António Maia Gonçalves, 52 anos, trabalha há 30 em cuidados intensivos. Durante esse tempo, confrontou-se repetidas vezes com a responsabilidade de decidir, em poucos segundos, se reanimava ou não um doente em paragem cardiorrespiratória. Em novembro, lançou o livro Reanimar? Histórias de bioética em cuidados intensivos, em que relata vários casos concretos que acompanhou ao longo da carreira e se manifesta frontalmente contra a eutanásia.
No mês em que o Parlamento se prepara para discutir quatro projetos de lei (um do Bloco de Esquerda, outro do PS, um dos Verdes e mais um do PAN) que propõem a despenalização da morte assistida, o médico — doutorado em Bioética pela Universidade Católica — explica, em entrevista ao Observador, por que motivos é contra a eutanásia, que considera ser motivada pela vontade “ultra-minoritária de uma dúzia de pessoas que entendem que têm esse direito”.
Não fechando a porta à regulamentação do direito a escolher como e quando morrer, António Maia Gonçalves quer que isso seja feito sem envolver a classe médica. “Tenho dificuldade em entender que o cidadão tenha direito a que o Estado lhe disponibilize um médico para o eutanasiar”, afirma, sublinhando que a solução adequada é o suicídio assistido. “Se se entender que isso é um direito de cidadania fundamental, deve ser o suicídio assistido a solução”.
Apesar de considerar que os projetos de lei apresentados são “obsoletos” e “não fazem sentido nenhum”, António Maia Gonçalves — que coordena a área de cuidados intensivos da Casa de Saúde da Boavista, no Porto — reconhece que a classe médica também tem responsabilidades no estado a que o debate chegou. “Houve um tempo de obstinação terapêutica por parte dos médicos e isso fez com que as pessoas tivessem medo de sofrer e que se prolongasse o sofrimento de forma excessiva”, lembra. Mas agora, garante, a medicina evoluiu. E se a eutanásia for aprovada, “quando uma pessoa for a um médico já não sabe ao que vai. Se vai para ser tratada e curada ou se vai para ser eutanasiada”.
Começo por um assunto que refere, quer no livro, quer nas suas intervenções públicas: os vários conceitos que estão aqui em jogo. Os projetos de lei do Bloco de Esquerda, do PS, do PAN e dos Verdes, que vão ser debatidos no final do mês, são diferentes, até nos termos. No do Bloco, por exemplo, não aparece a palavra “eutanásia”, mas sim “morte assistida”. Nos do PAN e do PS, pelo contrário, são frequentes as referências à eutanásia e ao suicídio assistido. Como se podem distinguir os vários conceitos para um debate mais informado sobre assunto?
Acho que é importante. O facto de os projetos de lei não serem muito clarinhos é mau, porque confunde as pessoas. A ideia que eu tenho é que as leis se fazem para as pessoas, nomeadamente estas, que têm a ver com aspetos tão importantes e valores fundamentais da nossa sociedade. É muito importante as pessoas terem uma ideia clara: eutanásia implica um ato ativo de matar alguém, por terceiros. Há uma pessoa que requer a eutanásia. No caso das propostas que vão estar em discussão, todas implicam o médico como o perpetrador da eutanásia. Outra situação possível é o que acontece na Suíça, por exemplo.
O que acontece?
Na Suíça não há eutanásia, há suicídio assistido. Basicamente, o suicídio assistido tem algo mais aceitável eticamente: o indivíduo que pretende morrer tem direito a pedir fármacos que são eficazes e que lhe são disponibilizados por uma ou outra organização. No caso da Suíça, há duas. Portanto, não implica nenhuma intervenção médica. Tem a ver com o direito de autonomia do doente e, de certa forma, com o entenderem que é um direito de cidadania. Tenho dificuldade em entender que o cidadão tenha direito a que o Estado lhe disponibilize um médico para o eutanasiar. Acho que isso não é eticamente muito difícil de entender.
Todos os projetos em discussão, apesar de usarem palavras diferentes, têm um conceito comum que é o da liberdade. O argumento é o de que os cidadãos devem ter a liberdade de tomar decisões sobre a sua vida, incluindo sobre como e quando morrer. Deve existir este direito?
Acho que há conceitos que têm muito a ver com a intimidade e as convicções das pessoas. Quando vivemos em sociedade, temos de tentar respeitá-los o mais possível, para que as pessoas possam viver felizes. Entendo que o direito à vida é um direito fundamental e que o direito à morte, lamentavelmente, é uma obrigação. Acabamos todos por morrer, não é propriamente um direito. Pretender que uma pessoa, porque tem uma doença incurável, tenha direito a solicitar a morte é um direito que depende muito da intimidade e das convicções de cada um. Pode cumprir-se esse direito sem implicar terceiros, nomeadamente médicos, na execução desse direito. Essa é a figura do suicídio assistido. Não houve criatividade suficiente nos partidos que apresentam propostas de lei para contemplar essa possibilidade, o que, associado ao facto de não ter havido discussão pública sobre o assunto, dá ideia de que há uma pressa legislativa muito pouco ponderada.
Quais os efeitos?
Aconteceu também na situação do testamento vital. Até 2016, tinha mil e tal pessoas inscritas, fez-se uma grande campanha e tem 18 mil, agora. Esta pressa legislativa faz com que decretos ultra-minoritários ainda tenham menor interesse. Na prática clínica, se eu sinto essa necessidade, se algum doente alguma vez me pediu para morrer? Nunca. As pessoas querem morrer em paz, sem sofrimento, e a medicina, hoje em dia, foi-se adequando à realidade demográfica e às necessidades que existem. Hoje em dia, em muitas doenças, chegamos à conclusão de que já não temos mais nada a oferecer ao doente e em vez de procedermos a tratamentos que serão fúteis ou espúrios tentamos iniciar medidas de conforto, com toda a convicção, e sabendo que essas medidas de conforto vão seguramente abreviar o processo de morte.
Posiciona-se frontalmente contra a eutanásia mas, neste livro, fala de uma série de situações em que se viu confrontado com casos em que optou pela suspensão dos tratamentos ou do suporte de vida — e sublinha a importância de distinguir estas duas práticas. Parece-lhe que a diferença não está clara no debate público?
Acho que não. O livro pretende mostrar que a medicina se foi adequando. A longevidade hoje é muito maior e obviamente uma pessoa que tenha 80 e tal anos tem necessariamente muitas patologias, e consegue-se, farmacologicamente, que a pessoa esteja muito bem até muito tarde. Agora, quando a pessoa tem uma situação que não é reversível, quando a doença crónica evolui para a morte, quando chegamos a esse patamar, temos de ter o bom senso de não prolongar artificialmente a vida sem que daí resulte benefício para o doente ou reversibilidade clínica. A medicina foi tomando como boa prática médica a necessidade de entender quando é esse momento e atuar em conformidade. Em vez de estarmos a tratar com intenção curativa, passamos a tratar o doente com intenção de conforto. A outra resposta que a medicina encontrou para esta necessidade de apoiar a realidade demográfica dos dias de hoje são os cuidados paliativos, e essa é a resposta da medicina para estas situações. A eutanásia não é uma resposta da medicina, como é evidente. Nem o suicídio assistido.
Porquê?
Porque não é um ato médico. Como lhe digo, um ato médico será sempre diagnosticar, tratar, curar se possível e, se não, cuidar. Quando misturamos também na responsabilidade do médico o ato de eutanasiar, uma pessoa quando for a um médico já não sabe ao que vai. Se vai para ser tratada e curada ou se vai para ser eutanasiada.
Mas a suspensão de um tratamento já pode ser considerada um ato médico?
Em relação a suspender o tratamento, há várias opiniões. Nós podemos não suspender propriamente medidas. Por exemplo, um doente está entubado e ventilado. Não suspendemos a ventilação, mas o doente a seguir precisa de hemodiálise e nós não a iniciamos. É uma ideia de não retirar, mas não progredimos a escalada terapêutica. Withhold [suspender] em vez de withdraw [retirar]. É uma discussão na comunidade científica, o que é que é mais correto. Pessoalmente, acho que é muito mais confortável para o doente, para a família e para a equipa de cuidadores a situação de withhold, a de não progredir na escalada terapêutica, que sabemos que vai resultar na morte do doente. Isso é muito diferente de ativamente internar um doente e dizer-lhe: “Ouça, vamos-lhe fazer isto, para o matar”. Não é um ato médico.
O que é que passa pela cabeça de um médico no momento em que tem de decidir reanimar ou não, acrescentar mais medidas terapêuticas ou não?
São situações diferentes. Quando um doente está internado nos cuidados intensivos, o doente está bem estudado. Está monitorizado, fizemos uma série de exames, temos uma decisão clínica muito mais amadurecida. Mesmo assim, tomamos as decisões sempre de forma colegial, nunca é um médico sozinho que a toma e tem de haver sempre dois ou três séniores na equipa de decisores. Basta haver um que esteja em desacordo para continuarmos o tratamento. Temos a ideia de que banalizar a morte será sempre mau no raciocínio médico. Outra coisa diferente é termos a ideia de que um doente tem uma situação oncológica grave, terminal, que o doente recusa tratamento e até nos solicita que o matemos. Isso é um ato contra-natura para um médico. Um médico faz pela vida, pelo conforto. Em todas as situações de tentativa de suicídio que têm acesso à sala de emergência, nós entramos para reverter a situação, para que o doente sobreviva, porque é essa a nossa função, é para isso que estamos formatados, educados, estudados. Não temos outra maneira de estar. Se chega um indivíduo que tentou o suicídio, para mim é uma situação de rutura grave, de doença, e necessito de tentar tudo por tudo para a reverter, e muitas vezes conseguimos reverter as situações.
Há também as situações das diretivas avançadas de vida, como o testamento vital, em que as pessoas deixam expresso que não querem ser reanimadas. No livro fala de alguns casos e diz que não deixaria de reanimar se soubesse que havia possibilidade de reversão.
Temos dois cenários. Cenários de emergência e cenários que não são de emergência. Num cenário de emergência, em que o doente chega em paragem, nós iniciamos manobras de reanimação, não temos informação nenhuma. Não há que duvidar, porque não temos sequer tempo para ponderar. Ou se inicia manobras, ou perdemos a oportunidade de reanimar o doente. Imagine que reanimamos um doente que tinha explicitado, nas diretivas avançadas de vida, que não queria ser reanimado. Mas o doente está reanimado, foi um cenário de emergência e tinha uma situação rapidamente reversível. Obviamente que nós não o vamos deixar morrer por isso.
E num caso de doença crónica?
Outra situação é num cenário de doença crónica, em que um doente está num consultório e expressa a sua vontade. Não o vamos nunca admitir em Cuidados Intensivos, vamos respeitar seguramente a sua vontade, porque a boa prática médica implica também isso, o respeito pelo direito de autonomia. Não faz sentido tratar uma pessoa contra a sua vontade. E mesmo quando um doente recusa tratamentos, nós continuamos a cuidá-lo, a dar-lhe a analgesia de que ele necessitar, a aliviar a falta de ar. A tentar apoiá-lo. O papel do médico é apoiar o doente, o médico não tem de fazer mais nada a não ser estar minimamente preparado cientificamente, saber as propostas terapêuticas que há de fazer ao doente, e depois apoiá-lo nas decisões que ele tomar connosco. Agora, imagine que nesse contexto, na decisão de partilhar caminho, de partilhar decisões e opções terapêuticas, iria incluir também a eutanásia. Isso é negar a essência da medicina.
Portanto, na sua opinião, a eutanásia não deve ser incluída nas possibilidades oferecidas a um doente por um médico.
Claramente não. Acho que encarar que o direito a morrer é um direito íntimo, de cidadania, das pessoas, que deve ser respeitado… Não é a minha opinião, mas vivemos em sociedade e devemos respeitar os valores dos outros, e respeito-os sem dificuldade. Agora, que isso possa prejudicar a prática médica, não. Tentarmos respeitar a liberdade das pessoas sem prejudicar a prática médica era uma possibilidade muito mais saudável, quanto a mim. Lendo os projetos de lei com atenção, as diferenças são muito subtis, parece que foram copiados uns dos outros. Parece que há um entendimento entre eles.
Há ali uma diferença assinalável que é o facto de o Bloco de Esquerda não usar o termo eutanásia. Isso é significativo no seu entender?
Essa falta de clareza semântica, acho que só serve para confundir mais as pessoas e para tornar as coisas menos claras. Portanto, no meu entendimento, é má. É curioso que o CNECV [Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida], que é um conselho consultivo para a ética, apreciou o projeto do PAN. São 20 conselheiros e 19 votaram contra, com um argumento muito válido: menos de 30% das pessoas têm cuidados paliativos e nós vamos tentar já apresentar-lhes uma resposta em que a eutanásia é que é a solução? Mesmo em termos de seriedade, primeiro temos de garantir que os cuidados paliativos têm uma cobertura razoável do país — nunca terá de 100%, mas valores minimamente aceitáveis — porque senão, de certa forma, estamos a empurrar as pessoas para estas situações, que serão seguramente mais economicistas do que outras.
Deixe-me recuar um pouco até às diretivas avançadas de vida. Escreve no livro que a própria existência destes instrumentos, como o testamento vital, é “um sintoma de que algo vai mal na prática médica” e que há falta de confiança nos médicos. Porquê?
Acho que os médicos têm de trabalhar muito mais o respeito pela autonomia do doente. Temos de respeitar o doente. Pela forma como foi feito o projeto de lei, o testamento vital é feito de forma abstrata e sem nenhum controlo objetivo. Um indivíduo pode ir etilizado deixar um testamento vital numa repartição, não há nenhum médico, não há nenhum tipo de controlo. Esse é um aspeto. Por outro lado, o facto de uma pessoa fazer um testamento vital numa situação abstrata, necessariamente vai carecer de um valor maior. Porquê? Os ingleses têm um programa que é o “Respect”. No contexto de uma doença crónica, o doente, antecipadamente, no início dessa doença, é confrontado com a evolução da doença, com as oportunidades que vai ter no final da sua doença se não morrer de outra coisa qualquer e quais é que são as suas opções. E fica claramente explicitado. Isso é a boa prática médica, isso é aquilo que nós fazemos com qualquer doente. “Olhe, mas quer ser inscrito em lista de transplante cardíaco?”, se tiver um enfarte ou insuficiência cardíaca. Em qualquer doença crónica, naturalmente, vai ficando explicitada a vontade do doente e é respeitada.
Aí são situações concretas.
Sim, mas uma insuficiência respiratória pode vir dentro de 10 ou 15 anos. Mas é feito antecipadamente. Agora, feito no abstrato é, no mínimo, de alguma ousadia criativa ter a certeza de que a pessoa tem a inspiração certa. Estamos a falar de vida e de morte, não é uma coisa de inspiração ou de convicções vagas.
Ou seja, dá-se a possibilidade a uma pessoa totalmente saudável que decida que não quer ser reanimada caso eventualmente tenha, por exemplo, uma paragem cardiorrespiratória…
…e se isso estiver bem devidamente explicitado, o médico terá o dever de respeitar.
Mas se o médico perceber que aquilo é facilmente reversível, tem na mesma de respeitar aquela decisão. Será uma opção complicada, calculo.
Não tenho dúvida nenhuma de que, num cenário de emergência, reanimo.
Nesse momento, nem sabe da existência desse testamento.
Não sei da existência de nada. Depois de se saber da existência de alguma coisa e de o doente estar reanimado, tem de se adequar o tratamento iniciado à vontade expressa pelo doente. Agora, os médicos têm de trabalhar ainda essa parte do respeito pela autonomia. Sem respeitar a autonomia, não há empatia.
E porque acha que isto representa falta de confiança nos médicos?
Porque há um passado em que houve, de certa forma, alguma obstinação terapêutica, em que os médicos, mesmo com o doente já em estado agónico, ainda iam fazer mais algum tratamento ambicioso, quando clinicamente a situação era irreversível. Isso fez com que muita gente da minha geração, ou um bocadinho mais avançada, criasse a ideia de sofrimento em estado agónico. E isso foi mau. Mas a medicina, como todas as ciências, vai progredindo e avançando, e pela sua natureza tentando sempre melhorar as suas práticas. Portanto, acho que os médicos têm de trabalhar isso e dar alguma paz e tranquilidade às pessoas para elas não terem essa desconfiança.
No livro compara a necessidade de legislar sobre a eutanásia a esta situação e diz que também há aqui uma idêntica insegurança entre médicos e doentes.
Mas a eutanásia é muito mais grave. Eu gostava que a legislação do testamento vital tivesse sido feita como foi no Reino Unido, com um vocação pragmática, muito objetiva e de grande eficácia. Não foi. Em relação à eutanásia, a situação é muito mais grave. Imagine um indivíduo que quer pôr termo à vida, uma situação de desespero, de falta de apoio, sintoma de uma série de coisas menos boas. Um médico deve é tentar clinicamente apoiar e fazer reverter essa vontade. É uma situação completamente distinta de tentar que a legislação do testamento vital tivesse sido mais adequada. Agora, há eventualmente alguma desconfiança nesse sentido: houve um tempo em que havia obstinação terapêutica por parte dos médicos e isso fez com que as pessoas tivessem medo de sofrer e que se prolongasse o sofrimento de forma excessiva. A questão, hoje em dia, não se põe. Em termos de sofrimento, de analgesia e de conforto ao doente há uma preocupação e uma eficácia muito distintas hoje do que há 30 anos, quando eu me formei.
E as pessoas morrem cada vez mais nos hospitais do que em casa, junto da família. Também esta realidade importa nessa discussão sobre os cuidados no final da vida.
Repare que morre-se muito menos em casa, morre-se muito nos hospitais e morre-se muito mais nos lares de idosos. Essa contabilidade não é objetivada, porque essas mortes que se verificam nos lares são como ocorrendo em domicílios. Essa realidade do local onde se morre tem de ser mais objetivada para podermos ter uma perceção do que se passa. Agora, do ponto de vista médico, o que me parece fundamental para se dar esse apoio é haver equipas domiciliárias de cuidados paliativos, e vai havendo. Ainda com alguma timidez, a cobertura nacional ainda é muito baixa, mas mesmo assim, nas zonas onde há, há um esforço dos paliativistas de irem a casa das pessoas proporcionar esse conforto, de as pessoas morrerem em casa.
A família é importante…
Claro que temos de ter a ideia também de que é um ónus que não podemos pôr às famílias. Se alguns entendem que até é uma responsabilidade do Estado disponibilizar um médico para os eutanasiar, eu entendo é que há uma necessidade do Estado de garantir às pessoas que tenham esses cuidados o mais dignos possíveis em fim de vida. Nomeadamente, se não puderem morrer em casa, que haja locais adequadamente disponibilizados para que as pessoas possam ter conforto no fim de vida. De preferência, se possível, acompanhados pela família. Uma coisa que me faz muita impressão é uma pessoa morrer no meio de estranhos, no ambiente hospitalar. Claro que há mortes inesperadas, mas naquilo que for a evolução normal de uma doença crónica grave, tentar essa possibilidade, isso sim, isso é um gesto de grande humanismo e de respeito pela liberdade das pessoas. As grandes lições de dignidade que nós temos na vida são os doentes e os familiares que nos dão. São inacreditáveis. É por isso que a ideia de eutanásia é ainda mais arrepiante para mim. Não é isso que eu vejo no meu dia a dia.
Retrata no livro uma situação que tem sido discutida neste debate, que é a realidade da Holanda, e apresenta números que impressionam. Quatro mil eutanásias por ano que já se realizam lá, o que representa cerca de 3% das mortes por ano…
…é um bocadinho mais, até. O número de quatro mil e tal já era de 2016, em 2017 até subiu, passa de 4%. Os números da eutanásia são muito subestimados, isso é um consenso que há. Até há um autor que diz que em 2017 foram 4,8% das mortes. O que é consensual é que foram seguramente superiores a 3%. Quando se diz que a eutanásia é para situações terminais, de um sofrimento inacreditável e incontrolável, de uma doença terminal. Acreditarmos que 3% das mortes ocorreram nessa situação… Se compararmos com o cancro colorretal, ou o cancro da mama, são situações pelo menos da mesma ordem de grandeza, dependendo dos países. Faz alguma impressão. Quando se diz que não há “rampa deslizante”… Neste momento há um partido que defende que, para requerer a eutanásia, basta ter 75 anos de idade. Ao lado da Holanda, temos a Bélgica, que pratica a eutanásia infantil. Dizerem-me que não há “rampa deslizante” com estas evidências todas… É claro que há “rampa deslizante”.
Há outros números, por exemplo o facto de 41% das eutanásias terem sido feitas a pedido de familiares e não a pedido do próprio, e de apenas 14% com o paciente totalmente consciente. Olhando, por exemplo, ao projeto do Bloco de Esquerda, que exclui crianças e doentes mentais dos requerentes e que obriga a que tenha de ser o próprio doente a fazer o pedido e a reiterá-lo várias vezes, entre outras medidas, não lhe parece que a legislação será suficientemente segura para evitar situações como essas que descreve noutros países?
O mais clarinho aí, em termos de tipificação da doença, até é o do Partido Socialista. Tem de ser incurável, irreversível, rapidamente mortal. É muito mais claro e objetivo. O do Bloco de Esquerda deixa abertura para mais opções. E até mesmo essa situação de ter de ser pedida pelo próprio, não vai contemplar a maioria das situações clínicas, em que o doente tem por exemplo um tumor cerebral de grau 4, que foi diagnosticado há pouco tempo mas que já tem alterações neurológicas. Muitas dessas situações que poderiam configurar algum interesse por parte do doente em abreviar a sua vida, nem sequer poderão ser contemplados nestes decretos-lei. Mas por isso mesmo é que se chama “rampa deslizante”, porque nós entramos por um caminho que sabemos onde vai dar. Numa situação de equilíbrio, para respeitarmos a vontade das pessoas, uma pessoa se se quiser matar, mata-se. É preciso muito desespero, muita coragem, e mata-se. E nunca será punido por isso, porque está morto. Agora, o facto de haver alguém que possa ajudar e que, de certa forma, branqueie — digo esta palavra sem má intenção — a situação, é muito discutível. Mas se for essa a vontade de Portugal, dos portugueses, e se isso estiver claramente integrado na sua cultura, temos de respeitar e fazê-lo da maneira mais civilizada possível.
Mas o que lhe pergunto diretamente é: se a legislação que eventualmente for aprovada em Portugal previr as garantias que vêm nestes projetos (exclusão de crianças e doentes mentais, pedido do próprio, etc.), não vai impedir que se chegue a situações como as destes países?
Não sei. Tenho ideia de que damos um pontapé de saída e depois vamos a jogo. Isto não vai ser seguramente o ponto final desta situação. É preciso saber por que caminho vamos. Eutanásia neste contexto, e depois? É isso que temos de pensar. Acho que com os outros países começou da mesma maneira. Mas repare, nos outros países começou no final do século XX, logo no início do século XXI é implementada a lei. Não havia as respostas da medicina em relação a estas situações. Acho que este debate e estes projetos de lei são completamente obsoletos, não fazem sentido nenhum. Há hoje em dia fármacos que se tomam, meia dúzia de comprimidos em casa, toma-se e vai-se. Poder fazer isso com alguma dignidade, algum conforto, no seu domicílio e sem interferência externa, sem obrigar ninguém a fazê-lo, acho que isso poderá configurar uma possibilidade desse último respeito pela liberdade das pessoas.
Não fecha a porta a essa possibilidade do suicídio assistido, então.
Não fecho a porta a essas pessoas. Obviamente, porque só o fará quem quiser. Na eutanásia, põe em causa a autonomia de outras pessoas. A decisão acaba por não ser de quem a solicita, acaba por ser do médico que diz se cumpre ou não cumpre os requisitos legais — e a medicina não é uma ciência exata. A própria autonomia deixa de ser de quem requer a eutanásia. Há muito menos lisura na situação. O que me interessa é que a prática médica continue sempre o mais otimizada possível, porque é disso que eu faço vida, e é nisso que eu acredito. Entendo que isso prejudica a prática médica.
No livro escreve: “Como médico, preocupa-me poder vir a ser solicitado, um dia, para matar alguém”. O que faria nesta situação?
Eu, seguramente, não mataria ninguém. Não é de todo a minha prática. Agora, imagine que a lei é aprovada e que um doente me solicita isso. Eu terei de garantir que o doente tem essa possibilidade com outro colega meu. É uma questão ética.
Critica também que a transformação da medicina “numa espécie de serviço à lista”, o que significa uma “negação da medicina”. Teme que se inclua a eutanásia como mais um serviço no “menu” apresentado pelo médico ao doente?
Mas é disso que se trata. Todos os projetos de lei dizem isso. Quem verifica a adaptabilidade de todos os critérios que estão na lei é o médico, o médico é que vai decidir as coisas. A medicina tem uma finalidade, tem um conjunto de princípios, de práticas e de conhecimentos. Quando se faz um diagnóstico, fazem-se as propostas terapêuticas ao doente. Incluir aí a eutanásia como proposta terapêutica é subverter tudo aquilo em que um médico acredita. Por outro lado, esse “serviço à lista” também tem a ver com a ideia de que a relação médico-doente é sempre uma relação assimétrica, e é de facto: há uma pessoa que está doente e pede ajuda, e há outra que a dá. Agora, não é uma relação de poder, é uma relação de serviço. O médico está ali para apoiar o doente e tentar ajudá-lo naquilo que for possível. Se me pedissem para ajudar na eutanásia, eu entendo que não é a minha área, mas se um doente mostrar essa vontade e a lei for aprovada, seguramente que tenho o imperativo ético de garantir que ele terá esses cuidados com outro colega meu.
Nestes projetos de lei que estão em discussão, é impensável que seja um familiar a propor a eutanásia, será sempre uma opção do próprio doente. Nem mesmo o médico.
Nestes projetos de lei não. Epidemiologicamente, uma das grandes patologias que no contexto da longevidade se vão pondo é o problema da demência. O doente demenciado pode durar muitos anos e não tem a capacidade para decidir, por isso não vai sequer ser integrado aqui. Portanto, acho que muito mais objetivo e eficaz é a medicina atualizar as suas práticas de acordo com a realidade clínica com que se vai deparando. No início do século XX, a grande causa de mortalidade eram as doenças infecciosas. Depois, houve o senhor Fleming que descobriu a penicilina, e as doenças infecciosas hoje em dia vão-se tratando com muita eficácia. A realidade clínica vai sendo alterada de acordo com a realidade demográfica e o progresso científico. Esse problema da demência, em que os doentes ficam alectuados, incapazes de comunicar, e que nem sequer podiam figurar em qualquer um destes projetos de lei. Não vejo nestes projetos de lei nenhuma utilidade clínica. Nada a ver com a realidade. São alheados. É para respeitar o direito ultra-minoritário de uma dúzia de pessoas que entendem que têm esse direito. Então faça-se isso sem pôr em causa a prática médica.
Quando diz que não deviam ser os médicos a fazê-lo, defende que existam profissionais específicos para esta situação?
Pessoalmente, sou contra e acho que a eutanásia não devia ser aprovada. Se se entender que isso é um direito de cidadania fundamental, deve ser o suicídio assistido a solução. Na Suíça, como disse, convivem essas duas organizações, a Dignitas e a Exit. A Exit nem sequer tem fins lucrativos, é um médico que é o responsável e o que faz é disponibilizar os fármacos para as pessoas tomarem em casa. Não é preciso ser nenhum médico, nenhum enfermeiro, nenhum profissional específico. Leva os comprimidos e toma-os em casa. Sem implicar mais ninguém e no respeito integral pela autonomia do doente. A eutanásia não, a eutanásia vai pôr esse problema. O código deontológico dos médicos é claramente contra. Obviamente, os médicos nunca serão foras-da-lei e portanto, se a lei for aprovada, terão de alterar o seu código deontológico. Mas tenho a convicção de que na classe médica a ideia da eutanásia não é uma ideia bem aceite. Haverá sempre exceções. Os profissionais da área já disseram o que pensavam sobre isso, portanto se calhar o legislador tem de respeitar isso também, e levar a sua avante, mas de forma a não hostilizar essas classes profissionais.
Falava há pouco em “pressa legislativa”…
O debate não foi feito. O direito à vida é um direito fundamental e, quando se vai mexer em direitos fundamentais, ouvir as pessoas é da mais elementar democracia.
Um referendo?
Um referendo, a maneira como, legalmente, for possível ouvir as pessoas. A ideia que eu tenho é que não há nenhum partido que tenha posto isto no seu programa eleitoral. É um assunto de consciência das pessoas e é um assunto que tem implicações — culturais e sociológicas — importantes. Portanto, acho seguramente que o Parlamento é a câmara da democracia, mas então exerça-a. Não imponha as coisas.
Faz referência a uma série de situações que foram muito discutidas em todo o mundo, como o transexual Nathan, que ficou infeliz com o resultado da cirurgia, os gémeos Verbessen, que estavam a ficar cegos, ou o escritor Hugo Claus, demente, e que foram eutanasiados. Teme que a despenalização abra as portas a situações como estas, em que os critérios para o recurso à eutanásia sejam cada vez menos situações extremas terminais?
Seguramente que esta legislação é uma porta aberta a tudo isso, porque o diagnóstico de doença psíquica nem sempre é linear. Ou o doente tem uma psicopatia severa, que está documentada, ou então nem sempre são lineares estas decisões. Mais uma vez, vai depender aí do médico e não da autonomia do doente. É o médico que vai decidir. Portanto, necessariamente, essas situações de “rampa deslizante” que aconteceram logo nos primeiros anos de aplicação da lei na Holanda, que era mais ou menos em 2002 a lei que agora querem propor aqui no nosso Parlamento, aconteceram e vão continuar a acontecer e de uma forma generosa. Aos 75 anos poder requerer a eutanásia só porque sim, só porque se tem mais de 75 anos? Repare na alteração sociológica que isso proporciona. Então e depois aqueles velhinhos que são, de certa forma, um fardo para a família? Tem custos, dão trabalho. E como se sentem? Pensam “vou estar aqui vivo, a gastar as minhas economias, que podiam servir para os meus filhos e para os meus netos”.
Começam a ter dúvidas.
Já viu a angústia que vamos desencadear nestas pessoas? Não faz sentido uma sociedade que conseguiu aumentar tanto a longevidade, com tanta qualidade de vida, agora a resposta que vá dar a essa longevidade seja dar às pessoas a possibilidade de abreviarem a sua vida. Não faz sentido. Vamos criar nas pessoas de mais idade esse ónus, que é duro de gerir. Tenho pessoas que se lamentam do trabalho que dão aos filhos. Têm a certeza da generosidade dos filhos ao fazê-lo, mas não deixam de se sentir incomodadas por darem esse trabalho.
E havia pessoas que seguramente iriam requerer a eutanásia.
Seguramente. A mim não, que eu estou farto de falar e os meus doentes não me pedem isso (risos). Mas tenho ideia de que é necessariamente uma situação que vai acontecer com muita frequência. Vai uma pessoa no final da vida estar a viver com essa angústia? De que está a ser um fardo? Que devia era pedir para morrer?
E, nessa sequência, a eutanásia poderá começar a ser apresentada como uma possibilidade nos hospitais?
Um médico tem de estar vocacionado para a vida, para cuidar. Tem de estar animado sempre nessa vontade. Senão, a banalização da morte prejudica a prática médica. Trabalho numa equipa na qual tenho muito gosto em trabalhar, nos Cuidados Intensivos, e temos gente de todas as cores partidárias, religiosos e não religiosos, e nisto acho que somos todos muito consensuais. Temos a ambição de não banalizar a morte. É muito fácil cair na banalização da morte. Sete ou oito emergências por dia, quatro ou cinco paragens, mais de 80 ou mais de 90 anos… São números e não podem ser. Esse é o problema fundamental. Não são números, são pessoas. Estamos a falar de pessoas que podiam ser o nosso pai, a nossa mãe, o nosso avô. E é isso que temos de tentar pensar: o risco que corremos quando tomamos medidas legislativas. Não sei quem é que tem o interesse. Nunca, na minha prática clínica, um doente me solicitou isso. Para benefício de uma ultra-minoria, criamos um problema de consciência em centenas de milhares de pessoas.
A via do suicídio assistido seria, então, sempre a via mais adequada para a ética médica?
Não tenho dúvidas, porque um médico estaria completamente fora. É importante que se diga, porque há alguma confusão nas pessoas. Na Suíça, não é o médico que vai dizer nada, se a pessoa está apta, cumpre condições ou não cumpre. Se uma pessoa quer morrer, chega lá, recebe os medicamentos, deixa isso explicitado, e pronto. Essa hipocrisia de uma pessoa ter o direito a morrer, porque é que é só quando está com uma doença terminal? Se acham que isso é um direito, então concedam esse direito com clareza.