Discurso do Presidente da República
O 5 de outubro é celebrado nesta câmara municipal desde que há República e, depois, democracia, porque naquela varanda foi proclamada o novo Regime. Só durante quase toda a ditadura, a alegada República não celebrou a República porque com ela não se identificava. E é importante mais do que nunca que se leve a sério que a República, tal como a democracia, se constrói todos os dias. E não há construções perfeitas ou acabadas.”
O Presidente começava aqui, logo no início do discurso, a fazer avisos à navegação para que o Governo tivesse mais cuidado com a qualidade da democracia (e com a perceção que os portugueses têm da mesma). Numa altura em que a oposição acusa o Governo PS de ter uma deriva menos dialogante, Marcelo alerta para a necessidade de cuidar da democracia diariamente, uma vez que o regime democrático é dinâmico e exige uma atualização e escrutínio permanentes. Estas frases eram, aqui, uma espécie de “teaser” para a mensagem principal do discurso.
Precisamente em outubro de 1922, três dezenas de milhares de fascistas, apoiando Benito Mussolini, protagonizaram a Marcha sobre Roma (…). E hoje em 2022, 100 anos depois de 1922, acabamos de viver uma pandemia, ainda vivemos uma Guerra, com aquilo que provoca de agravamento em termos económicos, financeiros e sociais. E assistimos a novos apelos à nossa volta, já não ou ainda não a ditaduras, mas a autoritarismos iliberais, ou seja, não democráticos. Temos em 2022, o que não tínhamos em 1922: temos uma República democrática. É a grande diferença.”
Depois de uma grande resenha histórica sobre o Portugal e o mundo de 1922 — que foi desde a ressaca da noite sangrenta de 1921 ao desfile dos camisas negras de Mussolini em Roma — Marcelo passou para 2022 para alertar para os perigos dos populismos e dos extremismos. O alertar para esta realidade tem sido, aliás, um tema assíduo nos seus discursos em datas comemorativas ao longos dos últimos anos (25 de Abril, 10 de Junho e 5 de Outubro). Neste caso, Marcelo lembrou o nascimento do fascismo em Itália, numa referência não será inocente numa altura em que Giorgia Meloni, a nova primeira-ministra italiana, personifica e promove, no entender de opositores e alguns politólogos, uma forma de neofascismo. Isto ao mesmo tempo em que, em Portugal, o partido do Governo português (o PS) considera que — com o atual presidente e um dos candidatos das presidenciais brasileiras (Jair Bolsonaro) — o Brasil corre o risco de entrar numa deriva autoritária. Portanto, mais um capítulo de Marcelo vs Populismos.
Temos uma democracia em que as mulheres e também os mais jovens e também os mais pobres ou iletrados têm direito a voto como não tinham em 1922. Temos uma democracia com mais liberdades políticas, económicas, sociais e mais pluralismo, mais meios de informação e de controlo dos poderes públicos e privados do que tínhamos em 1922. Temos uma democracia em que milhões de pessoas votam diretamente no Presidente da República e o Presidente dispõe do poder de vetar leis e de dissolver o Parlamento— o que não tínhamos em 1922.”
Outra marca dos discursos de Marcelo Rebelo de Sousa costuma ser, precisamente, o facto de puxar dos galões de primeira figura do Estado. E quase sempre sob a mesma forma: é ele a chefia do Estado e quem tem poder para dissolver a Assembleia da República, mesmo aquela que tem maioria e dá suporte a um Governo maioritário. Marcelo faz questão de lembrar a Costa que tem a chamada “bomba atómica”. Na contra-ofensiva, minutos depois do discurso de Marcelo, Costa lembraria o previsível militar e famoso francês, dizendo que o que o Presidente disse foi uma verdade de La Palice. Ora aí está mais uma pequena tensão Belém-São Bento.
Mas, se isto é um facto, sabemos mais do que sabíamos em 1922. Sabemos que não é suficiente termos democracia na Constituição e nas leis, importa termos democracia cada vez com mais qualidade, melhores e mais atempadas leis, justiça, Administração Pública, controlo dos abusos e omissões dos poderes, prevenção e combate à corrupção das pessoas e das instituições.”
Nos últimos dias têm sido vários os casos polémicos a envolver membros do Governo, que levaram esses governantes e o Executivo a desdobrarem-se em justificações. Houve casos como o da atribuição de fundos ao marido da ministra da Coesão, uma deputada do PS que quis apagar a gravação numa comissão com essa governante e um caso de uma incompatibilidade (ainda não resolvida) pelo novo ministro da Saúde. Perante tudo isto, Marcelo Rebelo de Sousa quis colocar pressão no Governo e exigiu “democracia com mais qualidade”. E não se ficou por aí, tendo acrescentado que é necessário um maior “controlo dos abusos e omissões dos poderes”. Foi mais um aviso: os membros do Governo têm de ter cuidado com a forma como (não) cumpre as obrigações inerentes aos cargos que ocupam.
Sabemos que os que governam, tendem quase sempre a ver-se como eternos e a fechar-se sobre si próprios. E os que se opõem, quase sempre a exasperarem-se pela espera vista como eterna no acesso ao poder. Sabemos, no entanto, que nada é eterno em democracia: nem os Presidentes, nem os Governos, nem as oposições. A democracia é, por natureza, o domínio da alternativa, própria ou alheia.”
Marcelo Rebelo de Sousa deixa aqui uma espécie de aviso de avô da democracia, num alerta dois-em-um aos netos António Costa e Luís Montenegro. O Presidente diz ao primeiro-ministro que escusa de se considerar eterno, porque um dia abandonará o cargo; e diz ao líder da oposição que não precisa de estar muito nervoso e ansioso porque a alternância não dura uma eternidade, dura apenas mais quatro anos. Num conselho quase paternalista, lembra que a democracia é isso mesmo, o “domínio da alternativa” — o que significa que, mais tarde ou mais cedo, os protagonistas vão mudar.
Sabemos como erros, omissões, incompetências e ineficácias da democracia a fragilizam e a matam.”
O Presidente da República volta mais uma vez a fazer um aviso ao Governo sobre os casos polémicos que se têm sucedido. Para Marcelo, cada vez que um ministro é apanhado numa situação de incompatibilidade ou falha mais ou menos grave, seja por omissão ou erro direto, está a minar a credibilidade da democracia. O mesmo acontece quando um serviço do Estado tutelado por esses mesmos ministros tem uma falha incompreensível aos olhos dos cidadãos. Resumindo: mais um recado.
Há insatisfações, indignações, exigências de muito mais e melhor, como ecoaram as palavras do presidente da câmara de Lisboa, mas isto é sinal da força democracia. É algo que é impossível em ditaduras, onde há verdades únicas e só um ou alguns proprietários. É saudável a exigência crítica porque em democracia cabe a todos fazê-la avançar, não estagnar ou recuar. Por isso, nós em democracia por definição nunca nos resignamos. Há sempre em democracia mais realidades, mais soluções, mais energias de mudança do que aquelas que nos parecem existir em cada instante.”
Marcelo começou o mandato em 2016 a prometer combater as crispações na política portuguesa entre direita e esquerda perante um governo minoritário (e sem o partido mais votado na sua composição). Agora, perante um Governo de maioria absoluta, o Presidente vem fazer o contrário: normalizar as várias insatisfações e exigências permanentes que vão sendo feitas a quem governa. O Presidente ensaiou também um elogio a Carlos Moedas, com quem tem uma boa relação, e legitimou as várias críticas que o presidente da maior autarquia do País fez ao Governo PS, quando disse que “é saudável a exigência crítica”.