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Trabalhadora numa fábrica de têxteis em Pyongyang, fotografada a 6 de fevereiro de 2020
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Trabalhadora numa fábrica de têxteis em Pyongyang, fotografada a 6 de fevereiro de 2020

AFP via Getty Images

Trabalhadora numa fábrica de têxteis em Pyongyang, fotografada a 6 de fevereiro de 2020

AFP via Getty Images

Kim Jong-un diz que "melhor povo do mundo" está a salvo da pandemia. Especialistas admitem que surto possa já estar descontrolado

Coreia do Norte diz ter 0 casos, mas especialistas acham improvável. Sistema de saúde é frágil e fronteiras fechadas afetarão a economia. Pelo meio, Kim Jong-un — sem máscara — faz testes de mísseis.

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O líder aparece de gabardine preta. À sua frente estão dezenas de militares e de homens que trabalham na construção civil, identificados pelos capacetes laranja e cor-de-rosa, em vez do amarelo habitual. “No momento em que o Líder Supremo Kim Jong-un chegou ao local da cerimónia inovadora, todos os construtores largaram ruidosas ovações em sua honra, ele que tem feito esforços incansáveis, com um amor ardente pelo povo, para abrir uma larga avenida por onde siga um avanço novo do socialismo coreano”, descreve a agência de notícias estatal norte-coreana, a KCNA.

Perante a pequena multidão, Kim Jong-un anuncia que irá ali começar a construção do novo Hospital Geral de Pyongyang, com abertura prevista para outubro de 2020, para servir a saúde e o bem-estar do “melhor povo do mundo”, como é habitual os líderes da Coreia do Norte referirem-se à população do país. De seguida, com uma pá, faz o primeiro buraco e atira a areia para uma cova escavada para o efeito.

Em tempos dito normais, seria apenas mais uma cerimónia ao estilo da do regime de Pyongyang, com vivas ao Grande Líder e entusiasmo em torno de uma obra pública. Mas, a 17 de março de 2020, o anúncio da construção de um hospital não acontece por acaso. O mundo está paralisado devido à pandemia de Covid-19, que já matou milhares. Na Coreia do Norte, oficialmente, não há qualquer caso registado — mas esse é um dado do qual duvidam todos os especialistas ouvidos pelo Observador.

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Kim Jong-un, o “deus” que não precisa de usar máscara

Mais do que isso, uma cerimónia como esta, anunciando a construção-relâmpago de um hospital, é um sinal claro de que o regime de Kim Jong-un está preocupado com a pandemia e quer tranquilizar a população. “Ele ordenou que fosse feita esta obra para gerir a atmosfera de irritação das pessoas, caso se venha a registar propagação de casos e mortes contínuas”, diz ao Observador Nam Sung-wook, diretor do Centro da Coreia do Norte na Universidade da Coreia (Coreia do Sul) e ex-membro dos serviços de informação sul-coreanos.

Jean Lee, ex-correspondente da Associated Press em Pyongyang e agora investigadora no Wilson Center, concorda: “A Coreia do Norte diz não ter um único caso de Covid-19. Acho difícil de acreditar nisso, tendo em conta a longa fronteira que partilha com a China [1.450 quilómetros de comprimento] e os voos regulares que ocorriam entre Pyongyang e cidades chinesas, antes de serem cancelados”, aponta. A Coreia do Norte bem pode ser apelidada de “Reino Eremita”, mas a verdade é que, em relação à China, está longe de ser hermeticamente selada. O que não faltam são traficantes que passam de um lado para o outro e trazem consigo bens, mercadorias e até telemóveis, roupas ou filmes. Perante o cenário destes, e tendo em conta que a China foi o primeiro país onde se registaram casos do novo coronavírus, a probabilidade de que algum caso se tenha registado na Coreia do Norte parece, por isso, elevada.

“A Coreia do Norte diz não ter um único caso de Covid-19. Acho difícil de acreditar nisso, tendo em conta a longa fronteira que partilha com a China [1.450 quilómetros de comprimento] e os voos regulares que ocorriam entre Pyongyang e cidades chinesas, antes de serem cancelados.”
Jean Lee, ex-correspondente da Associated Press em Pyongyang

Não acredito na Coreia do Norte quando diz que não tem casos, porque o regime nunca confirmou nenhum surto de nenhuma doença contagiosa desde que foi criado, em 1948”, aponta Sung-wook. “É uma característica de um país socialista que não consegue lidar abertamente com tragédias como desastres naturais, acidentes ou doenças contagiosas. A verdade tem, inevitavelmente, um impacto negativo na liderança de Kim Jong-un.

O acesso à informação na “caixa negra” que é a Coreia do Norte

Precisamente por isso, na Coreia do Norte vai-se afinando a propaganda. Ao longo do mês de fevereiro, foram-se multiplicando as fotografias oficiais do líder norte-coreano a assistir a exercícios militares. À sua volta, vários soldados tinham máscaras negras a taparem-lhes as bocas, sinal de que as preocupações em evitar a propagação do novo coronavírus se mantinham. Mas Kim, ora sorridente, ora atento, não trazia nenhuma. A lógica por trás disso? “O Grande Líder” não é um homem comum, portanto nunca será sequer afetado pelo vírus.

Uma das várias imagens de Kim Jong-un fotogrado sem máscara, ao contrário dos militares

D.R.

Só que a manobra de propaganda também dá pistas aos observadores da Coreia do Norte de que a situação pode não estar assim tão controlada no país. Ao acompanhar repetidamente exercícios militares, fica claro que o líder do país estava longe da capital, numa zona remota, sem cumprir a agenda diária. “Afinal, não está propriamente a agir como o ‘deus’ que ele diz que é”, afirma ao Observador Bruce Bennett, investigador especialista na Coreia do Norte do think tank militar RAND. “Mas, para um comum mortal, tomou a ação lógica de sair de Pyongyang, provavelmente porque haverá um surto na capital.” Para este investigador, a ideia de o país poder ser imune à pandemia que assola todo o mundo é também pouco realista: “Creio que a Covid-19 já está descontrolada na Coreia do Norte e já se espalhou, da mesma maneira a que assistimos noutros países, independentemente das medidas de distância social draconianas que estão a ser aplicadas no país.”

A guerra dos números: 0 casos ou 10 mil?

E que medidas foram essas, afinal? É que, independentemente de se gabarem de terem oficialmente zero casos, as autoridades norte-coreanas têm levado muito a sério a ameaça do vírus. Em janeiro, o país fechou de imediato as suas fronteiras com a China e com a Rússia — a separação da Coreia do Sul, outro dos países mais afetados na Ásia, já é feita por uma zona militarizada. Colocou todos os estrangeiros no país de quarentena e, depois, enviou-os num voo para Vladivostok, na Rússia. A medida abrangeu diplomatas estrangeiros, sem contemplações.

Ao nível interno, foram aplicadas outras medidas, como resumiu o site North Korea News:

  • uso obrigatório de máscara (4 de fevereiro);
  • proibição de ajuntamentos em locais públicos, como restaurantes (24 de fevereiro);
  • encerramento de locais como termas públicas e a estância de ski de Masikyrong;
  • escolas encerradas e matrículas para o próximo ano adiadas;
  • obrigação de que crianças e idosos fiquem em casa;
  • e há relatos não confirmados oficialmente de que as viagens dentro do país foram limitadas.

A mensagem transmitida pelos órgãos de informação oficiais é de que é necessário higienizar os espaços, lavar as mãos, medir a temperatura regularmente. Deve ser assim em todos os locais de trabalho, com a maioria dos funcionários a usarem máscaras e a esterilizar os espaços. Na fronteira, o controlo aperta, inclusivamente com os contrabandistas. A ordem é a de “tornar a fronteira o mais selada possível”.

As escolas na Coreia do Norte foram encerradas e a abertura do próximo ano letivo adiada

AFP via Getty Images

Oficialmente, a 9 de março, o regime garantia ter colocado cerca de 10 mil pessoas em quarentena, por suspeitas de infeção pelo novo coronavírus. Desses, 40% já tinham sido libertados por não terem sintomas. Oficialmente, o regime garante também que o número de casos confirmados continua a ser zero.

Mas, oficiosamente, surgem vários relatos que apontam em sentido contrário. Três sites que funcionam através de contacto com fontes norte-coreanas através de telefones vindos da China — o NK News, o Daily NK e o Rimjin-Gang —, já publicaram relatos não confirmados de alguns casos. Aquele que deu mais nas vistas foi o de uma fonte militar que garantiu ao Daily NK que 180 soldados morreram em janeiro e fevereiro, todos depois de terem demonstrado sintomas coincidentes com os da Covid-19. A mesma fonte explica que a grande maioria desses soldados estavam em postos perto da fronteira com a China, nas províncias de Pyongan Norte, Chagang, Ryanggang e Hambyong do Norte.

Bruce Bennett considera que esta é uma fonte credível e que estes dados podem ajudar-nos a ter uma dimensão mais real do impacto da pandemia na Coreia do Norte. “Não sabemos a idade dos soldados que morreram, mas sabemos que, geralmente, os soldados têm idades entre os 17 e os 30 anos. Esse é um grupo cuja taxa de mortalidade [da Covid-19] é cerca de 0,2%, em indivíduos saudáveis. Mas creio que devemos colocar a taxa de mortalidade nos 2%, porque os soldados norte-coreanos não são bem alimentados e têm geralmente condições de saúde más. Fazendo as contas, isto significa que poderia haver cerca de 10 mil casos” nesta faixa etária, estima o investigador.

Outras entidades oficiais já falaram sobre a probabilidade de existirem infetados no país. Foi o caso do primeiro-ministro sul-coreano, Chung Sye-kyun, que disse na última sexta-feira que a situação na Coreia do Norte “provavelmente não está boa”, mas que não tem outra hipótese senão “respeitar aquilo que a Coreia do Norte diz oficialmente”. Os Estados Unidos foram mais longe. O general Robert Abrams, comandante das forças norte-americanas estacionadas na Coreia do Sul, disse aos jornalistas estar quase certo de que existem casos, pelo menos no Exército, dada a pouca atividade que foi sendo registada no início do ano. “É uma nação fechada, por isso não podemos dizer enfaticamente que têm casos, mas temos quase a certeza que sim.”

Há relatos de que 180 soldados podem ter morrido infetados com Covid-19

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“Penso que aquilo que o general Abrams estava a citar são fontes dos serviços secretos militares, que obtêm a informação através de escutas feitas às comunicações militares da Coreia do Norte”, explica ao Observador o professor Nam Sung-wook. “Uma das minhas fontes diz-me que o exército da Coreia do Sul estima que haverá cerca de 700 mortes, uma informação obtida através de escutas.”

O impacto de uma pandemia num sistema de saúde decadente e numa economia frágil

A Organização Mundial da Saúde (OMS) confirma, neste momento, o número zero de casos na Coreia do Norte — mas limita-se a reproduzir os dados oficiais que lhe são dados por cada país. De acordo com a OMS, a Coreia do Norte tem “capacidade de levar a cabo testes [para a Covid-19] e tem técnicos de laboratório e especialistas que foram treinados pela OMS em testagem de gripe comum em Hong Kong, no ano passado”.

Investigadores analisam a composição de um desinfetante, num laboratório em Pyongyang

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Tal não significa, contudo, que os testes estejam a ser levados a cabo, como explicam os especialistas ouvidos pelo Observador — o que dificulta ainda mais qualquer contagem. “O regime não consegue confirmar se um caso é de infeção pelo novo coronavírus ou se é uma pneumonia comum devido à falta de equipamento”, explica Sung-wook. “A Coreia do Norte terá recebido cerca de 1.500 kits de testes vindos da Rússia, mas só no final de fevereiro. Isto significa que, até lá, não conseguia sequer verificar se um caso suspeito estava de facto infetado ou não”.

Jean Lee vai ainda mais longe: “Não podemos esperar que a Coreia do Norte seja transparente no que diz respeito ao resultado desses testes ou até sobre quem está a ser testado. Se a Rússia deu simplesmente os testes aos norte-coreanos, o mais provável é que eles tenham sido diretamente usados nos líderes e na elite política. E é improvável que venham a ser sinceros caso alguém teste positivo.”

Uma médica transmite informações sobre a Covid-19 a cidadãos, em Pyongyang

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Para lá da contagem dos casos, um elemento torna a situação ainda mais preocupante na Coreia do Norte: o estado do sistema de saúde do país, que ocupa o lugar 193 em 195 países no Índice Global de Segurança de Saúde. Segundo a investigadora Sue Mi Terry, que escreveu na Foreign Affairs sobre o tema, a Coreia do Norte é o país que gasta menos na saúde em todo o mundo, gastando menos de um dólar por pessoa, por ano. A falta de material nos hospitais é gritante. “Não é só a falta de kits de diagnóstico, material de proteção individual, ventiladores e medicação, mas também a falta de itens básicos como sabão, água corrente, desinfetantes e produtos de limpeza. Não só a doença se pode espalhar de forma rápida, como os hospitais não terão capacidade de tratar dos piores casos”, resume Lee.

Os relatos vindos de dentro sobre as condições nos hospitais do país vão surgindo ao longo dos tempos e dão conta de situações de arrepiar. Choi Jung-hun, um médico que fugiu do país, recordou como alguns dos pacientes fugiam por não haver inclusivamente comida suficiente no hospital. Outro dissidente, Ji Seong-ho, contou numa Ted Talk como lhe foi amputada uma perna, sem anestesia, quando tinha apenas 14 anos.

“Uma criança com fome não consegue pensar em política ou liberdade.” A realidade dura da infância na Coreia do Norte

“Fui 14 vezes a Pyongyang. Visitei o Hospital Kim Man-yu, considerado o melhor do país. Estive no centro de tratamento para cancro de Chosun. Estes hospitais foram construídos para a elite de Pyongyang. E, mesmo assim, os equipamentos são de fraca qualidade e datados”, revela o antigo agente dos serviços de informação sul-coreanos, Sung-wook. “É como se estivéssemos a ver o [filme] Dr. Jivago, que foi feito em 1965. Um médico ali não tem um bom salário, porque o país não paga por isso. A Coreia do Norte não investe no orçamento da Saúde, porque considera a medicina uma área secundária, quando comparado, por exemplo, com a Defesa.”

É impossível saber ao certo por que sofrimento podem estar a passar alguns norte-coreanos possivelmente infetados com o novo coronavírus, num sistema de saúde praticamente sem ventiladores ou sequer medicação suficiente. Também não é certo o grau de sofrimento porque pode estar a passar o resto da população, abalada pelos impactos económicos de um fecho de fronteira com a China, país de onde a Coreia do Norte importa 95,5% dos seus bens. Se tivermos em conta que a Coreia do Norte é neste momento alvo de sanções internacionais apertadas, devido ao seu programa nuclear, é possível traçar um cenário negro de asfixia económica.

“Fui 14 vezes a Pyongyang. Visitei o Hospital Kim Man-yu, considerado o melhor do país. Estive no centro de tratamento para cancro de Chosun. Estes hospitais foram construídos para a elite de Pyongyang. E, mesmo assim, os equipamentos são de fraca qualidade e datados.”
Nam Sung-wook, ex-agente dos serviços de informação sul-coreanos

Os relatos de dentro do país já indicam isso mesmo. O 38north, site especializado no país, afirma que, entre o final de dezembro e meados de fevereiro, os preços em médio tinham subido quase 37%. No Daily NK, uma fonte de dentro do país dá exemplos concretos: “Um Eskimo, um gelado de marca chinesa, custa agora 1.000 Wons do Partido Coreano (WPC), em vez dos habituais 700. Os sapatos de pano, cujas solas são produzidas na China, custam agora 13.000 WPC, mais 1.500 WPC do que o habitual”.

Os combustíveis também sobem, apesar da queda a nível mundial, devido à baixa do petróleo. De dezembro para fevereiro, terão sofrido um aumento de cerca de 30%, muito provavelmente devido ao facto de serem importados da China. O Daily NK dá outros exemplos do impacto na economia do país: a mina de Musan, a maior mina de ferro da Coreia do Norte, estará agora a funcionar a 50% da sua capacidade, devido à falta de recursos vindos da China. Também o The New York Times apontou esta quebra económica olhando para imagens de satélite que comprovam que os barcos comerciais que costumam trazer e levar material da China estão agora aportados.

O impacto económico da Covid-19 na Coreia do Norte pode ser devastador, devido ao fecho de fronteiras com a China

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Podemos apenas imaginar o impacto que este congelamento da economia terá numa população onde cerca de 40% têm falhas na alimentação, segundo dados das Nações Unidas — o equivalente a 10 milhões de pessoas.  “A economia da Coreia do Norte, que já estava em grande perigo devido às sanções desde 2017, está agora à beira do colapso, devido ao coronavírus”, alerta Nam Sung-wook. “Parece-me que, num futuro próximo, a China irá dar apoio económico à Coreia do Norte, de forma secreta. Sem o apoio da China, a economia de Pyongyang paralizará.”

A crise levou por isso à reabertura do debate sobre as sanções internacionais, com as Nações Unidas — quer pela voz do secretário-geral, António Guterres, quer da alta-comissária para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet — a pedirem o levantamento de sanções a países como a Coreia do Norte para fornecer comida e material médico.

A ONU tem inclusivamente tomado a decisão de alargar exceções nas sanções a várias organizações humanitárias: foi já o caso da Cruz Vermelha, dos Médicos Sem Fronteiras e da UNICEF, que puderam entrar no país com novas equipas de voluntários que levaram consigo ajuda humanitária.

Cerca de 40% dos habitantes da Coreia do Norte têm carências alimentares, de acordo com as Nações Unidas

AFP via Getty Images

Recentemente, o Financial Times noticiou que o próprio regime norte-coreano pediu ajuda internacionalmente, através de canais secretos, para reforçar a sua capacidade de testar a Covid-19. Mas isso não significa que a crise fica, assim, resolvida. “O isolamento auto-imposto pela Coreia do Norte torna difícil os que estão de fora ajudarem”, vaticina Jean Lee. “Mesmo quando se doa kits de teste, medicamentos ou material de proteção, é difícil levá-lo, porque os norte-coreanos recusam que a entrega desse material seja monitorizada por organizações internacionais, como é habitual.”

Contra o vírus, o poderio militar

Todo o cenário internacional se complica ainda mais quando a Coreia do Norte continua a violar as regras relativamente ao armamento nuclear, que levaram à aplicação das sanções em primeiro lugar. “Tenho receio que o isolamento dê ao regime o tempo e o espaço de que precisa para continuar a testar elementos do seu programa nuclear. Eles irão utilizar este tempo para continuar a fazer ajustes, de forma a melhorar a sua posição quando chegar a altura de negociar. Não irão ficar simplesmente sentados”, prevê Lee.

Prova disso são os vários testes de mísseis balísticos que o país tem feito nas últimas semanas, com uma regularidade impressionante. Com as conversações com os Estados Unidos suspensas desde a última cimeira entre Donald Trump e Kim Jong-un no Vietname, Pyongyang parece decidida em continuar a apostar no seu poderio nuclear e militar. “É uma jogada bizarra. Com o mundo inteiro em pânico, a Coreia do Norte decide lançar um projétil na manhã do último domingo. Só em março houve quatro testes”, resume o professor Nam.

Bruce Bennett arrisca uma possível explicação para esta atitude, que engloba o cenário internacional: “A Coreia do Norte quer usar estes testes para coagir os Estados Unidos a oferecerem concessões na negociação sobre o seu programa nuclear. E também gosta do facto de Trump estar a ignorar a ameaça destes testes, porque sabe que assim consegue ameaçar e preocupar os sul-coreanos.”

“A Coreia do Norte quer usar estes testes para coagir os Estados Unidos a oferecerem concessões na negociação sobre o seu programa nuclear. E também gosta do facto de Trump estar a ignorar a ameaça destes testes, porque sabe que assim consegue ameaçar e preocupar os sul-coreanos.”
Bruce Bennett, investigador militar especialista na Coreia do Norte

Uma estratégia negocial para assustar a Coreia do Sul, e esperar que esta pressione os Estados Unidos para que Trump volte à mesa das negociações, é, por isso, uma das hipóteses. O regime de Kim Jong-un tem-se desdobrado em comentários sobre os norte-americanos nas últimas semanas, com a irmã do líder, Kim Yo-jong, a revelar que o Presidente norte-americano escreveu uma carta pessoal para Kim Jong-un a oferecer ajuda à Coreia do Norte relativamente à pandemia de Covid-19.

A irmã classificou a carta como “um bom exemplo da relação pessoal firme e especial” entre os dois líderes, mas reforçou que o seu país não pode “perder tempo” e tem de se “defender” para lutar contra “o ambiente cruel que os EUA têm proporcionado”, numa referência às sanções internacionais. Com carta ou sem carta, certo é que na recente reunião do G7, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, incitou os restantes membros a manterem-se firmes na aplicação de sanções à Coreia do Norte, o que irritou Pyongyang. “Ao ouvir os comentários descuidados de Pompeo, perdemos o interesse num diálogo sério”, disse o governo norte-coreano num comunicado divulgado esta segunda-feira.

No meio deste cenário a nível internacional, a Coreia do Norte tenta enviar uma mensagem: a de que não irá desistir de se “defender”, com ou sem coronavírus. Mas há outras mensagens a serem passadas, tão ou mais importantes. É o caso dos recados para consumo interno, apontam os especialistas. “Os testes de mísseis fazem o regime parecer forte quando está fraco noutras áreas”, relembra Bruce Bennett.

O sul-coreano Nam Sung-wook vai ainda mais longe nessa análise: “É uma estratégia para motivar o ânimo da população”, resume. “Pyongyang suprime os sentimentos desagradáveis dos norte-coreanos ao criar um inimigo fictício, neste caso os Estados Unidos”, diz, dando o exemplo da reação forte às declarações de Pompeo.

Com o lançamento de testes de mísseis balísticos, Kim Jong-un tenta projetar uma imagem de força a nível internacional e unir os norte-coreanos contra o exterior

AFP via Getty Images

“As pessoas estão preocupadas sobre como vão sobreviver quando a maioria está confinada por causa do coronavírus”, relembra o especialista. Para impedir o descontentamento dentro de fronteiras, nada como o direcionar para inimigos que estão fora delas. Mas nunca conseguiremos medir ao certo o nível desse descontentamento, nem qual o impacto que esta pandemia pode ter na população — seja em termos de saúde, bem-estar económico ou ideias políticas. “Preocupa-me bastante o impacto que este novo coronavírus pode estar a ter na população”, confessa Jean Lee. E há uma inquietação constante, que está sempre presente quando se fala sobre a Coreia do Norte: “Podemos nunca vir a saber a verdade.”

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