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[esta entrevista foi originalmente publicada a 13 de outubro de 2021, atualizada após a morte de Luís Costa, DJ Magazino, a 9 de dezembro de 2021]
Luís Costa, conhecido no mundo da música eletrónica e das pistas de dança como Magazino, chegou ao Jardim de Santos sozinho, naquela segunda-feira à tarde. Era ali o ponto de encontro combinado para uma entrevista com o Observador, a propósito do livro que publicava então com a jornalista Ana Ventura, intitulado Ao Vivo.
Magazino, que era há pelo menos duas décadas uma das figuras principais da música eletrónica portuguesa menos pop, menos “comercial” e radiofónica, mais desafiante nas suas variantes house e techno — com atuações regulares como DJ em grandes clubes e festivais nacionais e internacionais —, vinha do IPO de Lisboa, onde começara nesse dia mais um ciclo de quimioterapia, o “13º ou 14º” desde que lhe fora diagnosticada leucemia, em dezembro de 2019.
Durante a entrevista, Luís, também sócio da editora e promotora de festas de música eletrónica Bloop, explicaria: ir para os tratamentos sozinhos e regressar sozinho era uma espécie de regra não escrita do “código de honra” dos doentes do IPO, que lutam contra diferentes estirpes do cancro. Não se trata de heroísmo nem de demonstração de valentia. É, isso sim, uma espécie de combustível para a esperança, um desafio que, sempre que cumprido, trazia a Magazino uma confiança acrescida na sua autonomia e o reforço da crença de que seria capaz de recuperar da doença. Acabou por morrer a 9 de dezembro de 2021, com 44 anos.
Resistiu dois anos, comoveu o país mas a leucemia foi implacável: morreu o DJ português Magazino
A entrevista acontecia num momento em que os prognósticos clínicos para a sua evolução não eram, como confessava, “animadores”: para sobreviver, precisava de um transplante nos próximos meses mas só o poderia fazer se a percentagem de células cancerígenas que tem no sangue diminuir drasticamente. O novo ciclo de quimioterapia seria mais uma tentativa e “Magaz”, como também era conhecido, não perdia a esperança: “Hoje comecei a fazer quimioterapia, olhei para aquele saco que estava a conta-gotas a entrar no meu corpo e pensei: esta quimio é que me vai salvar, é desta vez; das outras vezes não me salvou e só me tem rebentado o corpo, mas acredito na intenção que se põe nas coisas”.
Ao longo dos quase dois anos de luta contra a leucemia, Magazino foi partilhando através das redes sociais momentos da sua vida e manifestações reiteradas de confiança na recuperação. Mas não apenas: foi também contrariando todos os prognósticos clínicos que sobre ele foram feitos, resistindo quando os médicos não esperavam que resistisse.
Um dos exemplos mais forte de resistência aconteceu quando foi infetado com o novo coronavírus, num surto no IPO no último verão. Ficou gravemente doente, passou mais de 30 dias em coma, mas Luís conseguiu recuperar da Covid-19 e do coma. No livro, conta que um médico disse-lhe mais tarde que “tinha batido à porta da morte, tinha entrado e tinha fugido pela janela”. Outro usou uma formulação distinta: disse-lhe que “já estava na cova” mas que se tinha assustado “com a areia a bater no corpo”.
Na altura da entrevista ao Observador, a esperança passava por continuar a contrariar os prognósticos. E agarrar-se à crença de que os tratamentos teriam efeito, não desistindo e somando vitórias pelo caminho. Teve uma outra a 16 de outubro, quando voltou a passar discos numa festa da Bloop na Piscina Olímpica do Restelo e que contou com Cruz (DJ, amigo e parceiro de editora de Magazino) e dois históricos da música de dança em Portugal, Rui Vargas (que assinou o prefácio do livro) e DJ Vibe.
O livro, Ao Vivo, não é a história de uma luta contra uma doença. Embora uma das secções (a última) esteja dedicada às memórias de internamentos e tratamentos — percorre, na verdade, a vida social, clínica, física e espiritual de Magazino desde que foi diagnosticado e começou a ser tratado —, antes disso Ao Vivo leva o leitor numa viagem pela vida do DJ.
Ficamos a saber quase tudo sobre o seu crescimento, a sua aproximação à música e o seu início e afirmação como DJ. Até os detalhes mais íntimos e pessoais: como cresceu, que relação teve com os familiares ao longo do tempo, que relações amorosas teve, que drogas consumiu e quais as histórias mais recambolescas e surpreendentes de uma vida de viagens e digressões.
Ao contrário da maior parte das biografias autorizadas e autobiografias, esta não é uma história de vida higienizada. Há detalhes tão íntimos e tão pessoais, contados num tom absolutamente coloquial e oral (com avanços e recuos entre datas, memórias, personagens secundárias e terciárias), que o leitor sente-se quase desconfortável, surpreendendo-se em alguns casos por estar a par daquela informação ou daquele detalhe. Ao Vivo é, assim, uma história não embelezada nem maquilhada de Magazino.
Também presente na entrevista, Ana Ventura, que mergulhou profundamente na vida e nas memórias de Magazino para o ajudar a contar aos leitores a sua história — num trabalho feito a quatro mãos —, confessava ao Observador: “Cada vez que eu tentava colocar alguma poesia era ele que me dizia: não, não. Eu dizia-lhe: lá estás tu a dar cabo dos meus violinos. Eu a querer pôr as coisas mais poéticas e ele ‘mais cor-de-rosa? Não’. O que está ali é o que ele queria que estivesse, da forma que ele queria”.
A ideia era que o livro não parecesse “uma longa entrevista”, explicavam, tendo sido necessário um esforço para que Magazino se soltasse e falasse como fala diariamente durante as conversas com Ana Ventura. Só aí se encontrou o tom certo para avançar. Outra das ideias (materializada) passava por incluir no livro alguns dos “posts” de Magazino nas redes sociais, porque “as pessoas foram começando a acompanhar aquilo que ele estava a passar”, porque “fazem parte desta história” e porque geraram até movimentos de doação de medula óssea e sangue.
A génese da ideia do livro até pertence, na verdade, a uma terceira pessoa: o radialista Rui Estêvão. Magazino não demorou muito tempo a ser convencido: um dia ou dois depois estava a enviar uma mensagem a Ana Ventura, perguntando-lhe se queria juntar-se a ele nesta empreitada. Assim foi. Juntos, tomaram decisões sobre o que deveria constar ou não do livro. Juntos, decidiram que o final seria este: “Não estou salvo, mas sei que me vou salvar”.
Seria também sentado à mesa com Ana Ventura e o Observador que Luís Costa, Magazino de nome artístico, recordaria as peripécias de uma longa carreira de DJ: dos after-hours no Paradise Garage com direito a “espumante com viagra” até a uma atuação num esconderijo da organização separatista ETA, em Bilbau. Magazino deixava também um alerta: a falta de enfermeiros no IPO de Lisboa, que deixa doentes de cancro com os tratamentos (inadiáveis) adiados.
“Hoje pensei: esta quimio é que me vai salvar, é desta vez”
Antes de irmos ao livro e ao motivo pelo qual é publicado, queria perguntar-lhe: há uma semana colocou na sua conta de Instagram uma informação de uma médica que lhe disse “Luís, a doença está a ficar descontrolada”. Clinicamente, em que fase está?
Comecei exatamente hoje uma uma quimioterapia mais focada. A doença está descontrolada porque os meus glóbulos brancos dispararam. Só pude começar agora uma “quimio” mais focada na diminuição dos glóbulos brancos porque até agora estava com uma infeção.
Estive sem fazer quimioterapia durante três semanas porque com uma infeção corporal como a que tinha não podia fazer as sessões. Estando com as defesas em baixo, a quimioterapia passa a poder ser mortífera. Tem de se curar primeiro estas infeções. Esta que tive não está completamente debelada mas está quase. Vamos ver se já é tarde ou não, mas confio que não seja tarde.
É mais um ciclo de muitos ciclos.
Já lhes perdi a conta. Sei que já foram mais de dez, não sei se foram 13 ou 14…
No livro a última contabilização que aparece é: “até meados de 2021, nove ciclos de quimioterapia”.
Já foi, já foi… já foram mais uns quantos.
Neste momento e em termos de prognósticos, o que lhe dizem?
Os prognósticos são muito pouco animadores, sinceramente. Tenho um dador compatível mas não consigo fazer um transplante de medula porque tenho o cancro muito ativo em mim. Tenho muitas células cancerígenas, demasiadas. Tenho de as reduzir para poder fazer um transplante em segurança e neste momento estou com 40% de células cancerígenas, que é muito acima… o transplante só é feito em segurança abaixo de 5% de células cancerígenas. Já estive nos 20%, nos 17%, nos 7%, nos 19%, agora estou em 40% — que é muito.
A função desta quimioterapia, que é muito mais agressiva, é baixar de uma forma drástica essa percentagem de células cancerígenas que tenho no sangue. Sem transplante não sobrevivo de maneira nenhuma, nem duro muitos meses, mas também não posso fazer transplante nesta condição em que o meu corpo está porque é um passo para o precipício. Houve uma reunião entre a unidade de transplantes de medula do IPO e as minhas médicas e todas as nove ou dez pessoas votaram para não fazer o transplante porque isso seria a morte. O meu corpo tem tantas células cancerígenas que a medula do dador em confronto com a minha ia provocar a minha morte. O meu corpo iria rejeitar.
Mas continua a lutar e a acreditar na recuperação. No livro escreve: “Ao falar das coisas, vou ajudar outras pessoas de certeza. Vai haver quem já tenha passado ou esteja a passar por isto, pessoas que se vão identificar com a minha experiência. Vou dar uma mensagem de esperança”. O livro é feito para isso? Quando decidiu que ia contar a sua história, que inclui esta luta contra a doença, o que lhe alimentava mais a vontade?
Sabia que ao partilhar a minha história estaria a ajudar muita gente — e comecei a sentir isso no IPO, primeiro. De cada vez que fazia um post nas redes sociais, via que os pais de crianças que estão lá internadas na pediatria vinham ter comigo ao jardim, agradeciam-me pela força que lhes dava. Comecei a perceber ali no IPO que de facto passava uma mensagem de esperança, positiva.
Também comecei a receber centenas de mensagens pela internet. Ainda tenho mais de 3.000 para ler só no Instagram. Não consigo responder a tudo, gostava mas não tenho conseguido.
Foi isso que o fez querer partilhar mais detalhes sobre toda a sua história, a sua vida, a sua luta contra o cancro?
Sentir que estou a ajudar essas pessoas também me dá motivação a mim. É uma relação win-win. Vou passando a verdade da minha história, de uma forma se calhar um bocado sórdida pelos pormenores mas falo disso de uma maneira positiva porque sinto que tem tudo a ver com a intenção que se põe nas coisas. Por exemplo, hoje comecei a fazer quimioterapia, olhei para aquele saco que estava a conta-gotas a entrar no meu corpo e pensei: esta quimio é que me vai salvar, é desta vez; das outras vezes não me salvou e só me tem rebentado o corpo, mas acredito na intenção que se põe nas coisas.
Acredito que posso ajudar outras pessoas que estão a passar pelo mesmo, que já passaram ou então que têm familiares ou amigos a quem isto aconteceu. Ou até pessoas que têm problemas que ao pé deste são ínfimos. Há quem me diga: às vezes fico chateado porque os meus filhos tiveram negativa na escola ou porque fizeram alguma birra, leio-te e fico a pensar ‘como é possível ter este tipo de sentimento’? Além disso, decidi doar as receitas a duas instituições que me ajudam: a Associação de Leucemia e a Heal Me. As receitas não hão-de ser milhões de euros mas é o que for.
Há aqui detalhes que poderão ser mais sensíveis. Até, por exemplo, sobre relações amorosas. Houve algumas partes do livro em que tenha pensado: será que deveria manter isto, manter aquilo?
Houve, sim. A Ana [Ventura] sugeriu-me até duas ou três partes que concordei em pôr de lado, acabaram por não entrar. Tenho amigos que estão com algum receio sobre o que vão encontrar no livro. O que lhes digo é que isto são as minhas memórias, não são as nossas memórias, é aquilo de que me lembro. Houve muitas coisas que sei que vão ser um bocadinho polémicas mas senti que não tinha de estar a esconder. Sem pôr em causa ninguém, não escondo. Falei com a Ana de uma forma genuína, fui-lhe passando textos e falando sem barreiras, sem complexos, sem me sujeitar a opiniões futuras.
“Depois do coma, pensei: se sobrevivi a isto…”
Há muitas histórias da sua vida e da vida de DJ de que quererei falar mais à frente. Mas começando pela parte final do livro, por esta luta contra o cancro: uma das primeiras coisas que escreve é que começou por preferir numa primeira fase ir para o Hospital dos Capuchos a ir para o IPO, porque o IPO tem “um estigma muito pesado” e o Luís estava “completamente em negação”. Queria perguntar-lhe se por um lado conseguiu pacificar-se com essa decisão e esse arrependimento e por outro lado se essa reação instintiva de achar o IPO “muito pesado” é comum, do que ouve de outros doentes.
Ainda hoje falei sobre isso com a minha médica, a doutora Francesca. Voltei a dizer que se soubesse o que sei hoje tinha logo optado pelo IPO e não tinha ido para o Hospital dos Capuchos. Não me arrependo porque nos Capuchos também me trataram bem, mas a expertise relativamente ao cancro é muito maior no IPO. Tenho conhecido muitas pessoas lá [no IPO] que têm passado exatamente pelo mesmo: não optam pelo IPO porque o nome IPO é muito pesado, sugere logo pessoas sem cabelo, crianças a serem tratadas — que é realmente o mais chocante de ver ali. Grande parte dos doentes que ali estão e que convivem comigo diariamente também tomaram a opção de primeiro ir para outro hospital, depois acabam por ir para ali porque a doença vai agravando e acabam por ter de chegar ao IPO.
A grande maioria das pessoas olha para o IPO como um estado paliativo para estar até à morte. Eu próprio pensei isso. Hoje em dia tenho uma ideia completamente diferente e oposta e acho que quem for diagnosticado com cancro o melhor que tem a fazer é dirigir-se ao IPO. Excetuando a Fundação Champalimaud que é muito específica, dedica-se a poucos casos de cancro, o IPO é o melhor em Portugal mesmo estando a viver uma situação crítica, a pior de há muitos anos a esta parte.
Que situação crítica?
Para fazer quimioterapia há duas salas e uma das salas está fechada porque não há enfermeiros. Houve uma série de enfermeiros que se despediram, nem todos os enfermeiros estão habilitados para fazer quimioterapia e há muitos doentes que estão com o tratamento adiado — não pode ser adiado — porque não há enfermeiros para poder administrar a quimioterapia.
Há uma grande crise no IPO. Já percebi que me passam essa informação lá de dentro também porque sabem que eu sou um veículo de informação mediática. Vi isto ser falado na televisão há uma semana e hoje pude testemunhar isso. Há uma sala grande onde vamos fazer tratamento que está fechada porque não há enfermeiros para administrarem a quimioterapia. O IPO infelizmente não é o hospital que pague melhor e há muitos enfermeiros que, apesar de gostarem muito de trabalhar no IPO porque sabem que é uma causa, porque trabalham num hospital social… se recebem uma proposta de trabalho mais vantajosa vão para outros sítios.
E são tratamentos cuja data não pode mesmo ser alterada, correto?
Tem de ser a um dia específico e a uma hora específica. Se não for a essa hora específica, já não faz o efeito que é suposto fazer. Tanto a minha médica como os enfermeiros com quem falei hoje disseram-me que é mesmo a altura mais crítica de que se lembram no IPO. E já estão lá há muitos anos… já percebi que o Estado vai ter de reagir e tomar algumas medidas, mas nunca é de mais falar sobre esse problema que se está a passar no IPO de Lisboa.
Inicialmente foi-lhe diagnosticada uma leucemia crónica, “do péssimo o menos mau” como aparece no livro. Depois a leucemia crónica passou a comportar-se como leucemia aguda. Já percebeu, do que conversou com médicos, se é comum isso acontecer?
Quando cheguei ao IPO de Lisboa, disseram-me: a tua leucemia está em aguda, não está em crónica. Não sei se é muito normal passar de crónica para aguda, não faço ideia, mas quero acreditar que o diagnóstico que me fizeram no Hospital dos Capuchos foi… acredito nas médicas, como é óbvio. Foram competentes para me diagnosticarem isso. Pode ser uma visão ingénua, mas acredito que foi de facto a leucemia que galopou em mim e passou de crónica a aguda.
O livro está muito cheio de pessoas que são nomeadas, tratadas pelo nome. E de profissionais de saúde do IPO ou do Hospital de Santa Maria que são identificados, a que se refere de uma forma carinhosa, grata. A forma como encarou os médicos, os enfermeiros, as pessoas que tratavam de si, foi sempre a mesma ou numa fase de revolta e negação a capacidade de agradecer e reconhecer esse trabalho não é igual?
A primeira fase foi a falta de revolta, obviamente. Foi a fase do Hospital dos Capuchos. Não aceitava a doença, como é normal. Mas quando fui internado no IPO em junho do ano passado, tudo começou a mudar. O IPO também é especial porque não trata só a doença. Existem outras personagens fundamentais. Se pudesse doar uma parte dos lucros do meu livro doava a uma instituição que defendesse os auxiliares de ação médica. Porque os enfermeiros e médicos tratam da saúde, os auxiliares tratam da pessoa. São eles que passam a maior parte do tempo connosco quando estamos internados.
Comecei a perceber que ninguém ali trata as pessoas pelos nomes, só por doutora, enfermeira, auxiliar. Comecei a perceber que ao chamar a enfermeira por Júlia, Joana ou Raquel, ou as auxiliares por Iara, Camarão, Cláudia, Isaura ou Sílvia, as pessoas sentem-se especiais. É normal que tivessem um carinho especial por mim porque tratava-as bem, elogiava-as e gostava sempre de saber o que faziam à parte daquilo, que hobbies tinham, de onde vinham, porque estavam ali no IPO.
Falava de um apreço especial pelos auxiliares. Quer elaborar?
Nós acordamos às 7h, eles levantam os estores e são os primeiros a perceber se estamos bem ou não, se queremos ir ao banho ou se não queremos. Depois apertam connosco: tens de ir ao banho! Quando nos dão banho, são eles que veem se temos alguma nódoa negra nas costas ou nas pernas, se temos alguma ferida. Os auxiliares são fundamentais e são o primeiro contacto do doente. E não é só isso: o médico vai lá, está lá cinco ou dez minutos a avaliar os parâmetros todos das análises diárias e faz uma readministração dos fármacos. Os enfermeiros aplicam. Mas depois quem passa connosco muito tempo são os auxiliares.
No caso de algumas pessoas aqui do IPO que conheço muito bem, às vezes ficavam comigo à conversa até às três da manhã. E não falam de “ai coitado, estás doente”, falam da vida delas, dos maridos, dos filhos, e eu falo da minha vida, das viagens que fazia, das parvoíces que fazia. Ficamos ali a rir até às 3h ou às 4h, ou vemos um filme na televisão. Se os médicos e enfermeiros tratam a doença, os auxiliares tratam a pessoa.
Há outras personagens que aparecem no livro, pessoas cujas histórias são mais dolorosas: pessoas que estão na ala consigo, os outros doentes com quem convivia e que em muitos casos acabaram por falecer. Como é que se consegue encontrar força para acreditar que se vai recuperar quando se vê tantas pessoas ao lado a não conseguirem?
É o mais doloroso, sem dúvida. À exceção de uma pessoa com quem estive três dias internado e que agora fez um transplante, o Sérgio, todas as pessoas com quem estive internado morreram. Não sobrou uma, morreram todas. Quando digo todas, é todas as que conheci e com quem fiz alguma amizade. É muito difícil. E houve um dia crítico que tive, quando morreram duas pessoas, o Djaló e o Bruno, com quem privava muito. Eram uma grande esperança para mim, iam um bocadinho mais à frente no tratamento e na cura e morreram os dois no mesmo dia. Passei um dia horrível no IPO, ainda fui ao velório de um deles nesse dia e essa semana foi terrível para mim.
Uma das minhas médicas, a doutora Joana Desterro, falou comigo depois disso. Explicou-me que ali só ficamos a conhecer mais os casos das pessoas que morrem porque sabe-se mais facilmente, mais rapidamente. Mas há pessoas que sobrevivem. Agarro-me completamente a isso porque de facto há pessoas que vivem. Tenho conhecimento disso também porque felizmente há muitas pessoas que me enviam mensagens através das redes sociais a contar exemplos da sua vida. Há uma pessoa, a Andreia, que estava bem pior do que eu e sobreviveu, fez um transplante e está bem há três anos. E há muitos outros que me contactam e contam a sua história. Isso dá-me motivação.
O livro inclui um testemunho de uma enfermeira do Hospital Santa Maria que o acompanhou durante os dias em que esteve em coma, depois de ter ficado infetado com o novo coronavírus e gravemente doente com Covid-19. Depois de recuperar, chegou a falar com os médicos sobre os prognósticos que eles tinham para a sua evolução?
Cheguei. Houve enfermeiros e médicos que quando estava nos cuidados intensivos, depois de acordar do coma, foram lá perceber como é que eu estava porque a maior parte deles não acreditava que eu sobrevivesse. Principalmente os médicos. Os enfermeiros não estavam tão a par dos prognósticos mas sobretudo os médicos não acreditavam que eu sobrevivesse. Foram lá falar comigo e disseram-me que eu já estava na cova e comecei a sentir cair areia em cima e acordei, não quis ficar lá. Ou que estava à porta da morte, entrei e saí pela janela.
Esses foram só dois exemplos. Tive muitos médicos — até ficava sensibilizado — que falavam comigo deitado, eu quase sem conseguir falar, acordado do coma passados poucos dias. Diziam-me: epá, como é possível estares aqui de olhos abertos a falar connosco? Isso deu-me muita força. Tinham ligado até para a minha família a dizer para se prepararem porque eu não ia sobreviver. Quando comecei a ouvir esses testemunhos todos de enfermeiros e médicos, pensei: pá, se sobrevivi a isto… a leucemia já não é nada ao pé disto. É mentira [sorri], claro que é muito pesado, mas isso faz-me acreditar. Há uma fotografia que até decidi incluir no livro, estava um bocado na dúvida. Foi uma fotografia tirada dois ou três dias depois de acordar do coma. É uma fotografia a que me agarro muitas vezes quando estou em baixo: vou ao telefone, vejo e penso ‘se já estive aqui…’.
Há um excerto que pode ser útil a familiares ou amigos de pessoas que lutam contra o cancro. Escreve no livro: “Aos doentes de leucemia o pior que nos pode acontecer é sentirmo-nos um peso, para a nossa família ou para os nossos amigos”. E ainda: “Quando vou para o IPO sozinho sinto-me bem. Posso estar com muitas dores mas faço sempre o esforço. Fazer as minhas tarefas sozinho é o que me mantém vivo, dá-me motivação e mantém-me vivo”. Imagino que quem está próximo e a tentar apoiar não saiba exatamente o que deve fazer, o que deve dizer, que postura deve adotar. Há algumas coisas que as pessoas possam ou devam fazer?
Esse código de honra foi-me passado por outros doentes do IPO, já mais velhos. Quando me viam a chegar de cadeira de rodas, quando não conseguia andar, era uma coisa. Depois começaram a ver-me a andar e a chegar lá com um amigo ou com o meu irmão ou com o meu pai. Perguntavam-me: estás a vir para aqui com eles porquê, não consegues andar? Eu dizia que conseguia, eles perguntavam-me se não me sentia confiante para vir sozinho e passar ali o dia. Agora já sou eu que vou passando esse código a doentes mais recentes, que foram diagnosticados há menos tempo.
Se te sentires capaz de ir sozinho, fazer o tratamento e ir embora sozinho, vais chegar a casa com uma sensação maior de autonomia e isso vai-te dar mais motivação, vai ser importante para ti. A mensagem vai passando e eu próprio já a passo a doentes mais recentes. Tive de explicar à minha família e aos meus amigos: agradeço imenso a vossa ajuda, há outras coisas que podem fazer mas se conseguir ir sozinho… sou sincero: muitas vezes vou-me a arrastar, chego lá num Uber ou num Bolt a arrastar-me para chegar ao serviço de sangue. Depois levo uma ou duas transfusões de sangue e saio de lá a voar, é isso que acontece.
“Atestar o depósito”, como diz no livro.
Exatamente, é atestar o depósito. Entro lá a arrastar-me e saio de lá a voar. É muito importante sentirmos alguma autonomia. Há outras coisas que os meus amigos podem fazer para me ajudar. Por exemplo, hoje passei o dia todo no IPO, fui sozinho, regressei sozinho, agora estou aqui mas a seguir vou para casa e duas amigas minhas vão lá fazer-me o jantar. Adoro cozinhar mas já sabia que hoje ia estar muito cansado e quero relaxar. É uma outra forma de me ajudarem.
No final do livro, que é esperançoso, escreve: “A nível musical sinto que mudei bastante. A música vai ser mais épica, mais emotiva, mais rápida, um reflexo desta viagem que tenho vindo a fazer”. Tem passado muito tempo a pensar: que música é que vou querer passar e que faz sentido passar quando recuperar?
Este sábado vai ser uma festa muito especial porque estamos fechados há quase um ano e meio — e eu já não tocava há quase dois anos. Há muita gente que vai sair pela primeira vez e está muito expectante. Vamos ter muita gente e vai ser uma festa de emoções fortes porque vou ter colegas e grandes amigos a tocarem comigo na cabine, vamos ter gente de norte a sul do país e até de fora, tenho um amigo que vem da Arábia de propósito. Um outro, o chef Miguel Rocha Vieira, vem de propósito de Budapeste cozinhar para mim. Tem uma estrela Michelin, portanto é mesmo comida de excelência.
Sinto que vou tocar música mais épica, mais marcante, mais contundente. Ser mais rápida tem a ver com ter estado ligado a máquinas muito tempo. Via sempre o bater do coração. Os colegas que estavam comigo nos cuidados intensivos [do Santa Maria] tinham sempre 80 ou 90 [batimentos], eu estava sempre nos 140, 150, 130. Em parte era porque tentava fazer fisioterapia sozinho, tinha o coração muito mais a disparar. Para dar um exemplo concreto e específico da minha área: tocava antes discos a 122, 125 bpm [batimentos por minuto] e agora não me vejo a tocar abaixo dos 128 ou 132, que é, parecendo que não, uma grande diferença. Obriga a dançar mais rápido. Nos cuidados intensivos via sempre a máquina do coração e quando chegava aos 158 bpm aquilo disparava, tinha de vir o enfermeiro dar-me uma injeção para me colocar o coração uns batimentos abaixo. Mas acho que os batimentos mais rápidos vêm daí porque cada vez que sentia a máquina a acelerar excitava-me, sentia que o corpo estava a renascer.
Do viagra no espumante do Paradise Garage a uma atuação num esconderijo da ETA
No livro fala também da sua vida e da vida de DJ. E aborda o consumo de drogas, nomeadamente LSD e ecstasy. Discutiram muito se incluiriam essa parte ou não? Pergunto porque há uma associação estereotipada entre o tipo de música que faz e o consumo de drogas. Pensou nisso com a Ana Ventura, discutiram se levaria as pessoas a associarem ainda mais uma coisa à outra?
Eu conheço colegas meus que nunca tomaram drogas. Sinceramente: conheço alguns, mas muito poucos [ri-se].
[Ana Ventura nota: “Se calhar aquilo que é pouco expectável é que alguém que trabalhe na noite durante tanto tempo passe tantos anos sem consumir nada. Porém, quando veio a proposta de fazermos este livro ele também me disse claramente que queria contar as coisas que tinha vivido e passado”]
Há algum fundo de verdade na associação, portanto? Isto não significa que toda a gente que aprecie e dance este tipo de música tome drogas, obviamente.
É normal. Quando conheci o ecstasy, em 1995, aquilo foi um autêntico life-changing para mim. Já tocava e tinha pistas cheias à minha frente, gostava muito mas não entendia como é que as pessoas que estavam a dançar chegavam a um estado superior de êxtase, de felicidade. Até que chegou um ponto, ao fim de alguns meses, em que pensei: tenho de experimentar isto, tenho de perceber o que estou a provocar noutras pessoas.
No dia em que experimentei foi incrível, levou-me a um outro patamar sensorial. Vejo a minha experiência com o ecstasy de uma forma muito, muito positiva, mas cada um sabe de si. Em 1995 comecei, fiz durante dois anos e depois deixei de fazer porque tive uma depressão muito grande. O ecstasy eleva-te muito lá acima, deixa-te mesmo num estado galáctico, mas no dia a seguir na ressaca não vens ao zero, vens ao negativo, vens mesmo à cova. Não consegues fazer muito tempo seguido porque quando fazes muitas vezes seguidas deixa-te num estado de tristeza e depressão.
Conta aliás no livro que deixou de tomar quando percebeu que estava a ter em si o efeito contrário ao suposto.
Exatamente. Tomava e, em vez de ficar em êxtase, sentava-me e chorava. Decidi parar de tomar numa noite em que vi os meus amigos a dançar todos juntos numa rave e eu estava sentado encostado a uma parede a chorar. Percebi que não dava mais. Estive depois 18 anos sem consumir, tranquilamente. Depois chegou a uma altura em que pensei: passaram-se 18 anos, é como se fosse uma pena, já a cumpri e agora deixa-me voltar a experimentar. Fi-lo e foi novamente incrível. Voltei a fazer quando o rei faz anos, uma ou duas vezes ao ano, quando sinto que estou num clima propício e com amigos chegados — agora, por razões óbvias [doença], não se coloca. Mas atinjo um estado que de facto só me acontece com ecstasy, que tem um efeito incrível. Não é que aconselhe a tomar… mas cada um sabe de si.
Quando escreve sobre esse período de depressão, conta episódios de ataques de ansiedade graves que teve. Como é que os encarou na altura? Hoje em dia discute-se mais a saúde mental e começa a haver uma maior consciencialização sobre estas questões, mas na altura talvez fossem encaradas de forma diferente.
Fui para o hospital algumas vezes, duas das quais um bocadinho mais graves. Ninguém me sabia explicar o que era. Até que cheguei a um neurologista que falou comigo. Expliquei-lhe que fazia ecstasy de vez em quando, LSD de vez em quando, que apanhava algumas bebedeiras, nada de especial. Ele fez-me exames e explicou-me o que se passava: disse que os ataques de ansiedade poderiam ser muito derivados do consumo de ecstasy e de, sendo muito novo, já ter muita pressão como DJ. Isso tudo junto provocou ali um olho de furacão que fez com que tivesse uma depressão mesmo muito grande.
Achei curiosa a descrição que faz do que exigia nos contratos de artistas, quando o contratavam para tocar: um par novo de meias amarelas, uma garrafa de tequila Patrón e um abraço do promotor à chegada. Nunca teve aquela coisa de: quero 400 toalhas de linho?
Não, não. A tequila Patrón passo a explicar: é muito boa e muitas vezes chego aos sítios cansado, de madrugada, depois de ter tido uma atuação antes. Muitas vezes chego ao sítio e não estou com o mesmo espírito das pessoas, estou cansado e vejo toda a gente em êxtase, acelerada. Tenho de me colocar no mood da pista? Bebo dois ou três shots de tequila e já está — fico mesmo. As meias amarelas têm a ver com o amarelo ser uma cor de que gosto muito, que simboliza vida, e com dançar muito quando passo discos. Quando as meias são novas têm goma e o pé escorrega muito mais dentro dos sapatos, dos ténis.
O abraço deve-se a uma coisa. Quero que quem me contrata me dê um abraço porque quero que sinta pelo meu abraço que vou dar o meu melhor. Faço questão de lhes dizer isso: independentemente de estarem 100 pessoas, mil pessoas, o que for, vou dar o máximo. Este sábado vou tocar e não estou a 100% nem a 50%, mas acredita que vou dar o meu máximo. O que exijo é que quem está na pista também dê o máximo. Faço-o sempre independentemente de correr melhor ou pior. Lembro-me de momentos no início da minha carreira, a tocar em Penafiel ou em Trás-os-Montes em que chegava lá e dez minutos depois a discoteca ficava vazia, era horrível. Houve erros de casting nos sítios onde ia tocar, no início da minha carreira chegou a acontecer-me. Isso serviu para crescer, como homem e como artista. Ao fim de três ou quatro vezes disso acontecer, pensas: não tenho jeito para isto. Quantas vezes não vim do norte por aí abaixo, de carro, num domingo, a chorar e a ouvir os relatos da bola para ver se me distraía…
A questão sobre se um DJ deve dançar ou não também divide opiniões…
Divide muito. Pessoalmente, não acredito num DJ que não dança. Parece que não está a sentir a música, que não está a vibrar. Eu sempre fui um dançarino, na pista ou na cabine.
Quando começou a passar discos, contou primeiro à sua mãe do que ao seu pai. Temia mais a reação dele?
Muito mais! A minha mãe é mãe galinha, vivia comigo [os pais estavam separados] e já sabia que tinha o gira-discos em casa, que tinha muitos discos. A minha mãe começou a perceber e fui-lhe dizendo. Não temia a reação dela, a do meu pai temia — porque isto foi na altura em que entrei na universidade e só tinha escolhido direito porque o meu pai e o meu irmão eram advogados. Acho que ainda acontece muito hoje em dia: os jovens chegam ao 12º ano e não sabem o que querem seguir, ou pelo menos não têm certezas. Entrei para direito só por arrasto e ao fim de três anos a estudar aquilo percebi que era uma seca, muito teórico e pouco prático. Quando desisti, falei com o meu pai. Aí foi muito complicado.
Mas agora até tem um retrato seu no escritório, a tocar.
É, do “disco-jocker”.
Se não tivesse começado a interessar-se pela música, se por exemplo o seu irmão não lhe tivesse começado por trazer um disco de Dr. Alban depois de uma viagem a Benidorm, acha que teria sido um guarda-redes de primeira divisão no futebol?
É provável porque na altura estava bem lançado. Aliás, da minha equipa do Vitória [de Setúbal] muitos conseguiram singrar, como o Sandro, o Frechaut — que foi internacional — e o Marco Tábuas, que era o outro guarda-redes da nossa equipa. Havia épocas que jogava ele, outras em que jogava eu. Estava também o Carlos Manuel, que depois foi para o Porto. Nessa geração houve muitos jogadores que singraram. Fomos vice-campeões portugueses de júniores, nesse ano foi o Boavista o campeão. Tinha tudo para singrar na bola mas já queria era noite, já desestabilizava muito o balneário — fumava uns cigarros, queria beber copos, incentivava os meus colegas a virem comigo sair sábado à noite com jogo no domingo de manhã. Já era muito desestabilizador. Cheguei a um ponto em que percebi que era melhor desistir.
“O meu trabalho tem a ver com diversão, com noite, com êxtase. Apesar de ter esse lado, sinto que perdi, sobretudo com os amigos, convívio. Os meus amigos trabalham durante a semana e juntam-se ao fim-de-semana”. Há desvantagens até numa profissão de que se gosta muito. Alguma vez chegou a ponderar seriamente: “se calhar isto não justifica”?
Não, nunca ponderei isso. Mas antes de tudo isto, de ter ficado doente, o trabalho estava acima de tudo. Até acima das minhas namoradas. O meu manager ligava-me, por exemplo, e dizia-me: tens aqui um trabalho dia 24 de dezembro, no Algarve. Eu dizia sempre OK a tudo, para trabalho estava sempre disponível. Privilegiava sempre trabalho e depois é que vinham a relação e os amigos.
Se recuperar e poder voltar a tocar discos, aliás, quando recuperar, não vou privilegiar o trabalho, vou colocar em igualdade de circunstâncias o trabalho, as amizades e eventuais relações. Sinto-me muito mais preenchido assim. Prefiro prescindir de uma atuação no dia de Natal — como sempre tive — para passar a estar com a minha família, por exemplo. Quero esse equilíbrio. E isso mudou desde que fiquei doente.
Conta também no livro que o que o fez apaixonar-se por este mundo numa fase inicial não foi tanto a música quanto a noite, “a magia da noite”. Que magia era essa?
Era entrar numa discoteca, um espaço — idealmente escuro — a que só se tem acesso uma ou duas noites por semana e onde se vê pessoas que não se conhece de lado nenhum. Um espaço que, na altura, não tinha segregação. Em 90% festas em que toco hoje também não existe mas começou a ser mais comum. Essa segregação é o quê? É o palco VIP, a garrafa na mesa, o ‘privado’. Isso não havia na altura em que comecei a sair à noite.
Era muito miúdo, estava ali na pista com pessoas de 40 ou 50 anos, com engenheiros, operários, médicos, tudo e mais alguma coisa. Acho que a magia da pista de dança estava aí. Também estava no momento da abertura de pista, depois de umas baladas e uns slows começavam a ver-se umas luzes psicadélicas, o som ficava mais alto, era incrível. Durava uns cinco minutos e ficava vidrado a ver. Mas o que gostava mesmo, mesmo de ver é aquilo de que ainda hoje gosto: ser possível juntar pessoas de diferentes profissões, diferentes origens, diferentes perspetivas. Ainda é a magia que encontro, pelo menos na área de música de dança em que me encontro.
Também se recorda no livro os sete anos em que esteve como residente no Paradise Garage, em Lisboa, responsável pelos after-hours. Houve uma coisa que me intrigou sobre esse período: “Até viagras no espumante apanhei”, escreve. Como assim?
[gargalhadas] Ontem estive com um DJ que na altura ia lá de vez em quando e que me estava a dizer: lembras-te de uma vez alguém ter metido viagras numa garrafa de champagne? Nós não vimos, começaram a servir e tal. Só que isto aconteceu várias vezes! Tenho impressão que o viagra tinha aparecido há relativamente pouco tempo. Era uma brincadeira que alguém tinha, uma brincadeira parva porque às tantas nem me conseguia encostar à mesa [risos].
Aquilo tinha um efeito rápido, bebíamos champagne e percebíamos logo ao fim de meia hora o que tinham posto na garrafa. Era à sorte. Quando íamos beber já sabíamos que vinha ali alguma coisa: ou era um ecstasy, ou um LSD… se começo a ver árvores ou florestas já sei que é LSD, se começo a ficar em êxtase é ecstasy, se começou a ficar com uma ereção é viagra.
A Bloop começa em 2007, o Luís entra no final de 2008. Quando decide editar um disco pela Bloop e juntar-se depois ao projeto [como sócio], quão próxima ou distante estava a ideia que tinha para o futuro da Bloop daquilo em que ela se tornou? O que imaginava que poderia vir a ser, naquela fase, uma editora portuguesa de música eletrónica e uma promotora portuguesa de festas de música eletrónica?
A ideia que tinha na altura concretizou-se. Quando fui convidado para me juntar à sociedade disse ok, juntava-me mas queria que algumas premissas fossem cumpridas. Nomeadamente, fazer festas em sítios inusitados, o que continuamos a fazer, e fora das horas habituais, durante o dia — que é o horário de 90% das nossas festas atualmente. É uma forma de evitarmos ter paraquedistas, pessoal que vai só para beber copos e engatar miúdas, que vão para ali como poderiam ir para outro lado qualquer.
Essas premissas tiveram réplicas noutras promotoras, no modo de outras promotores fazerem as suas festas.
Sim. O que aconteceu foi que tivemos muito mais sucesso do que imaginávamos. Sou franco: fazíamos festas para 80, 90, 100, 150 pessoas e de um momento para o outro começou a crescer até este ponto, em que fazemos festas para mais de mil pessoas. Na altura não esperávamos ter tanto sucesso. Com esse sucesso apareceram uma série de promotoras, não apenas em Lisboa mas no país inteiro, inspiradas naquilo que estávamos a fazer. E já conheci pessoas que se conheceram em festas da Bloop e já casaram, já têm filhos…
É muito giro ver gerações que passam e gerações diferentes, chegar a Vila Real ou Trás-os-Montes e pessoas dizerem-me que já me ouviram ouvido tocar numa festa da Bloop em Lisboa ou no Algarve. Dá para perceber que ao fim de tantos anos deixámos uma marca no público, em promotoras que vieram na nossa sequência e na música, que tem de ser esquisita. É um nicho muito específico [da música de dança] e vamos sempre buscar artistas para a nossa editora e para tocar nas festas que estejam fora do radar, que não sejam artistas muito conhecidos na nossa área porque esses também já cobram muito dinheiro. Preferimos ter artistas fora do radar em que acreditamos e que achamos que vão despontar. Muitos dos artistas que estão na berra vieram há muitos anos a festas da Bloop e depois deram o salto.
Tendo em conta o que a Bloop já cresceu, a ideia para o futuro passa mais por consolidar e manter as linhas gerais ou ainda há possibilidades de crescer?
No nosso core, temos sempre pessoas que vêm às nossas festas. O que queremos neste momento é renovar. O nosso maior desafio para os próximos tempos é renovar os nossos seguidores, a nossa clientela. Estamos a conseguir aos poucos. Se bem que a nossa clientela não é de 17 ou 18 anos, temos pessoal acima dos 25 anos, pessoas a quem outro tipo de música de dança já não diz muito, que não quer ir a esta ou aquela discoteca e prefere ir a uma festa num sítio inusitado, ter uma experiência diferente.
Entre as muitas histórias de viagens para atuações que conta no livro, há uma em particular que é especialmente surpreendente: a ocasião em que tocou num esconderijo da [organização separatista e armada] ETA. Para quem não tiver ainda lido o livro, pode contar esse episódio?
Epá, foi uma coisa incrível. Não sei se não vivia em Espanha na altura, em Barcelona. Do que tenho a certeza é que o meu manager era espanhol naquela fase. Toquei no festival Sonar, em Barcelona, em 2002, e a partir desse momento comecei a ter muitos trabalhos em Espanha. Estava a tocar quase todos os fins-de-semana. Tenho até agora um convite para tocar no festival em 2022, aqui em Lisboa [na primeira edição do Sonar em Portugal] e vou lutar para conseguir lá chegar.
O meu manager dizia-me: tenho um trabalho para tocares aqui ou ali, em Valência, em Marbella, nas Canárias, etc. Um dia tive um trabalho em San Sebastian, numa discoteca, e no dia seguinte em Bilbau, que ficava perto. Ele dizia-me sempre o nome do sítio e da cidade e achei estranho não me dar o nome do sítio em Bilbau. Mas OK. Nesse sábado o promotor foi-me buscar a mim e ao meu agente de carro, porque a distância de San Sebastián a Bilbau não é longa. Achei logo estranhíssimo ele não falar espanhol. Ainda por cima a euskara, que é a língua basca, é quase impossível de entender e falar. Eu vivia em Espanha e não conseguia. Ele preferiu falar em inglês a falar espanhol. Comecei a achar muito estranho. Os espanhóis falam muito mal inglês, mesmo, mas ok, lá falávamos. Mais estranho me pareceu quando chegou ao hotel à noite para nos ir buscar e começámos a ir, a subir uma montanha, uma coisa muito densa e escura.
Sem perceber bem onde estava.
Sempre a perguntar ao meu agente: epá mas tens a certeza que isto é aqui? Onde é que vamos? E ele: é, não te preocupes. Chegámos ao sítio e parecia um bunker debaixo de um prédio, num sítio muito manhoso, no meio de uma selva. Uma garagem para entrar e tal. Abre-se uma porta, mais uma, mais uma… e eu: porra. Até que cheguei lá e percebi. O pessoal por quem passava dizia todo “aupa”, “aupa”. Perguntei ao meu agente e disse-me que era a saudação que faziam no País de Basco. Depois percebi quando vi que tinham uma bandeira do Herri Batasuna [coligação partidária e “braço político” da ETA]. Estava desconfortável, disse ao meu agente mas ele disse para não me preocupar, que não ia acontecer nada e que ia correr bem, que não ia haver problema. Tinham-me visto a tocar no Sónar, adoraram e quiseram que eu fosse lá.
Aquilo encheu, ficou à pinha. Lembro-me que pingava do tecto e que saudavam-se todos com “Aupa”. A dada altura faziam uma saudação independentista todos ao mesmo tempo. Para me soltar, pedi logo: manda vir mas é mais cerveja… para estar mais descontraído. Não estava, porque se fosse apanhado ali pela polícia era complicado. Eles são muito severos quando apanham pessoal a conspirar e eu podia ser visto como conspirador, estava ali a dar música às pessoas. Mas foi uma grande experiência. Quando saí dali e cheguei ao hotel, estava bem com os copos mas lembro-me que pensei: que experiência! Tanto que passado 20 anos ainda me lembro. Aquilo chamava-se “el zulo” porque “el zulo” é um esconderijo dos etarras, diziam uns para os outros “estamos no zulo não sei de onde”. Antigamente escondiam para ali armas e munições.
Há outras histórias no livro, de viagens de barco atribuladas a motoristas que gostavam muito de vodka, passando por um amigo de um familiar que lhe facilitou a entrada nos Estados Unidos com visto de turista (quando ia trabalhar numa digressão, como DJ). Mas essas deixamos para quem comprar o livro, pode ser?
Ok, ok.
Obrigado.
Eu é que agradeço.