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Marisa Cardoso

Marisa Cardoso

Lana Del Rey e The Last Dinner Party: as divas salvaram o segundo dia de Primavera

Num dia ensombrado pelo cancelamento dos concertos do palco Vodafone, que fez com que os franceses Justice caíssem do cartaz, Lana Del Rey e The Last Dinner Party revelaram-se inabaláveis.

Aquando da última passagem de Lana Del Rey por Portugal, no Super Bock Super Rock de 2019, escrevíamos que a artista norte-americana era uma mulher que pisava o palco com confiança. Nessa altura, tal como acontecera na noite desta sexta-feira, no Primavera Sound, os bilhetes esgotaram e a euforia era de tal ordem que alguns fãs desmaiavam de emoção. Não sabemos se alguém desmaiou esta noite, mas não temos dúvidas de que houve surtos de taquicardia na multidão. Desde a abertura do recinto que se sentia uma emoção nervosa no ar. Houve quem tivesse acampado às portas do Parque da Cidade para garantir o melhor lugar da noite e outros que vieram de propósito do Chile para a ver. Na plateia, multiplicavam-se cartazes com versos de canções transformados em slogans – Kiss me hard before you go – e bandeiras de todo o tipo com a cara de Lana Del Rey estampada.

Ela, fetiche glamoroso do sonho americano de Jay Gatsby, deu tudo o que tinha a quem cegamente ali se prostrou a seus pés: a sua serenidade apática, a sua expressão inquebrável, metade personagem, metade charme decadente, toda ela voz sem plissar, sem desmanchar a pose. Lana Del Rey é a romantização da mulher perfeita de uma América dos anos 50, uma princesa num palacete art deco, tão embriagada de boémia e excessos quanto sozinha na sua pele, expondo a sua depressão de porcelana em canções pop de índole romântico-trágica.

Entrando com o trinado lamurioso de Recuerdos de Alhambra, de Andrés Segovia, aquela que o El País apelidou de “deusa” há uma semana, em Barcelona, foi de passo calmo, decidido, até à frente de palco, desencadeando gritos sofridos e apaixonados que muito possivelmente foram ouvidos em todos os concelhos limítrofes do Porto. Sorriu longamente, como se fosse a Miss America 2024 e quando se sentiu saciada da ovação, agarrou o microfone e lançou-se a Without You. Pretty cameras, pretty cameras, Am I glamorous, tell me, am I glamorous?, cantou com flashes apontados à cara imaculadamente polida, acompanhada por um coro de vozes que em alguns momento chegaram a silenciar a sua.

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Numa hora e meia, houve tempo para Lana Del Rey dar a entoação e a curvatura dramática que quis ao espetáculo. Ela, roteirista do melhor blockbuster de Hollywood ou história de amor da Disney, era dona e senhora de si e de tudo o que se passava à sua volta. Ao início eufórico, que não demorou a trazer Summertime Sadness, depois da muito celebrada cover dos Sublime, Doin’ Time, sucedeu-se a reencarnação de Nancy Sinatra em Pretty When You Cry, uma compilação de imagens de videoclips a servirem de fundo a Ride e uma Born to Die que a fez descer ao fosso para uma interminável sessão de autógrafos e fotografias com os fãs. Byron Thomas fazia tempo ao piano e ninguém sabia quando é que Lana Del Rey, bajulada como seria bajulada Marilyn Monroe à época, voltaria a palco, ao seu cenário palaciano, às suas bailarinas com penas, lençóis brancos, espelhos, adereços luxuriantes ao serviço de uma das maiores estrelas pop do momento.

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Houve drama em Did you know that there’s a tunnel under Ocean Blvd, um coro gospel em The Grants, lágrimas em Video Games, foxtrot em Young and Beautiful e até um holograma de Lana Del Rey em Hope is a dangerous thing for a woman like me to have – but I have it. Houve, em suma, uma demonstração de poderio da grande indústria musical – tal como na noite anterior havia acontecido com SZA – ancorada numa voz feminina que é das mais sólidas e profícuas da atualidade (nove álbuns em onze anos e já mais um a caminho em setembro) e que, acima de tudo, sabe dominar a arte do espetáculo e do ilusionismo própria de quem é uma verdadeira diva, como o é Lana Del Rey. No Primavera Sound ela provou que nada jamais a atormentará.

Entre o céu e o inferno, valeram-nos as The Last Dinner Party

Lana Del Rey e SZA, este ano, e Rosalía na edição passada serão três momentos que vão marcar a história do Primavera Sound Porto e um marco de transição de um festival de grandes concertos para concertos astronómicos. O grau de exigência está cada vez maior, o nível das produções a atingir proporções inimagináveis e sabe-se lá onde é que isto vai parar. Porém, nem tudo são motivos de celebração para este festival que parece ter uma maldição meteorológica a atormentar-lhe a aura.

Parecia impensável que uma intempérie como a da edição anterior se repetisse em 2024. Poucos dias antes do início deste 11.º Primavera Sound, o diretor José Barreiro explicava-nos os esforços e melhorias feitas no palco principal para acautelar qualquer contratempo. “Esperamos não voltar a passar por isto novamente”, dissera-nos. O primeiro dia de festival, que teve SZA e PJ Harvey como grandes protagonistas, correra sem qualquer motivo de alarme. Contudo, o aviso laranja que se abatera sobre o Porto e mais nove distritos durante o dia de sexta-feira, 7 de junho, fizeram com que os alicerces começassem a tremer. Desta vez não foi o palco principal que sofreu, mas sim o palco Vodafone, que veria todas as atuações deste segundo dia serem canceladas.

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O primeiro aviso chegou às 17h30, com a organização a alertar para possíveis mudanças na programação devido a “problemas na estrutura”, mas o comunicado definitivo, que foi lançado pouco depois das 20h, veio confirmar as piores expectativas: nenhum concerto, incluído o dos Justice, iria acontecer naquele que até há dois anos fora o palco principal do festival. Importante recordar que esse mesmo palco deixara de ser o principal precisamente, porque não tinha capacidade para dar resposta às cada vez mais exigentes condições técnicas colocadas pelas comitivas dos maiores artistas do cartaz. Sendo assim, e pegando na notícia adiantada pelo Jornal de Notícias durante a tarde de sexta-feira, apontando o “excesso de peso na estrutura relacionado com o espetáculo da dupla francesa Justice” como a motivação do cancelamento de todos os concertos do palco Vodafone, como foi possível agendar um concerto tecnicamente tão delicado para um palco que a própria organização sabia ter limitações? Terão sido as limitações devidamente acauteladas ou fora outra a razão que obrigara ao cancelamento de toda a programação desse palco?

Estas são perguntas que infelizmente ficaram sem resposta até ao final do segundo dia do festival. O único esclarecimento prestado pelo Primavera Sound Porto foi uma mensagem divulgada nas redes sociais escrita pelos Justice, dando nota de que apesar de terem sido feitos todos os esforços por parte das equipas da banda e do festival, não foi possível manter a atuação, “por motivos de força maior”. Isso mesmo foi corroborado pela organização do Primavera Sound Porto ao Observador, no final da noite, sem que mais detalhes tivessem sido adiantados. A organização confirmou ainda que todos os concertos agendados para o último dia no palco Vodafone — nos quais se inclui o dos Pulp, um dos cabeças de cartaz desta edição – realizar-se-ão tal e qual como previsto.

No meio desta situação caótica, valeram-nos as The Last Dinner Party para reerguer a moral de um festival que estava a viver um pesadelo ainda mesmo antes de a noite subir ao céu. Felizmente, e contrariando as piores previsões meteorológicas, a chuva manteve-se longe do recinto a partir do final da tarde até já bem depois de todos os concertos terminarem. As preces do público à hora do lusco fusco, que no Instagram escreviam comentários como Put Lana Before The Storm, foram atendidas. Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar, mas no final o tal do mundo não se acabou.

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Ainda bem que não se acabou, porque seria uma pena não testemunhar o primeiro concerto das The Last Dinner Party em Portugal (e claro, o de Lana del Rey também). Consideradas como Rising Star pelos BRIT Awards em 2023 e Sound of 2024 pela BBC, o quinteto lançou no início do ano o seu álbum de estreia, Prelude to Ecstasy, que, sem surpresa, atingiu o primeiro lugar dos tops de venda do Reino Unido. “Here comes the feminine urge, I know it so well, To nurture the wounds my mother held”, cantam em The Feminine Urge, resumindo a sua missão na terra do glam rock: dar voz às suas mães, às mães das mães, a todas as mães e mulheres que não tiveram voz, empoderando-as no presente, empoderando-nos a nós.

Fazem-no cantando temas mais pessoais, como Gjuha, que significa “língua” em albanês e que é interpretado pela teclista Aurora Nishevci, que tem raízes albanesas e se confessou envergonhada por não saber dominar a língua da mãe. Fazem-no também quando pegam numa keytar e entram a matar em solos deliciosa e desavergonhadamente kitsch, com melodias épicas retiradas do cruzamento entre o eixo Queen, Kate Bush e Abba; ou quando decidem fazer covers como Wicked Game, sedutora, dengosa, deprimente, com copo de sangria na mão sangrando-nos a garganta num refrão chorado por muitos quanto estavam na plateia.

A coroar tudo isto está a presença em palco destas cinco raparigas britânicas, tão cúmplices entre si que não nos deixam espaço de dúvida sobre adorarem aquilo que fazem e adorarem fazê-lo juntas. Nenhuma se assume como a estrela da companhia, o protagonismo é partilhado por todas, embora Abigail Morris, na sua condição de vocalista, acabe por desenvolver um diálogo mais próximo com a plateia. A certa altura pediu para que repetíssemos o verso give me the strength, de Give something in return. Pediu que cantássemos com “a força de um trovão” e toda a gente aderiu de peito aberto. Em My Lady of Mercy desceu até às grades e levou com um banho de amor das primeiras filas que ali estavam para ver Lana Del Rey, mas que se entregaram sem reservas às The Last Dinner Party. O concerto terminou com Nothing Matters e com o quinteto a confessar que esta tinha sido uma das suas melhores plateias da ainda curtíssima, mas promissora carreira. “Cuidem uns dos outros”, pediram antes de saírem de cena. “E lembrem-se de que nada de facto importa”. Não se levando demasiado a sério e mantendo uma certa inocência genuína na forma de se apresentar, algo humanamente mais palpável do que as grandes produções nos podem oferecer, as The Last Dinner Party estão-se a tornar realmente um caso sério do indie rock atual. Que bom será vê-las crescer.

Este sábado, último dia do Primavera Sound Porto, será a oportunidade de ver (ou rever) The National, Pulp e de prestar homenagem a Steve Albini, dos insubstituíveis Shellac.

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