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Quem passou esta manhã pela autoestrada A42 em Alfena, Valongo, habilitou-se a ser mandado parar pela GNR para uma operação Stop. Só que esta não era uma operação qualquer: ali perto, dentro de umas tendas brancas, vinte agentes do fisco estavam sentados à secretária para averiguar se os carros eram propriedade de alguém com dívidas ao Estado. Se não fosse, podia seguir viagem. Se fosse, tinha de a pagar — ou então o carro seria penhorado.
A operação, batizada de “Ação sobre Rodas”, devia durar a manhã toda, das 8h às 13h. Mas foi cancelada antes disso pela secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, por não ter sido “definida centralmente”. Entre uma coisa e outra, pelo menos entre 50 a 100 carros foram mandados parar. E pelo menos um foi penhorado. Mas foi-o legalmente? As opiniões dividem-se entre os especialistas. Uns acreditam que sim, outros dizem que viola os mais básicos direitos humanos.
O que aconteceu?
A Autoridade Tributária (AT) e dez agentes da Guarda Nacional Republicana (GNR) estiveram na rotunda da A42, na saída para Alfena, em Valongo, a mandar parar os carros para confirmar se os proprietários tinham dívidas ao fisco. A operação chamava-se “Ação sobre Rodas”, disse fonte da AT à Agência Lusa, e tinha por objetivo “intercetar condutores com dívidas às Finanças, convidá-los a pagar e dar-lhes essa oportunidade de pagarem”. Caso o condutor não pagasse a dívida, “estamos em condições de penhorar as viaturas”, acrescentou a AT.
Os agentes do fisco, que eram cerca de 20, estavam dentro de tendas brancas nessa rotunda a monitorizar as dívidas. Quando a GNR mandava parar um carro, a matrícula era introduzida num sistema informático que cruza dados através das matrículas das viaturas e compara-os com a existência de dívidas ao fisco. Se o proprietário do carro com aquela matrícula tivesse uma dívida por saldar, então o condutor tinha de a pagar ou a viatura era penhorada.
Esta operação só aconteceu em Valongo?
Na manhã desta terça-feira, a operação “Ação Sobre Rodas” só aconteceu em Valongo. No entanto, uma fonte da GNR confirmou ao Observador que já existiram outras no distrito do Porto e estão programadas mais.
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De facto, esta não é a primeira vez que o fisco se junta às forças de segurança na tentativa de resolver problemas fiscais. Há sete anos, a 5 de junho de 2012, os agentes do fisco acompanharam a Polícia de Segurança Pública (PSP) em operações Stop para cobrar dívidas. À época, tal como esta terça-feira, essa parceria servia para “a fiscalização de matérias de âmbito rodoviário, nomeadamente em relação à apreensão de veículos automóveis penhorados em processos de execução fiscal”, escreveu a TSF nesse dia.
Durante essa operação, também se verificava se o imposto de circulação automóvel associado àquele veículo estava pago e se alguém estava a transportar mercadorias não declaradas ou sem guias devidamente preenchidas.
No mesmo dia, o Expresso noticiava que o fisco e a PSP tinham celebrado uma colaboração para andarem juntos na rua em busca “de sinais exteriores de riqueza dos contribuintes que não tenham reflexo na declaração de IRS”.
Segundo a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, essas operações serviriam para “identificar e controlar os veículos automóveis com valor igual ou superior a 50 mil euros, que possam constituir manifestações exteriores de fortuna”. O valor de aquisição do veículo era comparado às declarações fiscais de IRS dos proprietários. E, se houvesse incongruências, as Finanças corrigiam os valores na matéria coletável e no imposto a pagar.
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E é constitucional?
De acordo com o jurista Jorge Bacelar Gouveia, operações como a “Ação sobre Rodas” são constitucionais: “Como o fisco é um órgão da polícia criminal, tem autoridade e poderes legais para exigir a liquidação de dívidas fiscais ou, caso isso não aconteça, de penhorar o carro, que é uma propriedade como outra qualquer”, explicou por telefone ao Observador.
Estas iniciativas são utilizadas quando os bens penhoráveis se podem mover, logo “são mais difíceis de apanhar”. “Uma casa não tem este problema porque não vai a lado nenhum. Quando são bens que se podem mexer de um lado para o outro, estas iniciativas servem para os apanhar”, elaborou Bacelar Gouveia. Os agentes do fisco têm autoridade para o fazer e, em princípio, não precisariam da GNR para levar este plano por diante. A GNR está no local, não só para mandar parar os carros, como também para “para proteger os agentes da Autoridade Tributária caso haja resistência dos contribuintes”.
Só que, para o advogado e fiscalista Rogério Fernandes Ferreira, esta é uma “iniciativa péssima” e que “pode ser grave ou muito grave, mas não menos do que isso”. Em declarações ao Observador, o fiscalista argumenta que, em casos extremos, podemos estar na presença da violação de vários direitos: “Isto pode ser considerada uma violação do direito à liberdade dos cidadãos, na medida em que são intercetados por um agente da autoridade e temporariamente privados da sua liberdade com o pretexto de confirmar apenas se têm dívidas fiscais. É uma espécie de detenção. Os cidadãos não podem ser restringidos na sua liberdade desta forma por terem dívidas fiscais”, alerta.
Além disso, como estes valores de dívidas fiscais podiam ser liquidados através de meios informáticos, “também o princípio da proporcionalidade pode estar a ser violado”, sublinha o advogado. “É um princípio da atuação da administração tributária e das próprias autoridades policiais. Diz que os meios devem justificar os fins. E esse não parece ser o caso aqui”, defende Rogério Fernandes Ferreira.
Mais: “Se as pessoas vierem acompanhadas no carro, e como esta abordagem é relativamente pública, pode estar aqui em causa uma “violação ao direito ao bom nome, da reputação, da imagem e da reserva da vida privada“. O fiscalista acrescenta: “Especialmente nos casos em que os contribuintes em causa tenham boas razões para não terem procedido ao pagamento das alegadas dívidas. Pode ter havido um erro dos serviços, pode até a dívida estar prescrita. Se isto é feito de forma pública, é quase violador da dignidade humana”.
Isso mesmo defende a Ordem dos Advogados num comunicado publicado esta terça-feira na sua página oficial: “Esta iniciativa merece o mais firme repúdio por parte da Ordem dos Advogados”, afirma. E justifica: “É evidente que não é permitido promover a penhora indiscriminada de bens de pessoas ou empresas que sejam devedoras de impostos. Com efeito, não é líquido nem certo que uma dívida fiscal seja efetiva apenas porque a AT entendeu lançá-la no sistema – a dívida pode estar ferida de erro ou ilegalidade, e o contribuinte tem de ver os seus direitos de defesa assegurados”.
É que, conforma explica o texto assinado por Guilherme Figueiredo, “a penhora de bens apenas pode ser realizada, de acordo com o Código do Procedimento e Processo Tributário, após regular citação do devedor executado e vencido o prazo de 30 dias (contados da citação) para o seu pagamento ou oposição”.
Mas a Ordem dos Advogados vai ainda mais longe e sublinha que “repugna a ideia de tratar um cidadão, eventualmente devedor de impostos, como se de um vulgar criminoso se tratasse, recorrendo indiscriminadamente às autoridades de polícia”: “Uma dívida fiscal é apenas isso – uma dívida, assunto para ser tratado pelos Serviços de Finanças e nos Tribunais. A sua cobrança não pode ser realizada sob a ameaça de, pela força, despojar sumariamente os cidadãos dos seus bens”.
Aliás, o método usado para cobrar essa dívida também é alvo de críticas pela Ordem: “É particularmente repugnante o método selecionado, pois a alternativa que restaria ao cidadão, não pagando ou não podendo pagar uma eventual dívida fiscal, seria ser submetido ao vexame de ficar privado do seu meio de transporte, em plena via pública”. “Num Estado de Direito Democrático, não deveria ser sequer possível considerar a utilização das forças da autoridade para coagir os cidadãos ao pagamento de algo que, eventualmente, nem sequer devem”, termina o comunicado.
Quem ordenou esta operação Stop?
Foi a Direção de Finanças quem deu instruções para a operação, acredita Paulo Ralha, do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos. Questionado pela SIC sobre de onde partiu a ordem, o presidente do sindicato explica que iniciativas como esta podem ser da responsabilidade de uma Direção de Finanças ou dos Serviços de Finanças. A diferença é que, “quando vem do Serviço de Finanças, as operações não levam nenhum nome”, “mas quando vêm da direção, normalmente colocam um nome para parecer algo mais imponente”. Esta operação tinha nome: “Ação sobre Rodas”.
Ao Observador, uma fonte do posto da GNR de Alfena afirmou que o posto foi solicitado há duas semanas pela Autoridade Tributária de Ermesinde, via e-mail, para colaborar nesta operação, destacando quatro agentes para o local, onde estiveram outros homens de postos do Porto e de Valongo. A mesma fonte sublinha que esta iniciativa é da total responsabilidade da Autoridade Tributária, que se encontrava com inspetores no local com computadores.
Paulo Ralha ressalva que as iniciativas desta natureza são constitucionais e que os agentes do fisco “agiram no âmbito das suas funções”. No entanto, sublinha que a operação “é imaginativa e bastante desproporcional”. “Há uma desproporção face aos meios envolvidos, ao alarido mediático e aos efeitos. Porque estes efeitos podem ser perseguidos de forma muito mais recatada no Serviço de Finanças. Estas dívidas até costumam ser saldadas automaticamente”, afirma.
O sindicalista adjetiva esta operação de “ridícula” porque nem sequer terá um efeito de moralização sobre os cidadãos: “Estamos a falar de valores pequenos. Se fosse uma grande operação de combate à fraude e à evasão fiscal, que envolvesse uma falta de milhares ou de milhões de euros, aí sim, justificava-se. Nesse caso, mostrava-se que o fisco estava a perseguir os grandes devedores. E que, se chega aos grandes, também chega aos pequenos”.
Porque é que foi cancelada?
A operação “Ação sobre Rodas” foi cancelada porque “não foi definida centralmente”, avançou ao Observador o gabinete do Ministério das Finanças, que está neste momento “a verificar o enquadramento em que a respetiva Direção de Finanças definiu esta ação”. Quem mandou cancelar a operação foi o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Na mesma resposta enviada ao Observador, o Ministério das Finanças recorda que “as orientações na Autoridade Tributária são para atuação proporcional” e que “há hoje mecanismos de penhora eletrónica”.
Antes de ser cancelada, no entanto, esta operação resultou na paragem de cerca de 4.500 carros, avança o Correio da Manhã. De todos esses casos, foram detetadas dívidas ao fisco associadas a 93 dessas viaturas.
O que podia fazer o proprietário do carro caso entendesse que não tinha qualquer dívida ao fisco?
Segundo o constitucionalista Bacelar Gouveia, mesmo que o proprietário da viatura acreditasse que não tem nenhuma dívida por pagar ao fisco, tinha sempre de pagar o valor que está a ser exigido pela Autoridade Tributária ou entregar o carro para ser penhorado. “No entanto, pode sempre contestar a legitimidade da dívida mais tarde através dos tribunais”, acrescenta.