Índice
Índice
Qualquer estudante dos anos 80 que andasse de sebentas na mão pela Universidade do Porto sabia quem era Maria Ângela Brito de Sousa, imunologista. Toda a gente a admirava e toda a gente a temia. Com a idade daqueles mesmos alunos, Maria de Sousa tinha trocado Lisboa pelos laboratórios do Imperial College em Londres. Aos 27 anos já assinava artigos nas mais conceituadas revistas científicas sobre os mistérios do sistema imunológico. Morreu esta terça-feira, os 81 anos, vítima de Covid-19, nos cuidados intensivos no Hospital São José.
Pedro Rodrigues era um desses estudantes. Agora é vice-reitor da Universidade do Porto. Há 30 anos foi um dos oito alunos escolhidos para a turma de 89 do mestrado em Imunologia — um dos primeiros do país — no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), que Maria de Sousa coordenava. “Eu era muito novo, tinha acabado de sair de uma licenciatura. E ter de lidar com uma personalidade como a da Professora Maria de Sousa não era fácil”, recordou em conversa com o Observador.
A professora que ensinou os melhores cientistas portugueses
É que Maria de Sousa era diferente dos outros professores e certamente muito diferente dos cientistas portugueses da época, diz quem a conheceu. Estava por dentro da fértil produção científica britânica, estava familiarizada com o vanguardismo norte-americano e tinha passado os últimos 20 anos a conviver com os melhores cientistas mundiais. A experiência no estrangeiro enchera-a de ideias. E o rigor científico era uma delas.
“A professora Maria de Sousa era muito assertiva, muito inquisitiva e tinha ideias fortes. Pautava-se muito pelo rigor, pela excelência e pela qualidade. Puxava muito por nós e não se coibia de fazer as suas observações, as suas críticas e chamadas de atenção. Por vezes tínhamos reuniões de fim de dia ou ela assistia connosco a algumas aulas. E a presença dela podia ser um pouco intimidante”, conta Pedro Rodrigues.
Que o dia Maria Manuel Mota, diretora executiva do Instituto de Medicina Molecular: “Eu queria ser cientista, mas não sabia o que era ser cientista. Um dia, vim num corredor um cartaz a dizer: ‘Se queres ser cientista, vem e candidata-se a este mestrado’. Na altura, ninguém tinha ouvido falar de mestrados. Mas concorri e entrei”, contou a investigadora ao Observador.
Foram tempos difíceis para ela: “Tinha uma admiração enorme pela Maria de Sousa porque ela era incrível. Mais do que isso, ficava maravilhada com a maneira de ela ser, com a personalidade forte. Mas podia ser assustador”, lembra.
Nas aulas, Maria de Sousa insistia que tudo era possível, tudo era alcançável desde que se quisesse. Mas Maria Mota, à época com pouco mais de 20 anos, nem sempre acreditou nessa máxima: “Eu era uma miúda, às vezes tinha dúvidas e achava que havia coisas que eu não conseguia fazer. Aliás, nesse ano tive muitos momentos de dúvida”, recorda.
Eram tantas as dúvidas que a agora diretora do Instituto de Medicina Molecular quis, a certa altura, desistir do mestrado. “Tinha estudado biologia na licenciatura, só tinha tido uma aula sobre o sistema imune em todo o curso e, para piorar a situação, as aulas eram todas em inglês. Sou péssima a línguas. E estava a ter aulas sobre coisas que só agora estão a ser feitas”, conta.
Por isso, um dia, encheu-se de coragem e bateu à porta do gabinete de Maria de Sousa para se despedir do mestrado. “Ela ficou furiosa”, descreve Maria Mota: “Quanto mais furiosa ela ficava, mais assustada ficava eu. Ainda assim, estava determinada a desistir”. No meio da discussão, no entanto, Maria de Sousa disse algo que Maria Mota nunca mais esqueceu: “Como é que é possível eu ter escolhido uma cobarde que desiste à primeira dificuldade?”.
Foi o choque de que a jovem Maria Mota precisava para entrar de corpo e alma naquele projeto. No fim de semana, estudou tudo o que havia para estudar sobre imunologia. E agora, passados 30 anos, é uma das investigadoras mais reconhecidas em Portugal na área da medicina molecular. “Só sou cientista porque ela se cruzou na minha vida. Mais do que ser cientista, sou a pessoa que sou porque naquela fase tive este modelo”, resume Maria Mota.
Até os bancos dos laboratórios mudaram por Maria de Sousa
Para Pedro Rodrigues, “havia nesta forma de estar uma certa dose de teste”: “Ela queria tanto fazer ciência e investigação que teve de trazer consigo tudo o que tinha no laboratório nos Estados Unidos”. O problema? Todas as máquinas estavam adaptadas à voltagem norte-americana.
“Teve-se de adaptar um quadro elétrico próprio no ICBAS com algumas alterações no sistema para se poder ter as estufas, as incubadoras e esse tipo de material que precisávamos nas aulas. Era um pouco bizarro e fora do comum”, contou o vice-reitor da Universidade do Porto entre sorrisos.
E até as cadeiras num dos laboratórios do ICBAS foram alterados por causa de Maria de Sousa, acrescenta Pedro Rodrigues. Por norma, as cadeiras em laboratórios são meros bancos com as pernas mais longas. Mas a normalidade não assentava bem à investigadora.
Por isso, foi até à Rua da Picaria, que à época estava repleta de lojas que vendiam móveis tradicionais de madeira. E encomendou oito cadeiras desenhadas por ela própria: “Eram como um banco para stand em que a pessoa só se encosta. As pernas eram mais altas, mas o tampo, em vez de ser a direito, era inclinado. Teve de ir lá ao senhor da Picaria explicar exatamente o que queria, a inclinação que as cadeiras deviam ter. O homem deve ter achado aquilo um pouco estranho”, partilha Pedro Rodrigues.
Essa sua sagacidade também ficou na memória de Graça Porto, médica hematologista no Hospital de Santo António e cientista do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (i3s). “A Professora Maria fazia parte daquele grupo de pessoas que vinha de fora para o ICBAS. E trazia ideias que me fascinaram. Tinha uma maneira diferente de pensar e de ensinar. Fiquei logo atraída”, recorda ao Observador.
“Fazer experiências é como ficar embriagado”
Maria de Sousa foi a coordenadora de doutoramento de Graça Porto, que estava a começar o internato em hematologia quando as duas se cruzaram pela primeira vez: “Era dura, muito exigente e não poupava as críticas mais duras. Chegámos a ter discussões brutais”, descreve.
Mas a médica sabia o que a esperava quando ambas começaram a trabalhar juntas: “Eu nunca me zango com as pessoas que não respeito. Quando me zangar consigo, interprete isso como um grande respeito”, disse-lhe Maria de Sousa numa dessas ocasiões. E Graça interiorizou isso para o resto da vida.
Mas nem só de perguntas inusitadas e rigidez se fazia a personalidade de Maria de Sousa. Havia tanto disso como de “ternura, doçura, compreensão”. “Ela dizia que era assim porque tinha coragem. Uma coisa é passarem-nos coisas pela cabeça, outra coisa é ter a coragem de as levar à frente, mesmo quando parece que estamos a ir contra tudo e contra todos. Isso não a travava”, descreve médica numa conversa por telefone.
É que Maria de Sousa prosperava na dificuldade. Nos anos 60, ainda muito jovem, enfrentou um mundo das ciências dominado por homens e virou costas ao destino que tantas mulheres portuguesas tinham à época — casar, ter filhos e dedicar o resto da vida à casa e à família.
Tinha-se apaixonado pela ciência: “Fazer experiências é como estar embriagado”, costumava dizer à médica do Hospital de Santo António: “E eu quero ficar embriagada toda a vida”. “Ninguém acreditava que seria esta portuguesinha com olhos postos no microscópio que ia descobrir alguma coisa”, acrescentava.
Para Maria de Sousa, “o facto de ser mulher pode ter ajudado naquela altura porque lhe conferia alguma singularidade”: “Era uma mulher com grande carisma e destacava-se num mundo de homens”, diz Pedro Rodrigues, que conversou com Maria de Sousa várias vezes sobre o assunto. E Graça Porto confirma: “Para o espírito dela, essas dificuldades eram uma força motriz. Era natural que, ao longo da vida, tenha sentido a falta de outras coisas. Mas a ciência, para ela, estava sempre à frente de tudo”.
Havia no entanto, uma outra paixão que quase se igualava a esta, recorda a médica entre sorrisos: a dos doces. Era um verdadeiro vício para Maria de Sousa, tal como o tabaco o era para Graça Porto. Por isso, um dia, fizeram um pacto: Graça só podia fumar dois cigarros por dia e Maria só podia comer dois doces por dia. Foi assim durante muito tempo, até Graça ter deixado de fumar. Mas a paixão de Maria de Sousa por doces, esse, não teve fim.
Uma cientista na vanguarda
Graça Porto e Maria de Sousa trabalharam juntas numa investigação sobre a hemacromatose, uma doença genética em que o organismo acumula demasiado ferro. Foi nessa altura, em 1986, que a vida de José Fraga, médico gastroenterologia no Hospital de Santo António, se cruzou com a da investigadora portuguesa: “O primeiro doente que a Maria de Sousa investigou era aqui da minha terra, Cabeceiras de Basto”.
Maria de Sousa tinha uma amiga de Cabeceiras de Basto, a quem pediu ajuda para investigar a população daquela vila. Essa amiga apresentou a investigadora ao tio de José Fraga, também ele médico, e ambos começaram a mobilizar as pessoas para doarem sangue: “E elas esticaram imediatamente os braços. As pessoas confiavam nos cientistas, acreditavam na nossa bondade”.
José Fraga entrou em contacto com Maria de Sousa quando a investigadora pediu ao médico que a colocasse em contacto com alguém que fizesse biópsias ao fígado. “A partir daí, fomos às terras que eram conhecidas por terem pessoas com hemacromatose, do norte de Portugal até ao Alentejo. Íamos todos numa carrinha e aquilo eram cantorias o tempo todo”, recorda o gastroenterologia ao Observador.
Nada disso interferia mas duas grandes características que José Fraga recorda de Maria de Sousa enquanto cientista: verdade e rigor científico. “Como ela estava muito à frente na ciência, escrevia coisas que ninguém percebia. A comunidade científica portuguesa não estava dentro do assunto. Preocupava-se com temas como o consentimento informado quando ninguém pensava realmente nisso”, conta José Fraga.
Um dia, Maria de Sousa entregou um artigo para ser publicado, mas foi chumbado. José Fraga não se conformou com a decisão e telefonou para o presidente do congresso a quem o artigo tinha sido apresentado, conta o próprio entre risos. “Entretanto, ela recebe em casa a informação de que o artigo não tinha sido aceite. Quando ela veio falar comigo sobre isso, disse-lhe que tinha falado com o presidente do congresso. Levei um valente raspanete, caramba!”, conta.
Maria de Sousa “há de estar no paraíso a sorrir”
Foram várias as situações em que José Fraga levava ralhetes desta natureza — “às vezes ficava todo a tremer” —, mas para a memória ficam-lhe sobretudo os momentos de humanidade. “Tive uma doença devido a um efeito colateral de uns medicamentos que simulavam os sintomas de Parkinson. Um dia, cheguei e ela percebeu que eu estava doente. Quis levar-me aos Estados Unidos para falar com o António Damásio. Não fui porque não era preciso”, recorda emocionado.
Foi assim com ele e era assim com pacientes que conhecia nas investigações que fazia, garante José Fraga: “Mandava-os para Londres e para a Escócia para receber tratamentos de ponta, sempre tudo gratuito. Era de uma humanidade impressionante, tinha um sorriso enternecedor. Se as pessoas não tiverem um coração grande e não olharem para o Homem com ternura e compaixão, não vão a lado nenhum na ciência”.
Maria de Sousa morreu aos 80 anos, vítima do novo coronavírus. Passou a vida inteira dedicada a fazer ciência, em ensinar a fazer ciência e em colocar a ciência ao serviços dos outros. Mais de 50 anos depois de descrever o funcionamentos dos linfócitos — o exército de células do sistema imunitário que defende o corpo de invasores indesejados —, Maria de Sousa, já debilitada com problemas cardíacos e sanguíneos, morreu esta segunda-feira nos cuidados intensivos do Hospital de São José, em Lisboa.
Na memória de Graça Porto fica o brilhantismo, a inteligência e os almoços obrigatórios no Passeio das Virtudes sempre que Maria de Sousa visitava a Invicta. Para onde terá ido agora? Para o paraíso, acredita José Fraga: “Dante achava que o paraíso era todo o universo estar a sorrir com bondade. Eu dedico-lhe esta frase. Porque ela agora há de estar no paraíso a sorrir. E já o tinha estado aqui, rodeada de tanta gente que gosta dela.”