Índice
Índice
Enviada especial do Observador à Hungria
Quando Ákos Modolo era adolescente e vivia na sua pequena comunidade católica na vila de Mezőberény, no sudeste da Hungria, não sentia que pudesse partilhar com a maior parte das pessoas à sua volta que era gay. A história é semelhante à de muitos outros jovens da comunidade LGBT de tantos países, mas neste caso foge à narrativa habitual: mais de uma década depois, Ákos continua a ser crente e não acha que tal seja incompatível com a sua orientação sexual. “Sempre senti que Deus me ama como sou, até quando era um adolescente no armário numa pequena aldeia, porque Cristo sempre esteve próximo daqueles que vivem nas margens. Mas sei que nem todos os adolescentes gay sentem isso”, afirma o ativista em conversa com o Observador, na sede de um coletivo lésbico onde a sua associação, a Szimpozion Egyesület, está temporariamente alojada, mesmo no centro de Budapeste.
É precisamente por conhecer a realidade das “duas Hungrias” — “o país rural de Orbán”, por um lado, e a grande métropole de Budapeste, por outro — que este ativista considera que é importante criar pontes e impedir a quebra total de relações entre os conservadores que apoiam o primeiro-ministro, Viktor Orbán (que governa o país ininterruptamente desde o ano de 2010) e os que se lhe opõem. Por isso, quando Ákos soube que o candidato escolhido pelos eleitores para representar toda a oposição (seis partidos unidos pela primeira vez na história do país) nestas eleições era Péter-Márki Zay, ficou contente: “A escolha dele é importante, porque veio mostrar que não devemos olhar para o mundo a preto e branco quando há tanta nuance.” O candidato, diz, “é uma cara nova”, em vez de “um dos rostos gastos da velha esquerda húngara”.
Nuance é uma palavra relevante quando se fala de um candidato como Márki-Zay. Se Órban se apresenta como um conservador, defensor dos valores da “família tradicional cristã” e promotor de um modelo de democracia “iliberal”, Márki-Zay não se diferencia muito nos primeiros dois aspetos, mas quer demarcar-se do último. O antigo presidente de câmara da cidade de Hódmezővásárhely, que em 2018 bateu o candidato do partido do governo (Fidesz) na luta pela autarquia, é um cristão assumido e foi descrito por uma colunista do The New York Times como alguém que “muitas vezes soa como um republicano da velha guarda”. Mas Márki-Zay assume-se abertamente pró-europeu, para se distanciar da retórica agressiva contra Bruxelas de Orbán. E garante que, consigo, a Hungria legalizará o casamento entre pessoas do mesmo sexo, porque “o Estado secular deve dar os mesmos direitos a todos”.
Márki-Zay: um Órban 2.0 para alguma esquerda, a escolha inevitável para a maioria da oposição
“Ter um conservador católico, com sete filhos, a dizer abertamente, como ele disse, que ‘A comunidade LGBT é composta por irmãos e irmãs nossos’ é algo muito poderoso”, resume Ákos. “Fiquei-lhe muito grato. Ele mostrou que não é preciso ser ultra progressista, nem de uma grande cidade, para apoiar os direitos LGBT. É possível ser-se conservador e mesmo assim ter uma relação de respeito com a comunidade, entender que não somos marcianos, somos pessoas.”
Nem todos os eleitores pró-oposição partilham da mesma opinião favorável de Ákos em relação ao candidato do Movimento Todos Somos Hungria (MMM, na sigla original), que junta desde partidos de esquerda até à extrema-direita do Jobbik. Isso mesmo explica ao Observador Ádám Galambos, dono de uma editora de livros de desporto e presidente de uma pequena associação de livreiros. “Muitos artistas, por exemplo, não adoram o Márki-Zay”, confessa o editor. “Sentem: ‘Pode não ser o nosso homem — mas é melhor que Viktor Orbán’.”
As posições ideologicamente conservadoras, combinadas com uma abordagem liberal da economia (Márki-Zay já assumiu, por exemplo, que não quer uma economia baseada em “subsídios”), fazem com que alguns vejam no candidato da oposição lampejos do antigo Orbán das décadas de 80 e 90. À altura, o jovem ativista destacava-se pela oposição à influência soviética e pelo desejo de estabelecer um modelo de democracia liberal semelhante aos ocidentais na Hungria. Mas, desde então, Orbán afastou-se desse modelo e a Hungria tem agora avaliações críticas por parte da União Europeia, que diz que o país pode estar a por em causa o próprio Estado de Direito.
“Há quem diga que Marki-Zay é igual ao que Orbán era há 15 anos, quando apareceu, e é por isso que há quem tema que ele se venha a tornar num Orbán 2.0”, resume Ádám. Uma visão que o editor, porém, não partilha. “Como gosto muito de ténis, vou dar um exemplo dessa área: para um jogador de ténis vencer um tipo como o Federer, não pode ganhar sem antes começar a jogar com o senhor Kovács [apelido comum na Hungria] lá do bairro, sem ir passo a passo. Marki-Zay é esse passo.” É por isso, que, acredita, a oposição irá esmagadoramente apoiar o candidato da oposição, mesmo até os eleitores mais à esquerda. E, quem sabe, alguns indecisos ou descontentes com o Fidesz.
É possível fazer oposição numa “democracia iliberal”? “A Hungria não é a Rússia. Pelo menos por enquanto”
De acordo com a União Europeia, a atuação do governo húngaro pode por em causa o Estado de Direito graças a medidas como as alterações constitucionais, as interferências no poder judiciário, a falta de independência no setor dos media e as declarações polémicas em matéria de direitos humanos que afetam grupos como sem-abrigo, refugiados e minorias como judeus. As preocupações europeias, porém, coexistem com uma sociedade onde ainda continua a ser possível existir algum nível de dissidência. “A Hungria não é a Rússia. Pelo menos por enquanto”, resume Ádám, que destaca como é possível ter esta conversa com uma jornalista num café, em público, e como continua a colocar posts críticos do governo no Facebook sem nunca ter tido chatices.
Ádam diz que, na Hungria, tudo se passa a um nível mais subtil e dá um exemplo concreto. Em novembro, a sua editora publicou um romance de um escritor espanhol sobre Ferenc Puskás, o futebolista tornado herói nacional. Até então, um dos maiores jornais desportivos do país havia ignorado constantemente os seus livros desportivos, mas decidiu dar grande destaque a este. “Nunca quiseram ter nada a ver comigo, sempre me boicotaram e de repente, do nada, vieram à apresentação, disseram que adoraram o livro, tiraram fotografias com o autor, tudo. Porquê? Porque era sobre o Puskás”, resume. É preciso não esquecer que a academia de futebol liderada por Viktor Orbán tem precisamente o nome do futebolista. Para alguns, a sobrevivência na Hungria faz-se estando perto do poder, explica este editor. “Este país não é uma ditadura repressiva, é mais soft. Às vezes é mais como uma ópera bufa”, diz.
Zsofia Banuta confirma o relato. “Sempre conseguimos trabalhar de forma livre, mas temos muita dificuldade em ter cobertura mediática, por exemplo”, resume ao Observador a coordenadora do movimento Unhack Democracy, que tenta dar a conhecer e denunciar irregularidades no processo eleitoral na Hungria. E se a Hungria não é a Rússia, como diz Ádám, para esta ativista tem muitas semelhanças: “Usam as mesmas táticas, de forma mais soft, mas são as mesmas: o domínio dos media, os ataques às ONG, as mexidas no sistema eleitoral”, diz.
Em 2018, Zsofia vivia no Reino Unido, mas assistiu de longe às eleições legislativas na Hungria, consideradas por alguns observadores internacionais como tendo sido marcadas por um “esbater da linha entre o partido [Fidesz] e o Estado”. Perante isso, aliou-se a um amigo que trabalhava para o Partido Conservador britânico e começou a analisar dados eleitorais. Foi aí que nasceu a Unhack Democracy, que viria a concluir que “o nível de irregularidades eleitorais na eleição de 2018 foi o que permitiu ao Fidesz ter uma maioria de dois terços no Parlamento em vez de uma maioria simples”. Agora, em 2022, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) decidiu enviar uma missão mais profunda para acompanhar o ato eleitoral deste ano. As preocupações levantadas pela OSCE são as mesmas que Zsofia e os colegas identificaram: casos de compra de votos, intimidação de eleitores, cobertura mediática desequilibrada, falta de transparência no financiamento de campanhas.
A ativista dá um exemplo concreto sobre a forma como decorre a campanha eleitoral, que considera estar inquinada a favor do partido que está no poder: “Cada vez que abro o Facebook ou o Youtube, só me aparecem anúncios do Fidesz. No meu círculo eleitoral, eles atacam sempre o candidato da oposição por questões pessoais, nunca apresentam o que eles próprios defendem. E é tudo tão gritante e num volume tal que eu consigo perceber como funciona.”
E a estratégia não se fica pelos meios mais modernos como as redes sociais. Também na velha forma de fazer política o padrão é o mesmo, diz Zsofia. “Basta olhar para os cartazes: segundo a Transparência Internacional, o Fidesz gasta sete vezes mais do que a oposição. E a isto somam-se os cartazes do próprio Estado, usados a favor do Fidesz, e das ONG ligadas a eles.” Nas ruas, a cara de Márki-Zay aparece mais vezes nos posters do Fidesz: “Eles são perigosos”, diz a legenda, por baixo do rosto do candidato da oposição e do de Ferenc Gyurcsany, um dos mais impopulares antigos primeiros-ministros da Hungria. Numa carruagem de metro, é possível ver outro tipo de cartaz: “Vamos preservar a paz e a segurança da Hungria”, pode ler-se numa frase em cima do rosto de Viktor Orbán. Desta vez, o cartaz não foi pago pelo partido; está identificado como sendo do “Governo da Hungria”.
Guerra na Ucrânia pode ser fator decisivo — e prejudicar Márki-Zay
“Paz” e “segurança” são palavras que não surgem ao acaso numa campanha que, subitamente, ficou marcada pelo início de uma guerra. Perante uma Ucrânia que tem criticado a Hungria, Órban — que ainda dias antes do início do conflito tinha estado em Moscovo — mantém a tónica na “neutralidade”, recusando, por exemplo, que armas enviadas por países da NATO à Ucrânia entrem por território húngaro: “A resposta à pergunta sobre de que lado está a Hungria é que a Hungria está do seu próprio lado”, escreveu o primeiro-ministro nas redes sociais ainda este sábado.
“A reta final da campanha foi completamente dominada pela guerra, já não há outro tópico”, explica Zsofia Banuta. “E isto beneficia o Fidesz, porque quando há uma guerra aqui ao lado o governo pode assumir-se como o garante da segurança.” A mensagem de que a Hungria quer apenas a paz ressoa junto do eleitorado, como confirma ao Balkan Insight um investigador de um think tank próximo do governo, Agoston Samuel Mraz, que sublinha que os húngaros “não partilham dos medos existenciais que os polacos têm em relação aos russos”.
O editor Ádám Galambos concorda, mas diz que a oposição também deu alguns tiros nos pés. “Esta era a oportunidade para evidenciar melhor a ligação de Orbán a Vladimir Putin. Em vez disso, Márki-Zay afirmou numa entrevista que, se for primeiro-ministro, a Hungria estaria totalmente alinhada com a NATO, mesmo que isso significasse enviar soldados para a Ucrânia. É claro que isso foi logo aproveitado pelos propagandistas do governo.”
Mesmo sendo um cenário hipotético que pode nunca vir sequer a ser colocado, a ideia de enviar tropas para um conflito provoca calafrios a muitos eleitores — e, por isso, o foco na guerra da Ucrânia tem beneficiado o Fidesz nos últimos dias desta campanha. As sondagens mais recentes mostram que o partido do governo está em vantagem, mas provavelmente longe da maioria de dois terços de que dispõe agora no Parlamento. Os indecisos, porém, podem fazer a diferença.
Por isso, até entre os maiores opositores a Orbán há cautela. Zsofia destaca a vontade de Márki-Zay de reverter a atual Constituição, mas considera que tal é praticamente impossível, porque, mesmo em caso de vitória da oposição, não haverá maioria de dois terços. “Para desmantelar esta captura do Estado que o Fidesz levou a cabo é preciso muito apoio popular. E numa eleição tão renhida como esta, é quase certo que isso não vai acontecer.” Ákos, o ativista LGBT que apoia o líder da oposição, diz que, aconteça o que acontecer, assistiremos a uma “mudança sistémica”, já que, mesmo na oposição, Máki-Zay e os seus deputados não irão facilitar a vida a Orbán.
Perante um cenário de guerra e inflação galopante, o futuro não parece risonho — e nem mesmo as medidas do Fidesz, como a decisão de colocar um teto máximo nos preços de alguns produtos, podem durar para sempre. Perante uma situação destas, se a oposição conseguir o feito histórico de derrotar o Fidesz, não terá pela frente tarefa fácil. Se perder, Viktor Orbán conta com novo mandato, onde deve manter a linha de continuidade mas com uma conjuntura internacional menos favorável.
“Isto tem vindo sempre a descer, passo a passo, de ano para ano. Não sei se pode piorar”, suspira o editor Ádám. “Quer dizer, sei: ficamos iguais à Rússia. É por isso que esta eleição é tão importante para nós.” Apesar de todas as dúvidas e receios, ainda alimenta a esperança de que “o rosto novo” de Márki-Zay — um outsider sem partido que surpreendeu tudo e todos em autárquicas, um católico que encantou uma oposição habitualmente dominada pelos nomes habituais da esquerda — possa também fazer a diferença a nível nacional. “Talvez seja só esperança da minha parte, mas… Nunca tivemos tantas hipóteses. Quem sabe se, ao fim de 12 anos, os húngaros decidem arriscar?”