda esta semana houve um incêndio na Polónia que pode ter sido provocado por agentes russos. Estamos a falar de uma potencial escalada para uma guerra mais lata entre Rússia e NATO. Estamos a contar a nós mesmos inverdades muito convenientes quando dizemos que os russos não têm meios para escalar mais.”