Ana Moura vai sempre no banco de trás, para poder dormir se lhe apetecer. Quando está na estrada, entre concertos, é ali que aproveita para atualizar o Facebook e o Instagram. E é na carrinha que ela e os músicos trocam ideias sobre o que se passou no último espetáculo e sobre como querem que seja o próximo. Faça calor ou frio, há um ponto assente: o ar condicionado nunca se pode ligar — Ana Moura tem de ter muito cuidado com a voz.
O Observador passou várias semanas nos bastidores com Ana Moura para realizar o documentário “Moura, o outro lado”, que agora é lançado. Tudo começou da forma mais improvável. De certeza que também já lhe aconteceu a si: responder “que sim” sem saber muito bem no que se estava a meter. Foi isso que nos aconteceu aqui na redacção quando, no início do ano, nos perguntaram: “Então, agarram nisto?”.
Aceitar fazer a cobertura de uma digressão de cinco datas pelas maiores salas do país (e uma sexta no estrangeiro), com uma das artistas portuguesas mais importantes da atualidade é uma empreitada para mexer com os nervos. Não, não se tratava de uma reportagem vídeo qualquer (já fizemos largas dezenas), mas de um documentário longo, pensado e muito trabalhado.
Este é o trailer de “Moura, o outro lado”:
Estas imagens são, obviamente, apenas uma nesga de um trabalho que começou no início deste ano. “Moura, o outro lado” nasceu como muitas outras boas ideias: de uma “conversa de café”. O Diogo Queiroz de Andrade, na altura diretor criativo do Observador, atirou ao ar a hipótese; a Andreia Criner, representante da Sons em Trânsito (a empresa que gere a carreira artística de Ana Moura) aceitou a ideia; e a Clara Henriques, da nossa equipa de produção, meteu na cabeça que isto era possível. Estava lançada a primeira pedra, um calhau de todo o tamanho porque se tratava da Ana Moura (só isso chegava) e porque nunca havia sido feito por um órgão de comunicação social português um produto com esta ambição.
A partir daí, partimos para o pormenor: acertar datas, destacar pessoas (câmaras, som, jornalistas, produção) e comprar material. A digressão “Moura” teve a particularidade de se desenvolver ao contrário do habitual: começou pelos espaços grandes em vez dos pequenos, o que, só por si, foi um desafio. Mais um, portanto.
Malas feitas, fizemo-nos ao caminho. A primeira paragem foi no Multiusos de Guimarães, na segunda semana de março. Ainda tudo verde, mais nós que a equipa que faz estrada com Ana Moura, músicos e técnicos experientes mas que, ainda assim, acusavam o nervoso miudinho de começar a empreitada pelas salas grandes.
O primeiro obstáculo é, quase sempre, o pessoal. A equipa da Ana Moura não conhecia a equipa do Observador — era preciso conquistar a proximidade necessária para que as câmaras passassem despercebidas. Em suma, era preciso “criar ambiente” num espaço de correria e stress como são os bastidores de um espetáculo de Ana Moura.
Mas acabou por não ser difícil, porque todo o staff da digressão “Moura” faz a festa ainda antes do espetáculo, misturando toneladas de trabalho e responsabilidade com boa disposição. Isto apesar dos muitos quilómetros e das noites mal dormidas fora de casa. Engana-se quem pensa que isto de andar em digressão é coisa fácil — não é. Foi, provavelmente, o primeiro embate: perceber que aquela vida implica uma boa dose de sacrifício.
O baixista André Moreira e o baterista Mário Costa explicam que é muito fácil dar dois concertos por mês, mas fazer 300 espetáculos por ano, passar dias inteiros uns com os outros, sem dormir e a comer mal, implica elevadas doses de respeito e camaradagem, não apenas entre os músicos mas com a própria Ana Moura — que quase nunca se separa do grupo.
Ana Moura é muito protegida pelos músicos, “é a única menina do grupo”, como diz o teclista João Gomes. Em Portugal é difícil andar com ela na rua, não há descanso, é constantemente abordada. No estrangeiro relaxam mais, passeiam juntos, aproveitam os horários vespertinos dos concertos para sair e jantar, conhecer um pouco os locais por onde passam. Geralmente, só lhes sobra a noite.
As viagens na estrada são parte do caminho de todos, como vai poder ver no documentário. São um momento para descanso, discussão e riso.
À segunda paragem, no início de abril em Évora, as pedras de gelo entre as equipas de Ana Moura e do Observador foram-se tornando cada vez mais pequenas. Sem esforço.
Em conversa ao telefone esta semana (a partir de Espanha, onde se encontra em digressão), perante a pergunta “Fomos muito chatos?”, Ana Moura respondeu que não: “Nada, foram discretos, sensíveis, tiveram muito cuidado e nós percebemos isso”. Ana Moura conta que, ao início, estavam “relutantes em ter ali alguém sempre em cima de nós, mas depois a equipa mostrou-se tão discreta que nos deixou completamente à vontade”.
Vasco Sacramento, da Sons em Trânsito, alinha no discurso: “A relação entre as pessoas foi-se construindo rapidamente, isso vê-se até no modo como comunicamos uns com os outros.” O diretor da promotora sublinha ainda que, “sem nunca perder o vetor profissional, criou-se uma relação próxima e isso ajudou bastante a que o Observador não tenha sido invasivo e também a que tenha conseguido resultados muito melhores do que se tivesse sido uma mera reportagem de um dia de espetáculo”.
Seguiu-se Faro, Lisboa, Porto e Viena, na Áustria, a única data internacional que faz parte do documentário. Uma das ausências no documentário é Prince. “[A sua morte] foi um acontecimento muito marcante este ano para a Ana. Há ali uma presença ausente durante uma parte do documentário”, diz Vasco Sacramento
Foi neste ponto que a coisa mudou. Aquilo que era para ser um documentário sobre uma digressão transformou-se numa viagem muito para além da vida nos bastidores. Quando viu o resultado final, Ana Moura disse: Fartei-me de chorar”.
Olhando de novo para o filme, Vasco Sacramento, diretor da Sons em Trânsito, diz que “o documentário reflete, na íntegra, e até de uma forma íntima, aquilo que é a nossa verdade na estrada, aquilo que realmente acontece”. Mais: “O documentário deixou de estar apenas virado para a realidade da ‘estrada’, dos espetáculos, para se tornar numa coisa mais biográfica, mais profunda e íntima. Acho que isso tornou o documentário duplamente interessante, porque ambas as facetas estão representadas. E isso vai ser muito útil para o público e sobretudo para os fãs da Ana Moura”, porque vão ter acesso a dois tipos de conteúdos que, provavelmente, nunca tiveram antes: os bastidores daqueles espetáculos, e perceber um pouco da intimidade da artista.
Vasco Sacramento concretiza: “Foi a primeira vez que os pais da Ana falaram, está lá a sobrinha da Ana, os músicos, estou lá eu… a maioria das pessoas não tem noção das relações entre as pessoas”. O promotor acrescenta ainda que este projeto “foi especial também porque não é muito normal nos dias de hoje haver um envolvimento tão sério e tão profundo, um compromisso tão grande de um meio de comunicação social num projeto cultural.”
Ana Moura conta que ficou “surpreendida” com algumas palavras das pessoas que trabalham com ela: “Coisas que eles [staff, músicos] sentem mas nunca me dizem. Foi muito bom ouvir a opinião deles”. E há algum arrependimento? “Há ali algumas coisas que se calhar algumas pessoas não vão gostar de ouvir, mas não me arrependo de nada, sou eu que estou ali.”
Nós também não nos arrependemos de nada.
“Moura, o outro lado” foi uma produção do Observador em parceria com a Sons em Trânsito e com a Universal Music Portugal. Faz parte da reedição do álbum “Moura” (2015) num pacote Super Deluxe em digipack (à venda dia 25 de novembro) que junta ao CD outros três discos: um com o documentário, outro com a gravação vídeo do concerto no Coliseu do Porto (realizado pela RTP) e ainda um CD com o respetivo áudio. Em dezembro, estará disponível online.