Uma aposta inusitada surgiu recentemente nos meios de comunicação sociais britânicos. Seria o ciclo de vida de uma alface (que dura até 60 dias) mais longo que o mandato de Liz Truss? Foi criado um canal do Youtube para acompanhar essa ‘corrida’ e, depois dos acontecimentos dos últimos dias, cada vez mais pessoas acreditavam que a verdura era capaz de sair vencedora do duelo. Esta quinta-feira, surgiu o resultado: a alface ganhou à primeira-ministra britânica.
Após 45 dias à frente dos desígnios políticos do Reino Unido, a primeira-ministra britânica demitiu-se, tornando-se a chefe de governo com o mandato mais curto de sempre no país. É também sinal de que a crise política que Londres tem enfrentado pode não ser ultrapassada tão cedo — desde 2019, num tempo que é inferior ao da duração de uma legislatura completa, o país já teve três primeiros-ministros: Theresa May, Boris Johnson (que pode agora regressar) e Liz Truss.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a crise política no Reino Unido.
Com maioria dos assentos na Câmara dos Comuns e na Câmara dos Lordes, o Partido Conservador também terá de eleger um novo líder — o quarto em quatro anos. Apesar da inequívoca vantagem política que tem nas duas câmaras, conquistada ainda em 2019, os tories não têm sido capazes de garantir a estabilidade política no Reino Unido.
Por agora, e apesar dos pedidos incessantes da oposição e dos líderes regionais, o cenário de novas eleições gerais não deverá ter resposta dos tories. A ampla maioria de que dispõe permite aos conservadores manter-se no poder até 2024, impedindo quaisquer moções de censura que visem a dissolução do parlamento. O custo político, ainda assim, poderá ser alto e traduzir-se num inevitável desgaste.
Que razões apontou Truss para justificar a demissão?
No discurso em que anunciou a sua demissão, Liz Truss lembrou que chegou ao poder “numa altura de grande instabilidade económica e internacional”. Empossada a 6 de setembro ainda pela Rainha Isabel II, a primeira-ministra britânica, que fica como interina até haver um substituto, apontou o contexto político-económico como justificação para as dificuldades que enfrentou.
“As famílias e as empresas estão preocupadas sobre como vão pagar as suas contas. A guerra ilegal de Putin na Ucrânia ameaça a segurança de todo o nosso continente. E o nosso país tinha já uma tendência de baixo crescimento económico”, elencou Liz Truss, recordando depois que “foi eleita pelo partido Conservador para mudar” a situação do Reino Unido.
Apesar do curto mandato, Liz Truss enumerou alguns dos aparentes sucessos dos 45 dias em que foi primeira-ministra: “Cumprimos na fatura da luz e reduzimos o IRS. E estabelecemos uma visão para adotar baixos impostos que iriam trazer crescimento económico, aproveitando-se as liberdades concedidas pelo Brexit”.
Tendo em conta a “atual situação”, a primeira-ministra britânica reconheceu que “não pode cumprir o mandato” até o fim. Sem nunca fazer um mea culpa nem especificando o que levou à sua demissão, Liz Truss apenas salientou, no discurso de um minuto e meio, que “continuará a ser primeira-ministra até um sucessor ser escolhido”, revelando que tal acontecerá na próxima semana. Até lá, a primeira-ministra assegurou que o Reino Unido vai manter a sua “estabilidade económica e segurança nacional”.
O que correu mal a Truss?
A reviravolta no orçamento
A “situação” a que primeira-ministra britânica se referia no discurso relaciona-se essencialmente com a viragem na política económica que defendia e o “mini-orçamento” que acabou no lixo. Durante a campanha que realizou durante dois meses para substituir Boris Johnson, a primeira-ministra prometera o fim do escalão mais alto de impostos, que taxa a 45% os cidadãos com rendimentos mais altos. A medida foi finalmente apresentada no final de setembro, depois de terminado o período de luto pela morte da Rainha Isabel II.
O contexto não se adivinhava favorável para este tipo de medidas. Antevendo-se uma crise económica e um aumento dos preços da energia, a intenção de eliminar o “45p” — como é conhecido o último escalão de IRS no Reino Unido (rendimentos acima de 150 mil libras anuais taxados a 45%) — foi mal recebida pela generalidade da população. E não só: mesmo dentro do Partido Conservador, a proposta criou anticorpos: 70 tories ameaçaram votar contra a medida.
A diminuição da receita e o aumento expectável das despesas públicas criaram o pânico nos mercados. A libra esterlina afundou para mínimos históricos face ao dólar, caindo também face ao euro (para mínimos de dois anos). As taxas de juro aumentaram. O Banco de Inglaterra viu-se obrigado a intervir no mercado de dívida, comprando obrigações do Estado para “restabelecer as condições normais de mercado”. E até o Fundo Monetário Internacional criticou a medida: “Devido às fortes pressões inflacionárias em muitos países, incluindo no Reino Unido, não recomendamos pacotes fiscais grandes e não direcionados nesta conjuntura”.
Apoiando-se num dos seus maiores aliados — o ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng —, Liz Truss era pressionada a recuar. Mas mantinha, aparentemente, a intenção de cortar os impostos aos mais ricos. “Vou fazer as coisas de forma diferente. Isso implica tomar decisões difíceis e implica [concretizar] alterações de curto prazo”, comentava no final de setembro.
Pressionada pelo partido e pela opinião pública, Liz Truss cedeu no início de outubro. No entanto, a primeira-ministra procurou salvar a face e acabou por ser o ministro das Finanças a anunciar a reversão da política. “Desde apoiar os negócios britânicos até baixar o fardo dos impostos para quem recebe menos, o nosso plano de crescimento define uma nova abordagem para construir uma economia mais próspera. No entanto, é claro que a abolição do escalão de 45p se tornou numa distração da nossa missão de enfrentar os desafios que surgem ao nosso país”, escreveu no Twitter Kwasi Kwarteng.
Não foi só o fim da medida. Liz Truss ponderou mesmo numa reviravolta e esteve em cima da mesa uma subida de impostos, algo que era completamente impensável considerando os planos económicos iniciais da primeira-ministra. Kwasi Kwarteng estava, assim, por um fio — e a demissão, nestes termos, parecia inevitável. A 14 de outubro chega a oficialização: o ministro das Finanças anuncia que vai sair do governo e Liz Truss perde o seu grande apoio político.
Ainda assim, a primeira-ministra britânica mantinha-se no cargo e garantia que não ia sair. Pelo meio, Liz Truss nomeia Jeremy Hunt para chefiar o Ministério das Finanças, assinalando que os dois partilhavam uma “visão de crescimento” para o Reino Unido. Contudo, o novo ministro não escondeu que o mini-orçamento e as propostas do seu antecessor tinham sido um “erro”, nomeadamente a proposta de baixar de 45 para 40% o imposto sobre o rendimento “para os mais ricos quando se ia implementar decisões difíceis sobre impostos e gastos”.
Esta segunda-feira, Jeremy Hunt apresentava um novo programa económico, que reverteu “quase todo” o plano fiscal que a primeira-ministra ainda há semanas tinha anunciado. Atacada pela oposição por dar o dito pelo não dito e por mudar radicalmente o seu programa político, Liz Truss assegurou perante os deputados, esta quarta-feira, que era “uma lutadora e não uma desistente”, desejando ficar no cargo. A declaração não viveu 24 horas.
Dentro do Partido Conservador, crescia a oposição. Membros influentes pediam a saída da primeira-ministra, alegando que não tinha condições para se manter no cargo. Esta quarta-feira, chegava mais uma má notícia para a chefe de governo. A ministra do Interior, Suella Braverman, decide demitir-se. E, na missiva em que anunciava a sua renúncia ao cargo, não se absteve de dirigir críticas a Liz Truss: “O funcionamento do governo depende de as pessoas aceitarem responsabilidade pelos seus erros. Fingir que não cometemos erros, continuar como se ninguém visse que os cometemos, e esperar que as coisas fiquem bem por magia não é sério politicamente. Estou preocupada com o rumo deste governo”.
As sondagens
No meio de tantas críticas, as sondagens publicadas criavam ainda mais dificuldades a Liz Truss. Desde que a primeira-ministra chegou ao poder, os conservadores afundaram nas sondagens, com resultados na ordem dos 20%. Pelo contrário, o Partido Trabalhista — o principal partido da oposição — angariava mais de 50% das intenções de voto. A diferença abismal leva a que os conservadores mantenham distante a ideia de convocar eleições antecipadas — e os números negros tornaram a chefe de governo um ativo tóxico entre os tories.
De acordo com um dos últimos estudos de opinião, publicado pela empresa Redfiled & Wilton Strategies, os trabalhistas obteriam 55% e os conservadores apenas 19% se as eleições se realizassem neste momento — a diferença (a maior de setembro, pelo menos desde 1997) era de 36 pontos percentuais.
Labour leads by 36%.
Joint-largest lead for ANY party with ANY polling company since Oct. 1997.
Westminster VI (19 Oct.):
Labour 55% (-1)
Conservative 19% (-1)
Lib Dems 12% (+1)
Green 4% (-1)
SNP 4% (–)
Reform 4% (+2)
Other 1% (–)Changes +/- 16 Oct.https://t.co/EeeRo2zqQH pic.twitter.com/QePdlfjfcs
— Redfield & Wilton Strategies (@RedfieldWilton) October 20, 2022
Na segunda-feira, uma sondagem da YouGov enfraquecia ainda mais Liz Truss. Num inquérito realizado apenas a conservadores, 55% admitiam desejar que a primeira-ministra se demitisse, contra os 38% que defendiam que Truss devia permanecer no cargo. Mais devastadoras ainda foram as respostas sobre se a líder do governo estava a desempenhar bem o seu papel: 83% consideravam que estava a fazer um “mau trabalho” contra os 15% que diziam estar satisfeitos com o mandato de Liz Truss.
Numa perspetiva mais ampla, outro estudo de opinião da YouGov também publicado na segunda-feira dava conta de que apenas 10% dos britânicos têm uma opinião positiva sobre a primeira-ministra. 80% vêem-na de “forma desfavorável” — e 62% tem uma opinião “muito desfavorável” sobre a até agora líder do governo.
Já após a sua demissão, as sondagens pareciam indicar que a saída de Liz Truss era algo inevitável. Um estudo de opinião de YouGov revela que 79% dos 2.066 participantes consideram que a primeira-ministra tomou a decisão correta ao demitir-se. Em contrapartida, 7% dos inquiridos não concordam com a decisão.
SNAP POLL: Do you think Liz Truss is right or wrong to resign?
Right to resign: 79%
Wrong to resign: 7%https://t.co/Wceusfy2yB pic.twitter.com/KTx6B7mJc8— YouGov (@YouGov) October 20, 2022
O processo para eleger o novo primeiro-ministro
O partido terá agora de eleger um novo líder que, por inerência, será o novo primeiro-ministro. Para tal, os tories estiveram, na tarde desta quinta-feira, reunidos para determinar quais serão os próximos passos. A hipótese de ter um processo eleitoral tão longo quanto aquele que foi realizado apenas há dois meses, após a saída de Boris Johnson, ficou imediatamente fora de questão. Graham Brady, presidente da Comissão 1922 — o grupo parlamentar conservador —, descartou essa hipótese por uma questão “de interesse nacional”.
“Penso que estamos profundamente conscientes do imperativo interesse nacional em resolver [esta questão] clara e rapidamente”, afirmou Graham Brady logo após a demissão de Liz Truss. Também ele se mostrou “dececionado” com o rumo que o partido está a tomar.
[Infografia que ajuda a explicar como o processo vai decorrer]
Os conservadores definiram esta sexta-feira o processo a seguir até à escolha do novo primeiro-ministro, mais célere que aquele que resultou na eleição de Truss, mas ainda assim composto por várias rondas. A primeira tem lugar já na segunda-feira: os candidatos à liderança do partido têm de reunir o apoio de pelo menos 100 deputados. Se apenas um obtiver mais de uma centena de assinaturas, é imediatamente eleito primeiro-ministro; mas se mais que um dos candidatos obtiver 100 apoios (o que é possível, dado que existem 363 tories na Câmara dos Comuns), o processo alonga-se.
Primeiro, numa ronda em que apenas os deputados eliminarão um dos candidatos (caso haja três). Depois, haverá uma votação indicativa (sem cariz oficial), também pelos parlamentares, para decidirem qual dos candidatos querem que seja o próximo primeiro-ministro. No entanto, este duelo será aberto a todos os membros do Partido Conservador, que votarão online sobre quem será o próximo chefe de governo. Dia 28, na próxima sexta-feira, saber-se-ão os resultados.
Quem são os principais candidatos?
Os deputados que se apresentem a votos para ser o próximo primeiro-ministro poderão, a partir da noite desta quinta-feira, apresentar a sua candidatura. Até ao momento, de acordo com as casas de apostas, surgem três grandes favoritos: o oponente de Liz Truss, Rishi Sunak, a presidente do Conselho e Líder da Câmara dos Comuns, Penny Mordaut, e o ex-primeiro-ministro Boris Johnson.
Há ainda outros nomes em cima da mesa, como o da ex-ministra do Interior, Suella Braverman, ou a ministra do Comércio Internacional, Kemi Badenoch. No entanto, dificilmente deverão conseguir angariar os apoios dos 100 deputados, ainda para mais tendo apenas quatro dias para reunir esses apoios.
Ainda nenhum deputado confirmou oficialmente a sua candidatura, esperando-se que o faça nas próximas horas. Rushi Sunak, que insistiu numa política orçamental rigorosa durante a campanha contra Liz Truss, deverá reunir o apoio dos parlamentares, uma vez que nas últimas eleições já era considerado o seu favorito. A entrada em jogo de todos os tories acabou por prejudicá-lo — e por beneficiar a atual primeira-ministra.
Atualmente de férias na República Dominicana, Boris Johnson também terá hipóteses de se tornar o próximo primeiro-ministro. Apesar dos escândalos, o ex-primeiro-ministro ainda reúne apoio entre os tories, algo demonstrado pela sondagem de segunda-feira que revelava que era o favorito de 32% dos conservadores, caso Liz Truss saísse do governo (Rushi Sunak conseguiu reuniu apenas 23%).
Se Rushi Sunak podia ser uma aposta segura no que diz respeito à sua política económica (bastante diferente de Liz Truss), Boris Johnson poderá ser encarado como alguém com experiência governativa e a cujo estilo os britânicos já estão acostumados.
Oposição quer eleições antecipadas
Face às sondagens, os conservadores entendem que um cenário de eleições antecipadas levaria a que fossem conduzidos à porta de saída — e perdessem o poder. Em sentido inverso, a oposição via essa antecipação do calendário eleitoral como uma forma de conseguir chegar a DowningStreet (sobretudo, os trabalhistas). No entanto, esse cenário teria de ter o apoio dos tories na hipotética aprovação de uma moção de censura, uma vez que estes detêm a maioria dos lugares na Câmara dos Comuns.
O secretário-geral dos trabalhistas, Keir Starmer, disse, logo após a demissão de Liz Truss, que a crise política que o Reino Unido atravessa “está a ser paga pelos britânicos”, deixando o país “pior e mais fraco”. “Os tories não podem responder aos últimos desastres estalando os dedos e mudando as pessoas no topo sem o consentimento do povo britânico”, argumentou o líder do Partido Trabalhista, acrescentando que os conservadores não “têm um mandato para colocar o país sob outro experimento”.
“O público britânico merece ter uma palavra sobre o futuro do país. Eles devem ter uma chance para comparar o caos dos tories com os planos dos trabalhistas que tentam acabar com a sua desordem”, sinalizou Keir Starmer, que declarou que o Reino Unido deve ter um “novo começo”.
Os Liberais Democratas e os Verdes juntaram-se a estes apelos, assim como a primeira-ministra escocesa, Nicola Sturgeon. “Devemos ter já eleições gerais”, defendeu. No entanto, esta realidade está longe de acontecer — e os conservadores preparam-se para escolher um novo (ou renovado) líder.