Na passada quinta-feira, este vosso amigo foi ao autoproclamado “maior santódromo da capital” (na verdade, neste aspeto, a organização até foi humilde, uma vez que muito provavelmente o Santos no Tejo será o maior santódromo do mundo, mas continuando). A Doca da Marinha gerava expectativas elevadas: prometia oferecer ali não só “o melhor spot para brindar aos santos” e o “river spot mais social de Lisboa”, como também uma “versão gourmet” das festas da capital, a duzentos metros de Alfama, o sítio onde tudo começou. Goste-se ou não do conceito, é inegável que a descrição dificilmente poderia ser mais acertada.
Decididos a descobrir o que por ali vai acontecer durante o mês de junho, entrámos no recinto por volta das 18h e, com o espaço ainda praticamente deserto, fomos entrevistar o Francisco Mello e Castro, uma das metades da organização do evento, que nos explicou que o Santos no Tejo era o evento perfeito para quem, adorando os santos, não ama o caos, tendo aqui um espaço amplo, junto ao rio, com organização, segurança, conforto e, o que não é de todo irrelevante, casas-de-banho de uma limpeza e sofisticação que quem dera a muitos. Naturalmente, fico curioso para saber o que sobra das festas populares se extrairmos o caos, o desconforto e a ausência de condições sanitárias. O Francisco vem então em meu auxílio: sobra o cheiro a sardinhas assadas, as bandeirinhas e, claro, o bailarico. Agradecido pela explicação, dirijo-me à tenda VIP, onde tenho o prazer de beber uma cerveja sem esperar em filas ao mesmo tempo que vejo, lá em baixo, plebeus ao sol.
Daí, desço para o enorme relvado da Doca da Marinha, onde passeio por entre as bancas de restauração. Talvez seja aselhice misturada com uma constipação que teima em não passar, mas a verdade é que não vejo bandeirinhas nem sinto qualquer cheiro a sardinhas assadas. Vejo, no entanto, bancas de açaí e de ninjabuns, além de um stand da Hyundai — que, como vim a pé desde a Penha de França, talvez venha a dar jeito.
Junto à barraca dos vinhos (cada um no seu quadrado), converso com um casal do Cartaxo que não adora arraiais, mas que ouviu falar da festa na Rádio Comercial e decidiu vir, para ver e ouvir o Quim Barreiros, o nome grande da primeira noite (já agora, até à noite de Santo António haverá concertos de Herman José, Emanuel, Mónica Sintra e Ágata, entre outros). Mais perto do palco, a Carlota e a Inês, estudantes de Matemática, comemoram o fim das aulas e dizem-me que gostam de arraiais porque lhes traz uma nostalgia da infância, passada a ouvir música popular em festas com os pais.
Dali, sigo para o Xangai Club, um reboque de diversões, onde se pode disparar contra latas de Coca-Cola e Ice-Tea para tentar ganhar serpentes de peluche e outros brindes. Converso com o Filipe e o Giovanni, pai e filho, que guiam o reboque de feira em feira por todo o país. É, explica-me o Filipe, o negócio da família há já três gerações. O Filipe conta-me que conheceu a mulher (que está hoje com a filha numa outra feira na Quinta do Conde) quando ambos tinham treze anos. Eram feirantes e encontraram-se e desencontraram-se pelos caminhos de Portugal durante meia década até que decidiram casar. Hoje, juntaram trapinhos e reboques e vivem na estrada com os filhos. Não trocavam aquilo por nada, garante-me o Filipe e eu acredito.
Saído dali, cruzo-me com o Gil e a Fabiana, um casal de advogados em que ela adora bailaricos e arraiais e ele adora-a a ela. O Gil não é grande entusiasta destas festas, mas jura gostar de ver o típico português divertir-se. Estão entusiasmados com o que aí vem, parece-me, apesar de trabalharem no dia seguinte.
A uns cem metros do Gil e da Fabiana, encontro o senhor Zé e a dona Helena, ambos com 79 anos e fãs de há décadas do Quim Barreiros. Pelo Mestre da Culinária, já foram a Tires e ao Cartaxo. O senhor Zé pergunta-me se ouvi a mais recente criação do seu ídolo, acerca de um tatuador chamado Tomé. Confesso-lhe que não e ele, todo contente, de olhos fechados, cita-me os versos: “Abriu a boca e Tomé tatua… Abriu a perna e Tomé tatua”, enquanto a dona Helena se ri e encolhe os ombros. Confesso que à primeira, a subtileza barreirosiana passou-me ao lado. Pergunto-lhes de que outros artistas gostam e a dona Helena fala-me do Freddie Mercury e do Elvis, que diz ouvir quase em transe, enquanto o senhor Zé louva o Marco Paulo, o Roberto Carlos e o Chico Buarque. Despedimo-nos e a dona Helena deseja-me uma boa vida profissional.
Com tudo isto são quase oito da noite e o Quim Barreiros deve estar a chegar, pelo que sigo para a zona dos bastidores, colada à entrada onde se acumulam agora centenas de pessoas. Duas delas são a Patrícia e o Tiago, que celebram quatro anos de casados. Prometem uma festa animada, ainda que não tanto como a do arraial de há precisamente seis anos em que conceberam a primeira e, até ver, única filha.
E é então que o momento mais esperado do dia acontece. A Sónia, que trabalha na promoção do evento, diz-me que o Quim Barreiros aceitou falar cinco minutos connosco, se quisermos. Claro, respondo. Quando chegamos, o Quim Barreiros está a ser entrevistado para a SIC. A jornalista pergunta-lhe se preparou alguma coisa especial para esta noite e ele responde que não, não. Depois, pergunta como será o alinhamento e ele diz que “é o mesmo de sempre, minha querida”, tiram uma selfie e ele dá por terminada a entrevista.
Tento saber se ainda é especial para ele pisar um palco, se ainda se sente nervoso e ele diz-me que “o gosto não desaparece, mas o nervosismo sim”. Quem chega a dar 287 concertos num ano perde essas coisas, explica. Penso em dizer-lhe que um homem da sua idade dar 287 vezes ao ano é muita fruta, mas contenho-me, por reverência. Fala-me das saudades das casas de fado, do amor à estrada, do medo do silêncio da reforma e no final remata com um “‘bora, caralho, tira aí a foto”.
Segue para o palco, vestido à civil: polo verde, camisa branca e calças de ganga. No fim da primeira música, mete o famoso chapéu, agradece à organização e pede que salte Lisboa, que salte Lisboa, olé, olé, obedecido imediatamente por uma multidão ao rubro. À direita do palco, converso com o senhor Hermínio, que vive na estrada com o Quim Barreiros há cinco anos. Conta que durante a pandemia, o Quim andava frágil, cabisbaixo, mas que mal voltou à estrada parecia um puto outra vez. Tento continuar a conversa, mas uma senhora da comitiva proíbe-me de fazer mais perguntas. Tento negociar mas ela ignora-me, trauteando que bonito, bonito são os tomates a bater no pito. Regresso ao recinto, onde encontro dois ingleses, o Luke e a Emilia, atraídos pela música escutada ao longe. Ele é bailarino e ela canta em cruzeiros. A dois metros dali, cruzo-me com a Bárbara, de Alfama, e a Ana Maria, de Arroios. A Bárbara protesta com a existência de pad thai num arraial, lamenta o preço da cerveja — já agora, fica a informação útil, custa 3 euros — e confessa a desilusão por nem sequer haver uma quermesse. Eu, que não faço ideia do que isso seja, dou-lhe razão e digo que é uma vergonha.
Parto em busca da dona Helena e do senhor Zé. Não os encontro mas vejo a Bárbara, que antes estava na banca da Hyundai e agora dança ao som do Quim Barreiros. Ela diz sentir saudades dos arraiais da Sé, mas ali não teme levar facadas, o que garante ser uma vantagem considerável.
Prestes a sair, encontro finalmente o senhor Zé e a dona Helena, sentados na zona da restauração. O senhor Zé louva a limpeza das casas-de-banho. Peço-lhe que me conte como conheceu a mulher. Foi no dia de anos do Mário Soares, diz, num baile da Faculdade de Letras, a que o senhor Zé fora com uma namoradita de dois dias e a dona Helena com os pais. Dançaram agarradinhos, trocaram números de telefone, mas não beijos. A dona Helena diz que ele era muito bonito, vestia bem e lhe ligou logo de manhã cedo no dia seguinte. O senhor Zé sorri e diz que ainda não tinha ido dormir nessa noite. Trocaram o primeiro beijo ao pé do elevador de uma escola de Inglês e casaram por procuração quando ele foi destacado para Moçambique, no Ultramar. Enquanto o senhor Zé conta tudo isto, o Quim Barreiros anuncia o seu novo sucesso, “A Água”, uma canção de intervenção com orquestra sobre tudo o que a água faz por nós, recordando que é ela, afinal, que lava, entre outras coisas, “a rata e os entrefolhos, a nabiça e os agriões”.
A dona Helena procura no telefone a letra e nós abandonamo-los, rumo aos arraiais de Alfama, onde comemos uma bifana num pão que por ali andaria já desde o tempo do terramoto. O cheiro a sardinhas entranha-se, por fim, na minha T-shirt enquanto ao longe ouço uma senhora cantar desafinadamente ao desafio. Lá vai Lisboa, de saia cor de mar. Que linda que ela é.
João Pedro Vala é escritor, autor do romance “Grande Turismo”