A 24 de janeiro, 140 inspetores da Polícia Judiciária fizeram buscas na Madeira e em vários pontos do continente. Foram detidas três pessoas, que só saíram em liberdade 21 dias depois, com o juiz de instrução a determinar que não existem quaisquer indícios da prática dos crimes de corrupção ativa e passiva, prevaricação, abuso de poder e tráfico de influência apontados pelo Ministério Público.
As provas trazidas pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público não foram entendidas da mesma forma pelo juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, as divergências tornaram-se evidentes esta semana e trouxeram para o espaço de debate e para a esfera política a discussão sobre o funcionamento da Justiça e das investigações. As questões são várias e há ainda poucas respostas: poderia o Ministério Público ter conduzido a investigação de outra forma? Poderia o juiz de instrução ter libertado os três arguidos mais cedo? Ficará agora a investigação comprometida? Pode este caso servir para repensar o funcionamento desta fase processual?
Há ainda outra questão que se coloca, uma vez que está em causa um processo também político, já que este caso da Madeira levou à demissão de Miguel Albuquerque e de Pedro Calado. “Temos de compreender que as funções que os tribunais e o Ministério Público exercem têm interferência, claro, na sociedade”, admite ao Observador o representante sindical dos magistrados do Ministério Público, Adão Carvalho.
“Existir uma investigação criminal não implica que alguém se demita de um cargo político. Basta existir uma denúncia. Se for uma denúncia, com a identificação de uma pessoa concreta como suspeita, essa investigação tem de ocorrer sempre. O Ministério Público não pode agarrar na denúncia e deitá-la para o caixote de lixo. Agora, o Ministério Público não pode impedir que a avaliação política seja efetuada e que, em função de várias circunstâncias, quem exerce cargos políticos entenda tomar determinada posição“, acrescenta.
A investigação e a decisão do juiz de instrução. “Uma divergência tão grande não é comum”
Ainda os três arguidos – Pedro Calado, antigo presidente da Câmara do Funchal, Avelino Farinha, empresário e administrador do Grupo AFA, e Custódio Correia, empresário do Grupo Socicorreia – não tinham começado a ser ouvidos, no dia 30 de janeiro, quando o diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, marcou uma conferência de imprensa para esclarecer que ninguém, incluindo nenhum dos arguidos, tinha sido informado da realização de buscas no dia 24 de janeiro e para justificar a megaoperação montada para aquele efeito.
Os inspetores apreenderam mais de uma tonelada de material digital, que foi transportado para a sede da PJ, em Lisboa. “Tivemos de trabalhar toda a noite para que o Ministério Público tivesse acesso [à informação]”, disse nessa conferência, classificando a operação como “inédita”. Mas a 15 de fevereiro, esta quinta-feira, Luís Neves admitiu que a decisão do juiz de instrução não era a que esperava: “Estamos preocupados, naturalmente, face à operação que desencadeámos, face ao que era expectável. As decisões dos tribunais são para ser respeitadas, sendo certo que não haverá aqui nenhuma decisão transitada em julgado”.
Se, por um lado, o Ministério Público pediu a prisão preventiva para os três arguidos, por outro lado, o juiz de instrução disse não ter encontrado indícios da prática de qualquer crime. Uma decisão que, para o diretor nacional da PJ deixou preocupação. Segundo Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, “não é comum existir uma divergência tão grande”. “Não vou negar, é estranho haver uma divergência tão grande. Não é normal e significa que algo não está bem e alguém não fez uma valoração adequada”, adianta ao Observador, acrescentando que, em sede de recurso, a decisão poderá mudar.
“É evidentemente que, quando as decisões são totalmente díspares, isso deve levar, quer o juiz, quer os procuradores a refletir sobre estas coisas”, explica. E aqui a reflexão deve passar por dois pontos, refere Adão Carvalho. Primeiro, a utilização de recursos, sobretudo informáticos, que permitam, ainda na fase de investigação, acelerar os processos: “O suporte informático, a inteligência artificial, recursos que permitam, no fundo, uma análise mais célebre de elementos e com maior rigor e eficácia, são essenciais para a investigação”.
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Depois, repensar a própria organização do tribunal de instrução: “Há uma questão na organização no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, que deve ser refletida. O juiz que autoriza uma busca, ou que acompanha o processo não é aquele que vai fazer o interrogatório”. Neste caso, o juiz que estiver de turno é que ficará responsável pelo interrogatório e, para o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, deveria aproveitar-se “o conhecimento que um juiz tem do processo”. “Não é uma questão de alteração legislativa, só de organização interna.”
21 dias detidos, um novo recorde para conhecer as medidas de coação. “Banalizou-se a figura da detenção”, diz advogado
Apesar do elevado número de dias que os três arguidos deste processo ficaram privados de liberdade, este caso não é único. Aliás, um processo muito recente, e que deu origem às eleições legislativas antecipadas, marcadas para o próximo dia 10 de março, é um desses exemplos. Na Operação Influencer, os cinco arguidos – Diogo Lacerda Machado, Vítor Escária, Afonso Salema, Rui Neves e Nuno Mascarenhas – foram detidos a 7 de novembro e libertados a 13 de novembro – sete dias depois.
E também na Operação Influencer, o juiz de instrução Nuno Dias Costa teve um entendimento diferente daquele que foi defendido pelo Ministério Público e acabou mesmo por considerar que não existiam indícios dos crimes de corrupção ativa e passiva e de prevaricação. O juiz de instrução manteve apenas os crimes de tráfico de influência e de oferta indevida de vantagem, deixando de fora Nuno Mascarenhas, antigo presidente da Câmara de Sines, por considerar não existirem provas para a indiciação por qualquer crime. Para Nuno Mascarenhas, o Ministério Público tinha pedido a suspensão do mandato, a proibição de contacto com a autarquia e a proibição de contactos com os restantes arguidos, mas nenhuma destas medidas acabou por ser aplicada.
Mas há mais: a Operação Picoas resultou também na detenção de quatro arguidos, em julho do ano passado, que estiveram privados de liberdade durante uma semana. Neste caso, em que o MP apontou suspeitas de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais, o juiz de instrução Carlos Alexandre – que está agora no Tribunal da Relação de Lisboa – determinou prisão domiciliária sem vigilância eletrónica para Armando Pereira e Hernâni Antunes e fixou uma caução para que Jéssica Antunes e Álvaro Loureiro saíssem em liberdade — cauções de meio milhão e de 250 mil euros. E aqui, o Ministério Público pedia também penas mais gravosas, incluindo a prisão preventiva para o advogado Hernâni Antunes. Aliás, o MP pediu uma caução de 10 milhões de euros para Armando Pereira, o juiz de instrução Carlos Alexandre recusou, mas numa das revisões das medidas feita em outubro do ano passado, o Tribunal Central de Instrução Criminal decidiu alterar as medidas e o co-fundador da Altice pagou 10 milhões de euros para ficar em liberdade.
Estes três casos – Operação Picoas, Operação Influencer e agora o processo da Madeira – aconteceram em menos de um ano. Em todos foi ultrapassado o limite estabelecido pelo artigo 141 do Código do Processo Penal, que é muito claro: “O arguido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam”.
O caso do processo da Madeira deu origem a um novo recorde – 21 dias privados de liberdade –, com os requerimentos dos advogados para libertação dos arguidos durante os interrogatórios a serem rejeitados pelo juiz de instrução. E ficou também a saber-se esta sexta-feira, através de um comunicado da Procuradoria-Geral da República, que as três procuradoras do processo “procuraram sensibilizar, por múltiplas vezes e pelos meios ao seu alcance, o magistrado judicial que as conduziu, para a incomum demora registada e para a necessidade de lhes imprimir mais celeridade, tendo inclusivamente dirigido, logo no dia 1 de fevereiro de 2024, exposição ao Conselho Superior da Magistratura, enquanto órgão de gestão e disciplina da magistratura judicial”. A PGR sublinhou as críticas ao juiz de instrução, dizendo ainda que “não pode deixar de lamentar o longo período de tempo decorrido desde as detenções até à prolação” do despacho.
Para já, a defesa de Avelino Farinha, Pedro Calado e Custódio Correia não anunciaram qualquer reação a nível judicial relativamente aos 21 dias de detenção, mas o caso tem sido discutido publicamente. Ao Observador, o advogado Rogério Alves considera que se “banalizou a figura da detenção” e explica que, com a complexidade dos processos, concretamente daqueles que envolvem corrupção, o tempo dos interrogatórios começou a ser cada vez mais alargado, motivado pelo número de pessoas que é necessário ouvir e pelo elevado volume de provas que têm de ser analisadas.
“No espírito do legislador, o que se pretende é que em 48 horas fique definida a situação da pessoa – ou fica presa ou é posta em liberdade”, refere. No entanto, não é isso que tem acontecido e o advogado recorda uma decisão do Tribunal Constitucional, que se pronunciou sobre um caso em que um arguido ficou detido durante mais de 48 horas. “O Tribunal Constitucional considerou que isso não violava a Constituição da República Portuguesa, mas estávamos a falar de uma diferença de poucas horas”.
“Começou a criar-se uma doutrina, em que se considerou que o interrogatório não tem de acabar em 48 horas, mas sim começar em 48 horas. Mais tarde, agravou-se o pensamento, dizendo que nem precisa de começar, basta apenas que os arguidos sejam levados à presença de um juiz para identificação. Mas a lei não diz nada disso, são doutrinas que se inventam para justificar a violação da lei e atingiu-se este cúmulo”, explica Rogério Alves.
Para este advogado, “a solução é criar estruturas”, já que “a regra é a liberdade e não a prisão”, mesmo admitindo que “por mais meios que existam, com processos tão complexos, torna-se muito difícil resolver tudo em 48 horas”. Estas estruturas podem passar, por exemplo, defende Rogério Alves, “colocar mais do que um juiz de instrução a ouvir as pessoas”.
Também do lado do Ministério Público é sublinhado que o interrogatório deve ser o mais célere possível, sublinhando que a decisão cabe sempre ao juiz de instrução. “O juiz é que tem a direção do processo e não deve fazer com que um ato desta natureza se arraste para além daquilo que é razoável e, portanto, não deve estender esta fase”, refere Adão Carvalho, admitindo que um juiz pode sempre determinar a libertação dos arguidos, continuando, ainda assim, a fazer os interrogatórios, caso não se verifiquem logo os indícios dos crimes em causa.
“Poderá sempre continuar os interrogatórios e proferir a decisão com, ou a totalidade, ou alguns dos arguidos em liberdade”, acrescenta o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Um destes exemplos é, aliás, o que aconteceu durante os interrogatórios da Operação Pretoriano, no Porto, em que o juiz de instrução Pedro Miguel Vieira determinou a libertação de seis dos arguidos, mantendo outros três detidos até conhecerem as medidas de coação.