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Kori Schake. "Trump é um perigo para a democracia. É por isso que não vou votar nele, não vou trabalhar para ele"

Kori Schake é republicana e trabalhou com Bush, mas não poupa nas críticas a Trump. Em entrevista a Bruno Cardoso Reis, alerta para o risco de a China invadir Taiwan e defende o apoio total à Ucrânia.

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Kori Schake é uma orgulhosa nativa da cidade de Sonoma, na zona de vinhedos da Califórnia. É também uma republicana moderada e uma das mais importantes historiadoras da política externa e especialista em estratégia norte-americana. Tem dezenas de artigos e vários livros publicados. O seu texto mais recente na influente revista Foreign Affairs é um esforço para defender um internacionalismo conservador.

Como é típico dos EUA tem alternado entre o estudo académico e a ação política em diferentes cargos na Defesa, nos Negócios Estrangeiros e no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca. É atualmente diretora de estudos de segurança do American Enterprise Institute, o principal instituto de investigação em políticas públicas (ou think tank) alinhado ideologicamente com a direita norte-americana. Numa eventual administração republicana pós-Trump, teria provavelmente um cargo governativo muito relevante.

Kori Schake participou na conferência da FLAD

Inês Pinto Gonçalves/ Afterclick

O Observador teve uma longa conversa com Kori Schake sobre a política norte-americana e alguns dos principais desafios da geoestratégia global, quando esteve em Lisboa como oradora convidada de uma série de conferências promovidas pela Fundação Luso-Americana (FLAD) – Democracy: The Way Ahead. Tal como alguns outros colegas republicanos, Kori Schake teve a coragem de não aceitar qualquer função na administração Trump, apesar da sua proximidade por exemplo com o General Mattis, com quem escreveu uma obra sobre as Forças Armadas americanas, e que foi o responsável pela pasta da Defesa. Em 2020, não só declarou que não podia, em consciência, trabalhar com Trump — que considerava incapaz de desempenhar o cargo de Presidente — como via nele um perigo para a democracia. E anunciou mesmo publicamente que iria votar em Joe Biden.

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Mas Schake continua a ter esperança de que o Partido Republicano recupere deste culto da personalidade e rejeite Trump. É crítica de várias opções da administração de Biden, que considera demasiado hesitante, retraída, protecionista. Apesar disso, afirma que se Trump voltar a ser o candidato contra Biden em novembro de 2024 voltará a votar neste. A sua preferência iria, no entanto, para a antiga governadora da Carolina do Sul e antiga embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Nikki Haley, ou para algum candidato independente moderado. Defende também uma postura muito mais assertiva dos EUA relativamente ao fornecimento de armamento à Ucrânia e na resposta à ofensiva do Irão no Médio Oriente com recurso ao Hamas, aos Houthis e a outros grupos terroristas. Schake teme uma guerra em torno de Taiwan. E é uma grande defensora do Ocidente democrático num mundo mais perigoso, que a China e outras potências revisionistas querem tornar mais seguro para as autocracias.

Schake acredita que não é possível mobilizar os americanos para uma ação externa forte se não em torno dos valores da democracia. Não está tão preocupada como outros com a Inteligência Artificial, mas sobretudo com o seu abuso pelas autocracias digitais. Por fim, tem grande confiança no futuro da Aliança Atlântica, precisamente, devido à partilha de valores e interesses entre europeus e norte-americanos, especialmente se os europeus mostrarem maior empenho em financiar melhor a sua própria Defesa.

A esperança na alternativa republicana a Trump. “Uma terceira via tem possibilidades”

Comecemos por esta obsessão na Europa com a política norte-americana. Penso que continua a estar registada como republicana?
Sim, sou de facto republicana, devidamente registada como republicana.

No entanto, em 2020 apoiou publicamente Joe Biden e afirmou que Trump era manifestamente inapto para exercer a função de Presidente dos EUA. Ainda mantém essa opinião? Há até quem na Europa vá ao ponto de afirmar que Trump é um risco maior para o Ocidente do que Xi Jinping da China ou Vladimir Putin da Rússia… Concorda?
Estava consigo até à última parte, sobre a qual vou ter pensar. Mas gosto da forma como [a ex-congressista Republicana] Liz Cheney se refere ao atual momento político, ou seja, discordo de muitas das políticas de Joe Biden, mas ele não é um perigo para a democracia. Donald Trump é um perigo para a democracia na América. E é por isso que não vou votar nele, não vou trabalhar para ele. Foi assim em 2016, foi assim em 2020, e será assim em 2024.

E acha que há uma alternativa viável a Trump? Nikkei Haley tem hipóteses como uma candidata alternativa? 
Penso sempre que sou uma eleitora americana normal e sei que sou uma eleitora americana normal por estar extremamente insatisfeita com os dois candidatos presidenciais mais prováveis em [novembro de] 2024. Tenho esperança de que a governadora Haley possa conseguir a nomeação republicana e, se isso não acontecer, que o movimento “No Labels” apresente um terceiro candidato que possa quebrar o impasse entre Trump e Biden. Mas se for uma eleição Trump/Biden, vou inequivocamente votar para reeleger o presidente Biden.

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Donald Trump venceu a primeira ronda das primárias do Partido Republicano, no Iowa

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Mas o sistema político americano foi concebido para ser muito aberto. A nossa Constituição diz apenas que é preciso ter mais de 35 anos para ser presidente, e a 14ª emenda à Constituição diz que não se pode ser um insurreto e é bem possível que este ano tenhamos um julgamento no Supremo Tribunal sobre Donald Trump ser ou não um insurreto. Mas em 2016, em ambos os partidos, houve a possibilidade de surgirem candidatos que não eram membros do partido. Bernie Sanders no lado democrata [era formalmente um independente]. E Donald Trump, que começou por estar registado como democrata. Por isso, é possível entrar quase de pára-quedas no sistema político americano. E é por isso que não estou a lamentar-me mais. Porque considero que a governadora Haley tem uma hipótese. E considero que uma terceira via, com a governadora Haley ou com Joe Manchin, senador da Virgínia Ocidental, ou algumas outras pessoas de que se fala, têm algumas possibilidades.

Pensa que o Partido Republicano pode ser recuperado em termos das suas tradições de moderação na política externa? Porque é isso que mais nos preocupa na Europa. A grande mudança com Trump é que ele quebrou este tipo de consenso bipartidário sobre questões como a NATO ou a importância da relação transatlântica. Escreveu um artigo recente sobre este tema.
Penso que ainda é possível. Estou empenhada em defender a importância no sistema político americano de termos um conservadorismo com princípios no Partido Republicano para pessoas que acreditam na defesa da dignidade humana, na expansão das oportunidades económicas e num mundo mais livre e mais seguro.

E o que podemos fazer na Europa? Se é que podemos fazer alguma coisa. Sou sempre um pouco cético em relação a conselhos ou pressões estrangeiras em eleições de outro país.
Penso que os aliados dos Estados Unidos navegaram extraordinariamente bem a presidência de Trump. E ninguém o fez com mais habilidade do que o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg. Disseram-me que, quando se encontrou com o Presidente Trump pela primeira vez, levou apenas um pedaço de papel e era um gráfico que mostrava que as despesas com a Defesa estavam a aumentar na Europa desde o momento em que Trump tomou posse. Não mostrava que as despesas com a Defesa nos países da NATO estavam já a aumentar desde a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2014! Ainda no outro dia, alguém divulgou o que Trump tinha dito a Ursula von der Leyen [presidente da Comissão Europeia] sobre o futuro da NATO. O que me chamou a atenção não foi o inacreditável e imprudente niilismo do Presidente Trump, mas o facto de ninguém ter tornado isto público antes. O que significa que os amigos e aliados dos Estados Unidos estavam a tentar atenuar os danos causados pelo Presidente americano. Penso que esta é a forma correta de os nossos amigos nos ajudarem a lidar com estes tempos difíceis.

"Os americanos são incrivelmente criativos, encontrarão formas de impedir o Presidente Trump de sair da NATO, seja através dos tribunais, de legislação ou do ativismo cívico, em que somos muito bons."

Há um risco de Trump reeleito em 2024 colocar em risco a NATO? Talvez mais provável do que a saída formal da NATO seria o esvaziamento do compromisso e empenho americano.
Penso que sim, há esse risco. Mas, como sabe, o sistema político americano foi concebido para distribuir poder e limitar o que cada polo de poder pode fazer. Repare que, no primeiro mandato de Trump, o Congresso republicano aprovou legislação que impede o Presidente de retirar tropas da Europa, do Japão ou da Coreia do Sul. Recentemente, o Congresso aprovou legislação – que provavelmente até é inconstitucional – que impede o Presidente de se retirar de tratados que o Senado tenha ratificado sem o apoio do Congresso [como o Tratado que cria a NATO]. Se Trump tentasse fazê-lo, o caso iria certamente parar ao Supremo Tribunal. É importante que os amigos e os inimigos dos Estados Unidos percebam até que ponto existe um enorme consenso americano no apoio aos nossos aliados da NATO. As nossas alianças são a forma mais rentável e fiável de manter o nosso país seguro e próspero, penso que esta é a atitude dominante entre a opinião pública americana. E os americanos são incrivelmente criativos, encontrarão formas de impedir o Presidente Trump de sair da NATO, seja através dos tribunais, de legislação ou do ativismo cívico, em que somos muito bons.

Voltando ao que os europeus podem fazer, acha que é importante que mostrem que estão empenhados na sua própria Defesa, que estão a investir mais na sua Defesa? Essa foi uma das grande críticas de Trump, e nesse aspeto ele tinha razão.
Tem toda a razão, sim, é importante que os europeus façam mais a respeito do seu investimento em Defesa. Todos os secretários de defesa e presidentes americanos desde Harry Truman [1945-1953] têm defendido que os europeus devem fazer mais pela sua própria Defesa. Na altura, o General Eisenhower foi testemunhar perante o Congresso em apoio da presença das tropas americanas na Europa e à ratificação do tratado da NATO [de 1949], e defendeu que as tropas americanas deviam ficar na Europa até os europeus recuperarem a sua capacidade económica para se defenderem sozinhos. Ele ficaria chocado ao ver a força económica da Alemanha de hoje e as suas anémicas capacidades no campo da defesa. Mas penso que é importante, especialmente para os meus compatriotas americanos, compreender que nenhuma grande potência alguma vez teve tanta ajuda voluntária como a que os Estados Unidos recebem dos seus amigos e, em particular, das potências pequenas e médias, para quem a ordem internacional que todos nós criámos depois de 1945 é incrivelmente benéfica para os seus interesses.

A China e Taiwan. “Existe um risco real de guerra”

Temos de passar ao elefante na sala, a China. Considera que estamos a viver uma segunda Guerra Fria? O conceito é útil e podemos retirar algumas lições úteis da primeira Guerra Fria, em termos da fase atual das relações entre os EUA e a China?
É uma pergunta muito interessante. Os paralelos não são perfeitos, mas penso que é um quadro de referência útil por três razões. Primeiramente, porque o que a China está a tentar fazer é mudar as regras pelas quais os países se regem na política internacional. E mudar de um sistema em que as potências pequenas e médias têm a capacidade de influenciar a agenda, a par das grandes potências, para um sistema que é sobretudo benéfico para as grandes potências e, em particular, para a China. A segunda razão pela qual penso que uma analogia com a Guerra Fria é útil é o facto de se tratar de um conflito também ideológico. A China acredita que as sociedades livres são um perigo para a capacidade do Partido Comunista controlar a China. É uma bela homenagem que nos fazem. Nós podemos estar a perder a confiança em que os nossos valores são universais, mas Xi Jinping e Vladimir Putin pensam que os nossos valores são universais. Vêm a nossa liberdade como um risco para a capacidade deles reprimirem livremente as suas próprias sociedades. É evidente o paralelismo com a forma como os soviéticos pensavam durante a Guerra Fria. A terceira razão porque considero útil a referência à Guerra Fria é o facto de estas potências autoritárias estarem a tentar utilizar a força militar para criar esferas de influência onde os países vizinhos não têm plena soberania. E penso que Portugal e os EUA acreditam que isso é errado e estão dispostos a agir lado a lado para preservar a liberdade de países que partilham os nossos valores e com os quais estamos comprometidos. A Ucrânia é um ótimo exemplo disso.

Tem criticado nos seus escritos alguns aspetos da resposta da administração Biden ao desafio da China, nomeadamente a falta de uma forte dimensão económica. Será que os EUA podem dizer “recusem investimentos ou empréstimos chineses” sem oferecer uma alternativa?
Em primeiro lugar, estou absolutamente de acordo quando diz que não é suficiente os EUA dizerem “não aceitem o investimento chinês”. Trabalhei para Colin Powell e ele dizia sempre que não se pode derrotar uma má ideia sem termos uma ideia alternativa. Vimos isso com a Huawei e a falta de alternativas no 5G, precisamos de ter alternativas competitivas. E não há razão para não a desenvolvermos. O que eu vejo na política económica americana tem um aspeto negativo e um aspeto positivo. A dimensão prejudicial é exatamente como disse: deixamos de ter uma política comercial internacional nos EUA. E isto é estranho porque nunca foi tão popular a ideia de que o comércio internacional é bom para os interesses económicos do americano médio. Mas ambos os partidos políticos estão atrasados relativamente às atuais atitudes do público. Espero que os atores políticos comecem a perceber que os americanos preferem um comércio internacional inclusivo em que todos beneficiam do respeito por um mesmo conjunto de regras.

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O general Robert Lovell e Kori Schake testemunham no Congresso, como especialistas em Defesa

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A segunda dimensão vantajosa é que não só o governo americano, mas também as empresas americanas e o público americano se deram conta do comportamento chinês durante estes últimos anos e perceberam finalmente que Pequim utiliza a interdependência económica para obter vantagens geopolíticas. Não é uma situação de comércio justo. A Apple é um bom exemplo disso. Decidiu deslocar, no prazo de dois anos, 25% da sua produção para fora da China. Perderam a confiança no acesso justo ao mercado chinês. Compreenderam que a sua propriedade intelectual está em risco se operarem na China. Compreenderam que não podem proteger a privacidade dos seus clientes se operarem na China. Estão a investir e a formar pessoas, por exemplo, na Índia, para, pelo menos, terem alguma redundância nas cadeias de abastecimento. Já em 2010, num pequeno incidente de pesca com o Japão, a China mostrou que estava disposta a utilizar, por exemplo, minerais estratégicos, para fins de coerção económica. O que temos de fazer em economias de mercado livre como a vossa e a nossa é perceber onde é que a China é útil para nós e onde é que é um risco. Se calhar não importa o local onde são feitos os brinquedos dos nossos filhos. Mas talvez o controlo dos portos seja importante, ou talvez não. Todos temos de avaliar os benefícios e os riscos da relação com a China em diferentes setores.

Qual é o aspeto mais ameaçador do desafio chinês para os EUA? Tenho tendência para pensar que é o aspeto militar, por exemplo naval. Está de acordo? Ou olha mais para outras dimensões?
Penso que o principal risco é realmente o militar. Temos estado preocupados com o extraordinário sucesso económico chinês. Mas creio que já não será o caso nos próximos anos. A China parece presa na armadilha dos países de rendimento médio e não parece conseguir impulsionar a sua economia para ultrapassar claramente a economia americana. Mas estão a triplicar o seu arsenal nuclear. A China tem atualmente uma marinha de 370 navios, enquanto os EUA têm 291. Trata-se de um grande risco para os EUA, que têm de projetar o seu poder militar através do Oceano Pacífico. Precisamos de investir mais e melhor nas Forças Armadas americanas para termos uma ampla margem de confiança na vitória numa guerra contra a China. Isso seria crucial para dissuadir a China de sequer tentar uma via militar. Penso que o público americano está agora a aperceber-se disso e a pressionar o governo. O orçamento da defesa atualmente em apreciação no Congresso fixaria as despesas com a defesa em 880 mil milhões de dólares. É a primeira vez que esta Administração Biden gasta mais na Defesa do que no setor interno. É uma mudança importante que mostra que há uma perceção crescente de que o mundo está a ficar mais perigoso e que temos de estar mais bem preparados para isso.

Pensa que existe um risco real de guerra entre a China e os EUA por causa de Taiwan, com as eleições e tudo o resto?
Sim, penso que existe um risco real de guerra. Nomeadamente devido à forma como a China tem tentado ativamente afetar as eleições em Taiwan. Houve uma grande mudança na última década. Se em 2010 perguntássemos a Taiwan se seria a favor da reunificação com a China, a maioria responderia que sim, desde que a China fosse tão democrática como Taiwan. Se perguntarmos agora, Taiwan está muito preocupada com a forma como a China a está a tentar intimidar. E devemos levar a sério essa preocupação de Taiwan. A China está a instrumentalizar a diáspora chinesa em Taiwan e no Ocidente, a instrumentalizar a interdependência económica, a ameaçar vizinhos como as Filipinas. Precisamos de levar muito a sério estes factos.

Ucrânia deve ter autorização para atacar território russo: “O momento é agora”

Passando para a guerra russa contra a Ucrânia. Vê algum mérito na ideia, mesmo de alguns académicos americanos, de que o alargamento da NATO é a raiz do problema? Qual é, na sua opinião, a principal causa da guerra? E houve erros por parte dos Estados Unidos da América, talvez de apaziguamento excessivo ou o contrário?
Penso que a principal causa da guerra é a tentativa de Vladimir Putin de recriar a União Soviética. Deveríamos ter percebido isso logo após a invasão russa em 2014. Houve os Acordos de Minsk, que a Rússia nunca cumpriu. Negociar com os russos sobre questões relacionadas com a ex-União Soviética é uma inutilidade.

"O nosso maior erro tem sido dar armas suficientes à Ucrânia para que não perca a guerra, mas não para que a ganhe. E, pior, colocamos limitações à utilização dessas armas, o que permite que o território russo seja um santuário enquanto destroem a Ucrânia. Devemos alterar ambas as políticas."

Também penso sempre que há erros na política externa americana. E há mesmo! Até posso não ter razão sobre quais são esses erros, mas há erros, porque se trata de uma política intrinsecamente muito difícil. Neste caso da Ucrânia, a administração Biden tinha razão, no início, em preocupar-se com uma escalada por parte da Rússia, quer horizontalmente (atacando um país da NATO), quer verticalmente (utilizando armas nucleares.) Mas o que temos visto nos últimos dois anos é que nós controlamos a escalada da guerra. O nosso maior erro tem sido dar armas suficientes à Ucrânia para que não perca a guerra, mas não para que a ganhe. E, pior, colocamos limitações à utilização dessas armas, o que permite que o território russo seja um santuário enquanto destroem a Ucrânia. Devemos alterar ambas as políticas. Mas estou orgulhosa da forma como a administração Biden criou uma ampla coligação de mais de 50 países no apoio ativo à Ucrânia. Faz muito diferença que todos os meses o secretário da Defesa dos EUA apareça na Base Aérea de Ramstein para saber o que a Ucrânia precisa, e quem, de entre os Aliados, tem essas capacidades e está disposto a disponibilizá-las.

Também considero que essas linhas vermelhas são hoje artificiais e prejudiciais, mas acha que existe a possibilidade real de serem revistas a curto prazo? Este parece ser o momento crítico para o fazer.
Tem toda a razão, o momento é agora. É melhor analista de defesa do que Joe Biden.

Isso é excessivamente generoso, mas obrigado.
O momento é agora. A ofensiva ucraniana não produziu o resultado que se esperava. O público ocidental está a ficar inquieto. E um dos argumentos dos republicanos no Congresso é que a administração Biden não tem uma estratégia para ganhar a guerra. A estratégia de Biden parece ser apenas continuar a fazer o que estamos a fazer, sem fim à vista. Essa não é uma resposta suficientemente boa para a Ucrânia ou para nós. Precisamos de fazer mais. Temos de permitir que o território russo seja visado. E temos de aumentar o fornecimento de equipamento militar. A Ucrânia está agora a desempenhar o papel que a Grã-Bretanha desempenhou na Segunda Guerra Mundial, revelando aos Estados Unidos as deficiências da nossa própria preparação para as guerras que podemos vir a ter de travar.

E o mesmo se aplica à Europa.
Sim, o mesmo se aplica à Europa. Todos nós, se estivéssemos a lutar com o mesmo nível de intensidade da Ucrânia, ficaríamos sem armas muito rapidamente. Temos de resolver isso.

Pensa que os republicanos no Congresso vão permitir que esta ajuda militar à Ucrânia avance?
Sim, a grande maioria dos republicanos e democratas no Congresso é a favor da continuação e do aumento do apoio à Ucrânia. O que se está a ver nas negociações em curso neste momento é o resultado de os republicanos mal controlarem a Câmara dos Representantes e não controlarem o Senado, nem a Presidência. Estão a tentar tirar o máximo partido de uma posição fraca, utilizando a Ucrânia como a única forma que pensam ter de fazer pressão eficaz junto do Presidente Biden. Espero que até ao final de janeiro venhamos a assistir à aprovação do orçamento suplementar para ajudar a Ucrânia, Israel e Taiwan.

Creio de que os americanos têm a ideia de que, no caso da Ucrânia, os europeus não estão a fazer ou ajudar grande coisa. E neste caso isso até é factualmente injusto. Concorda?
É absolutamente injusto. Em primeiro lugar, os europeus acolheram milhões de refugiados ucranianos, permitindo-lhes trabalhar e ir à escola. Nós, nos EUA, não tivemos de fazer nada isso. Em segundo lugar, a União Europeia tem sido muito generosa na assistência económica, na assistência a longo prazo que os EUA não estão dispostos a prestar. É efetivamente verdade que no montante total de ajuda os europeus têm dado mais do que os americanos à Ucrânia. É verdade que os EUA estão a ser responsáveis por boa parte da assistência militar, como é nosso dever.

Estive a ver o Kiel Tracker da Ajuda à Ucrânia e, segundo eles, Portugal está a dar mais em termos relativos à Ucrânia, em termos de percentagem do PIB (0,5%), do que os EUA (em torno dos 0,3%).
Sim, e obrigado por isso.

Mas em termos militares é claro que é impossível para os países europeus, na verdade para qualquer outro país no mundo, substituírem os EUA.
Sim, e também é importante que os meus concidadãos americanos compreendam que quase todo o dinheiro que estamos a gastar para armar a Ucrânia está a voltar para a economia americana. A minha equipa no AEI fez um mapa de todos os distritos do Congresso que beneficiam da ajuda à Ucrânia. E Mark Thyssen publicou no Washington Post uma crítica aos congressistas americanos cujos distritos beneficiam da ajuda à Ucrânia e que se têm oposto a ela. Há muitos empregos bem pagos no sector da Defesa nos EUA!

Para terminar o tema da Ucrânia. Há quem afirme que não existe uma teoria viável de vitória militar na Ucrânia. Por outro lado, eu não vi até agora uma teoria credível de uma paz negociada com a Rússia. Qual é a sua opinião?
Existe uma teoria de vitória para a Ucrânia, combater com os meios adequados à recuperação de todo o território ocupado. A Ucrânia tem a vontade de o fazer. E ainda têm uma reserva estratégica de jovens. Nem estão a alistar jovens com menos de 27 anos. Sermos nós a dizer que estamos cansados da guerra? Isto quando nenhum dos nossos países sofre quaisquer baixas em combate, não faz nenhum sentido! A Ucrânia está a travar uma guerra que a NATO receava que tivéssemos de ser nós a travar, e está a fazê-lo com 5% do orçamento de defesa americano. Isto é um investimento fabuloso na nossa própria segurança!
Em segundo lugar, concordo consigo quando diz que não existe uma teoria credível de uma paz negociada. Nenhum governo ucraniano poderia manter-se no poder se consentisse na entrega formal de populações ucranianas à ocupação russa, depois dos crimes de guerra que a Rússia cometeu. E não vejo qualquer sinal credível de que a Rússia esteja disposta a aceitar qualquer limitação nos seus objetivos expansionistas de esmagar toda a Ucrânia. A única coisa que uma paz negociada faria seria dar à Rússia tempo para mobilizar, treinar e equipar a próxima invasão. Está na moda dizer que a força militar não pode resolver problemas. A força militar é a única coisa que vai resolver este problema.

Ataques do Hamas, guerra em Gaza e tensão no Mar Vermelho. “Aquilo a que estamos a assistir é um Médio Oriente sem envolvimento americano”

Passando ao Médio Oriente e à guerra de Israel contra o Hamas. Qual é a sua opinião sobre a política dos Estados Unidos da América nesse conflito?
A administração Biden tinha dois pressupostos errados na sua abordagem a este crise. Primeiro, acreditava que, apoiando totalmente o governo israelita, poderia afetar as opções israelitas sobre a forma de responder ao terrível ataque terrorista do 7 de outubro. Ficou claro que não é verdade. O segundo pressuposto falso era o de que, ao deslocar forças militares americanas para a região, poderia impedir um alargamento da guerra. E ficou claro que isso não substitui o seu empenhamento eficaz e efetivo. O que estamos a ver no Médio Oriente é o enorme sucesso da estratégia do Irão de atacar Israel, de equipar, financiar e de encorajar atividades terroristas do Hamas, do Hezbollah, dos houthis e de outros. Teerão também avaliou bem a intolerância ao risco da administração Biden. A administração Biden quer desesperadamente evitar voltar a envolver-se militarmente no Médio Oriente. Eles orgulham-se de terem retirado os EUA do Médio Oriente. Mas aquilo a que estamos a assistir é um Médio Oriente sem envolvimento americano. É este o resultado. Ataques a Israel e os israelitas a responderem de formas que são incrivelmente prejudiciais para os palestinianos. Instabilidade regional e o Irão em ascensão.

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Os ataques no Mar Vermelho são o evento mais recente da tensão no Médio Oriente

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E considera que os americanos estão a aperceber-se de que é isto que acontece quando os EUA deixam de estar envolvidos numa região, no resto do mundo? Um vazio estratégico perigoso que cria todo o tipo de perigos e ameaças, inclusive para os interesses dos EUA?
Penso que isso está a acontecer. Estive na minha encantadora cidade natal de Sonoma, na Califórnia, durante as férias. E as pessoas estavam a falar sobre isso. Normalmente, a política externa não afeta muito as eleições presidenciais americanas. Mas as pessoas sentem que o mundo está a ficar mais instável e mais perigoso e o argumento de que é muito mais fácil manter uma ordem internacional estável do que recriá-la está a ganhar força entre os americanos comuns que não passam muito tempo a pensar no resto do mundo.

Como vê a evolução da guerra entre Israel e o Hamas, também na sua dimensão regional? Penso que o Irão é um grande problema e os houthis são um grande problema no Mar Vermelho, concorda?
Não creio que seja suficiente ter uma força [de navios norte-americanos e aliados] sem uma missão clara no Mar Vermelho. Não creio que seja suficiente retaliar apenas com ataques de mísseis. Katherine Zimmerman e Kenneth Pollack, meus colegas da AEI, publicaram um artigo muito bom no Wall Street Journal, argumentando que, se queremos resolver o problema no Mar Vermelho e restabelecer a dissuasão contra o Irão, teremos de fazer duas coisas. Os houthis têm de ser expulsos do poder no Iémen. E o Irão tem de pagar um preço por encorajar operações terroristas na região. Existem opções táticas a fazer, mas estas são as opções estratégicas que temos de tomar. Na verdade, impedimos os sauditas de continuarem a atuar contra os houthis, pelo que temos alguma responsabilidade a esse respeito.

As limitações da diplomacia americana. “Os nossos interesses nem sempre estão de alinhados com os nossos valores”

Passando ao tema central desta série de conferências organizada pela FLAD, qual deveria ser, na sua opinião, o papel da democracia na Política Externa dos EUA? Deverá ser central? Ou concorda com a ideia defendida por alguns de que precisamos de um novo momento Kissinger de grande flexibilidade e pragmatismo?
Aprecio ter colocado a questão desta forma. Perguntaram a um famoso escritor satírico americano por que razão tinha deixado de publicar e a sua resposta foi que, depois de Kissinger ter ganho o Prémio Nobel da Paz, a sátira ficcional tinha deixado de fazer falta. Há uma razão pela qual a democracia surge sempre nas discussões sobre a política externa americana: os nossos interesses nem sempre estão de alinhados com os nossos valores, mas os nossos valores são essenciais para que os americanos se preocupem com o resto do mundo. Ganhámos a lotaria geopolítica, estamos rodeados por oceanos, pelo Canadá e pelo México. Podemos dar-nos ao luxo de ignorar muitas coisas enquanto elas se tornam um problema existencial para outros.

"Há países que partilham os nossos interesses e que não são democracias. E alguns até podem tornar-se democracias no futuro. O Vietname é um excelente exemplo. Quando é que um país está disposto a mudar numa direção democrática e quando é que ainda não está é a grande questão. A Arábia Saudita e a Turquia são bons exemplos disso." 

Mas os americanos preocupam-se com a defesa da dignidade humana, com a expansão das oportunidades económicas e com tornar o mundo mais livre e mais seguro. Se olharmos para o apoio à Ucrânia, os Estados Unidos podiam ter ignorado a situação e, no entanto, não o fizemos. Porquê? Porque a dignidade extraordinária dos ucranianos na defesa da sua liberdade inspirou-nos. É por isso que a NATO é tão sólida: são países aliados que admiramos. O que é realmente difícil é conseguir que os americanos se preocupem com países que não partilham os nossos valores. Por exemplo, a Arábia Saudita insiste em que qualquer acordo com Israel tenha como preço uma garantia de segurança americano ao estilo do artigo 5º [cláusula de defesa mútua do tratado que cria a NATO]. Isso teria de ser ratificada pelo Senado. Pessoalmente, não acredito que se consigam os 66 votos [a maioria reforçada necessária] para aprovar essa proposta no Senado, devido à diferença nos nossos valores. Seria do interesse americano fazê-lo, no entanto, nem o presidente Trump, o presidente americano mais pró-saudita em muito tempo, se empenhou em retaliar contra os ataques [com drones iranianos] contra a Arábia Saudita. Portanto, os valores importam muito para que qualquer política externa americana seja viável. Estrategicamente, acredito que o mundo será mais seguro se os governos tiverem de responder perante a sua cidadania.

Deixe-me colocar a questão de outra forma. Considera que os valores democráticos têm de estar presentes na política externa, mas também acha que os EUA precisam de investir nas relações com Estados que não são democracias?
Sim, claro, não temos a economia de escala de que necessitamos para moldar positivamente a ordem internacional se trabalharmos exclusivamente com Estados democráticos. Há países que partilham os nossos interesses e que não são democracias. E alguns até podem tornar-se democracias no futuro. O Vietname é um excelente exemplo. Quando é que um país está disposto a mudar numa direção democrática e quando é que ainda não está é a grande questão. A Arábia Saudita e a Turquia são bons exemplos disso. É muito difícil em ternos da nossa política externa fazer uma distinção entre o momento certo para fazer pressão no sentido da mudança democrática e o momento em que isso vai simplesmente criar problemas com um governo de que se podemos precisar, sem alcançarmos uma mudança positiva.

Inteligência Artificial é o maior desafio da atualidade? “Não espero que desencadeiem o apocalipse nuclear”

Relativamente a estes e outros países do chamado Sul Global, na falta de uma designação melhor, há um debate em curso sobre a melhor forma de lidar com eles. Penso que é justo dizer, especialmente no que diz respeito a África, mas também a partes da América Latina e da Ásia, que os EUA não se empenharam muito eficazmente nessas regiões, nomeadamente após o fim da Guerra Fria. Na sua opinião, qual é a melhor forma para os EUA se envolverem? Investimento, democracia, pragmatismo estratégico, qual seria a combinação certa?
Um bom começo seria ajudarmos a resolver os problemas que preocupam esses países. O governo dos EUA tem a tendência para se envolver quando estamos preocupados com alguma coisa e exigir que os países nos ajudem a resolver o problema que nos afeta. Fiz muito trabalho de diplomacia de coligação quando estive no governo americano. Depois do 11 de Setembro [de 2001] fomos a todo o lado dizer que estamos muito preocupados com o terrorismo, precisamos da vossa ajuda para resolver este problema. Muitos países respoderam-nos dizendo: “Temos problemas maiores e diferentes, podem ajudar-nos a resolvê-los?” O programa de assistência “Desafio do Milénio” é para mim um bom exemplo, pois ajudou muitos países a resolver os seus problemas de desenvolvimento, reforçando simultaneamente a sua governação. E a sociedade civil americana também é um grande ativo. O esforço da Fundação Gates para desenvolver a saúde pública em todo o continente africano contribuiu mais para a perceção positiva que as pessoas têm dos Estados Unidos do que qualquer outra coisa que fizemos, exceto, talvez, o programa PEPFAR [de combate à SIDA] do Presidente [George W.] Bush.

Em termos de tendências futuras no domínio da segurança e da geopolítica. Qual é a sua principal preocupação? Está preocupada, por exemplo, com a Inteligência Artificial?
Estou muito menos preocupado com a Inteligência Artificial do que muitos dos nossos colegas. Para mim, trata-se apenas de matemática que treinamos em conjuntos de dados para realizar determinadas tarefas. Não espero que desencadeiem o apocalipse nuclear. Podemos assegurar-nos de que a conseguimos desligar. E, no Ocidente, todos nós estamos a ter um grande debate sobre como obter as vantagens da IA, por exemplo, no combate às doenças ou em ajudar os nossos serviços de informação a processar grandes quantidades de dados para melhor identificar ameaças mortais. As sociedades livres e dinâmicas são boas a desenvolver tecnologia e a criar proteções razoáveis em relação a elas. A minha grande preocupação é o que os nossos inimigos vão fazer com a IA.

Kori Schake fez parte da administração Bush, sob a liderança de Colin Powell

Inês Pinto Gonçalves/ Afterclick

As autocracias digitais são uma grande ameaça.
Exatamente. Ainda não refletimos suficientemente sobre isso, e devemos fazê-lo.

Uma última pergunta: considera que o Ocidente continua a ser um conceito útil em termos de análise geopolítica e de prática?
Penso que o Ocidente é um conceito crucial. Em primeiro lugar, porque a sua essência são povos livres e mercados livres que cooperam para partilhar esforços na promoção dos nossos interesses e na proteção das nossas liberdades. E os valores fundamentais do Ocidente são atrativos muito para além do Ocidente geográfico. A Austrália, o Japão ou a Coreia do Sul são ocidentais porque acreditam nos valores fundamentais da nossa comunidade Transatlântica. Hal Brands tem um excelente texto recente sobre geopolítica em que argumenta que os grandes conflitos geopolíticos são sempre e fundamentalmente também confrontos de ideias e ideais. Por isso, se não nos mantivermos unidos na defesa destes ideais fundamentais do Ocidente, não conseguiremos resistir aos desafios representados pelas potências autoritárias.

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