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Bastará uma taxa de imunidade da população entre 10% a 15% para impedir que surjam novas ondas de Covid-19. A conclusão é de um estudo sobre imunidade de grupo realizado por Gabriela Gomes, matemática especialista em epidemiologia, no âmbito do seu trabalho na Escola Superior de Medicina Tropical de Liverpool, no Reino Unido.
A portuguesa chegou a estes valores tendo em conta a heterogeneidade da população — portuguesa e não só. Isto é, a ideia de que há pessoas mais suscetíveis à doença do que outras. Considerando que os indivíduos que ficam infetados são os mais suscetíveis, os que sobram são os mais resistentes, não é necessário uma taxa tão elevada de infetados para se conseguir a imunidade de grupo e assim impedir novos surtos. Uma tese contrária à de outros modelos mais clássicos, que consideram a população homogénea e que, por isso, apontam para uma taxa de imunidade a rondar os 60% e 70%.
De acordo com Gabriela Gomes, que há 10 anos estuda esta questão da “heterogeneidade na suscetibilidade das populações”, é possível que Portugal chegue a esta imunidade de grupo até ao final do ano — “lá para o inverno” —, especialmente se, no final desta onda que o país está agora a viver, a imunidade rondar os 2% a 3%, como prevê a matemática. Um cenário que, além de poder vir a dar alento às pessoas — é obviamente mais fácil chegar a 10% a 15% de imunidade do que a 70% —, faz com que não se esteja dependente de uma vacina para imunizar a população.
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A verdade é que o vírus não irá desaparecer depois deste surto e outras ondas irão surgir no futuro — provavelmente quatro — até se conseguir a imunidade de grupo. E convém que estas ondas sejam o mais pequenas possíveis, mesmo que assim se demore mais tempo a atingir a imunidade de grupo: porque mini-ondas provocam menos infetados e menos mortos do que uma grande onda.
Quando será o próximo surto? Vai depender de como serão os contactos entre as pessoas, até porque se tudo voltar à normalidade, se as pessoas voltarem a conviver umas com as outras como faziam no início do ano, em um mês teríamos uma nova onda. Para Gabriela Gomes, é necessário que as pessoas aprendam a viver com esta instabilidade imposta pela natureza e ir implementando medida a medida para controlar os surtos que forem surgindo.
Tendo em conta que se trata de um novo vírus, este estudo baseou-se em outras epidemias, mas a matemática portuguesa tenciona atualizar o trabalho tendo por base os dados que estão agora a ser divulgados pela Direção-Geral de Saúde. É possível que a taxa de imunidade se altere, mas não é o que ela espera.
Gabriela Gomes está a terminar de escrever um artigo científico sobre este estudo, feito com colaboradores de outros instituições do Reino Unido, Estados Unidos, Portugal e Brasil, e irá submetê-lo a uma revista científica. Logo que isso aconteça, disponibilizá-lo-à a toda a comunidade científica. “Acho que é importante. Quase que me sinto angustiada de ter aqui esta informação diante de mim [e não] a comunicar (risos).”
Fez um estudo em que conclui que bastaria uma taxa de imunidade de grupo de 10% a 15% para evitar novas ondas. Como é que chegou a esta conclusão? Falava-se em taxas de imunidade muito mais elevadas, entre 60% a 70%.
Os modelos que indicam essas taxas mais elevadas (70%) são modelos clássicos de epidemiologia matemática, que se baseiam numa premissa de que todos os indivíduos numa população têm igual suscetibilidade. Em modelos estamos sempre a fazer aproximações e uma aproximação muito comum, porque facilita muito os cálculos, é assumir a homogeneidade. Como não sabemos qual é a distribuição de suscetibilidades, assumimos que os indivíduos são todos igualmente suscetíveis. De facto, se eu fizer isso com os meus modelos, obtenho esses valores, mas aquilo que tenho andado a fazer — aliás, tem sido o meu trabalho dos últimos 10 anos — é tentar medir a heterogeneidade na suscetibilidade das populações e a tentar estudar que efeitos é que isso tem na dinâmica de transmissão e nas previsões que se fariam com esse modelo. Neste caso qual seria a imunidade da população que nos garantiria imunidade de grupo e que evitasse futuras ondas.
Quando fala em heterogeneidade quer dizer que as pessoas não são todas suscetíveis a um vírus da mesma maneira?
Exato, quer dizer que as pessoas seriam todas suscetíveis em certa medida, mas umas seriam mais suscetíveis do que outras. Não há população nenhuma em que os indivíduos sejam todos idênticos absolutamente. Uns são mais suscetíveis que outros. Em termos de suscetibilidade biológica [por exemplo], duas pessoas são expostas ao vírus e uma fica doente e outra não, porque as pessoas não são igualmente suscetíveis, expostos à mesma quantidade de vírus. Umas ficam infetadas e outras não por causa desta variação. Outro fator que contribui para essa variação é que umas pessoas têm mais contactos que outras. Há quem tenha 50 contactos por dia e quem tenha só dois ou três. As pessoas não têm todas a mesma taxa de contactos sociais. Isto também contribui para essa heterogeneidade, umas têm mais risco de ser infetadas do que outras. Existe, de facto, esta variação, mas nós trabalhamos com modelos de campo médio, portanto fazemos uma média. O problema é que isto traz alterações na dinâmica e o modelo comporta-se de forma diferente.
Como assim?
A natureza infeta as pessoas de forma seletiva. Se nós temos esta variação de suscetibilidade na população, as pessoas que vão ser infetadas não são uma amostra aleatória, são as pessoas mais suscetíveis. Se as pessoas que ficam infectadas fossem uma amostra aleatória da população, nós precisaríamos de facto desses 60 a 70%. Mas como as pessoas que estão a ser infetadas, e ficam imunes, são as que são mais suscetíveis, cada imunização de uma pessoa tem um peso maior na imunização da população. Cada pessoa que fica imune era uma pessoa altamente suscetível. Isso significa portanto que a redução de suscetibilidade na população é maior do que se fosse uma pessoa tirada aleatoriamente.
Ou seja, a população que se infeta é aquela que é mais suscetível.
Exato. Suponhamos que temos duas populações para comparar: uma homogénea, em que as pessoas têm todas igual suscetibilidade; e uma heterogénea em que umas pessoas são mais suscetíveis que outras. A média das duas será a mesma. Mas na população homogénea, as pessoas são infetadas aleatoriamente e é preciso atingir 70% de imunidade para conseguirmos impedir novas ondas epidémicas. Já a população heterogénea, para conseguirmos impedir novas ondas temos de reduzir a suscetibilidade da população o suficiente para que não consiga alimentar mais a epidemia. Como as pessoas que o vírus está a infetar são as pessoas mais suscetíveis, cada uma dessas pessoas vai contribuir mais para reduzir a suscetibilidade que sobra na população.
Mais pessoas se tornam mais resistentes ao vírus.
Sim. O que vai sobrar nessa população heterogénea são as pessoas que não foram infetadas, as menos suscetíveis, porque as mais suscetíveis já foram infetadas. A quantidade dessas pessoas até pode ser maior. Podemos estar a deixar suscetível uma quantidade muito maior na população heterogénea que mesmo assim vamos impedir novas ondas, quando na população homogénea teríamos que infetar muito mais pessoas. Teríamos que imunizar muito mais pessoas para conseguir impedir novas ondas sem essa seleção.
Como a população que está infetada ou se está a infetar é mais suscetível, sobram as pessoas mais resistentes ao vírus e, por isso, não há tanta necessidade dessas pessoas serem infetadas em maior número.
Porque elas são menos suscetíveis. Apesar de a quantidade de pessoas não imunes ser maior, são as pessoas que naturalmente já têm menos suscetibilidade, portanto não precisamos de atingir uma taxa de imunização tão grande na população para conseguir impedir novas ondas.
Mas está a falar em 10 a 15%.
Foi isso que me deu [o modelo]. Construí uns modelos sem heterogeneidade e outros com alguma heterogeneidade a níveis que estimamos para outras doenças.
É uma heterogeneidade baseada na heterogeneidade da população portuguesa?
É uma heterogeneidade baseada em estimativas que obtivemos para outras doenças. Este vírus é novo, nós não sabemos qual é a heterogeneidade na suscetibilidade das pessoas a ele, mas fizemos já estudos anteriores para outras doenças — para a malária, para a tuberculose — e estimámos o intervalo que quantificaríamos. Isto no fundo depois reduz-se a um número: nós temos a média de suscetibilidade numa população e temos a variância. Temos esse parâmetro da suscetibilidade que tentamos estimar: para a malária a variância seria 4 vezes maior do que a média; na tuberculose seria 10 vezes maior.
E no caso do novo coronavírus?
Ainda não sabemos quantas vezes é que é a variância em relação à média da suscetibilidade das pessoas, mas estamos a trabalhar com um intervalo entre 0 e 10. A verdade há-de estar aqui, a medida realista desta variação na suscetibilidade das pessoas há-de estar neste intervalo. Aquilo que vemos é que a partir do momento em que nós quebramos o pressuposto de que as pessoas são igualmente suscetíveis, o comportamento do modelo altera-se, porque começa a haver esta seleção. Enquanto que a imunidade de grupo seria, de facto, 60% a 70% quando a variância é 0, a partir do momento em que a variância começa a aumentar ligeiramente, temos uma queda abrupta desta percentagem da população que precisaria de estar imune para garantirmos imunidade de grupo. Acho que é das coisas mais positivas que constatei desde comecei a estudar isto, portanto estou bastante entusiasmada com a ideia.
Estes 10% a 15% de taxa de imunidade é suficiente?
Penso que será suficiente para impedir novas ondas. Há muita incerteza ainda em relação aos modelos, portanto ressalvando tudo isso, segundo as minhas estimativas, nós devemos estar neste momento em Portugal já com mais de 2% de imunidade. Quando terminarmos esta onda, teremos entre 2% a 3% de imunidade.
Longe ainda dos 10% ou 15%.
Não chegará a 10% nessa altura, mas de 3% para 10% já é alguma coisa que conseguimos ver. Mais uns meses e chegamos lá, enquanto que os 70% era uma coisa completamente fora do nosso alcance. 70% de imunização só por este modo natural, por esta transmissão, nunca mais lá chegaríamos. Ficávamos mesmo dependentes de uma vacina.
Quando é que vamos chegar a esta taxa de imunidade? Vamos conseguir chegar lá?
Penso que estará ao nosso alcance fazer isso. Nós estamos agora a suprimir esta onda e o vírus não vai desaparecer. Vai continuar a circular, infelizmente, mas isso não se pode impedir. Temos que viver com essa ideia de que o vírus anda por aí e nós temos que fazer estudos muito bem feitos, cálculos muito bem feitos para sabermos como voltar a pôr a sociedade a funcionar, correndo o menor risco.
E como é que isso se faz?
Há aqui um compromisso que se vai ter que fazer, não correndo grandes riscos. Vamos ter segundas ondas, mas vamos tentar que sejam pequenas ondinhas. Temos que ir tendo atenção para que a taxa de ocorrência de novos casos não passe acima de um limiar, que nós teremos que definir muito bem qual será. Se começar a subir, vamos ter que acautelar novamente os nossos contactos e reduzir os contactos novamente.
Quando prevê que tenhamos uma nova onda?
Depende em que medida vamos repor os contactos. Da maneira que está, penso que para finais de maio estaremos mais ou menos como estávamos no início de março, quando isto tudo começou em Portugal. Se nessa altura, em que temos poucos casos por dia — menos de 10, na ordem das unidades —, voltássemos aos contactos normais e puséssemos a sociedade a funcionar como estava no início de março, íamos ter um crescimento exponencial, parecido com aquele que tivemos naquela altura. Um bocadinho menor, mais lento, porque temos alguma imunidade de grupo, mas quase naquela proporção. Mas também acho que está fora de hipótese de repor os contactos tais como eram na altura.
Em que sentido?
Iríamos usar máscaras, iríamos ter cuidado na proximidade física que temos com as pessoas e continuaria a haver certos cuidados. Irá haver um ressurgimento e vamos ter que estar constantemente a suprimir. Quando vier um ressurgimento vamos ter que ver como suprimi-lo sem o fazer demasiado tarde, porque já vimos, com alguns dos nossos países vizinhos, o que acontece quando começamos a supressão demasiado tarde. Hoje [13 de abril] tenho estado atenta às notícias e há algumas coisas que oiço dizer e que me preocupam um bocadinho. Há discussões sobre se será bom ter uma estratégia intermitente, ou seja, deixar crescer um bocadinho e suprimir, [a onda] cresce outra vez um bocadinho e volta-se a suprimir ou se devemos fazer uma coisa mais constante.
E qual é a melhor opção?
Penso que a estratégia intermitente não é uma estratégia, a natureza é que é intermitente e nós teremos que responder a essa intermitência que nos é imposta. Acho que ninguém defende uma estratégia intermitente como estratégia. Nestes modelos nós temos este parâmetro, este R0, que é o número básico de reprodução, o número de contágios que cada indivíduo infetado causa em média numa população suscetível. Se este número for maior que 1, temos um crescimento epidémico e se ele for menor que 1, temos um decréscimo que eventualmente levaria à extinção do vírus. Para termos uma ocorrência mais ou menos constante a um baixo nível, teremos que ter este R0, este número de novos casos por cada caso, igual a 1, mas isto é uma situação altamente instável. Isto não fica igual a 1, nós não conseguimos de forma alguma controlar isto. Este 1 é muito instável: se sobe ligeiramente, isto volta a um crescimento exponencial ao qual teremos que responder com intensificação de medidas e se decresce ligeiramente não será induzida a imunidade de grupo. Isto ficar assim no 1 não é possível, não é possível ter uma estratégia constante.
Então qual é a solução?
Acho que vamos ter de aprender a lidar com esta intermitência, porque não somos nós que estamos a criá-la como estratégia, é a natureza que nos está a impor esta intermitência. Suponhamos que temos um vulcão: decidimos que vamos pôr lá uma substância qualquer, que nem o apaga nem o deixa entrar em erupção e fica ali a borbulhar indefinidamente. A natureza não é assim.
É preciso aprender a viver com estes altos e baixos…
Sim. [O vulcão] tem aquele potencial de entrar em erupção, mas é um potencial que está ali latente. Às tantas entra em erupção e depois voltará a apagar e fica ali latente outra vez. O que se passa com as epidemias é assim: existe potencial de haver novos surtos, porque nós não temos imunidade de grupo. Enquanto não tivermos imunidade de grupo, existe sempre esse potencial de voltar a ter um novo surto. Esses novos surtos vão aparecer e nós vamos ter que lidar com eles. Naturalmente quanto mais reduzidos forem os nossos contactos, maior será o espaçamento entre estes novos surtos, entre estas novas erupções, mas elas vão acontecer. Não é o decisor ou o estratega que está a impor, que está a decidir. Não é uma estratégia, é uma resposta a algo que nos é imposto pela natureza.
Isso quer dizer que não é possível impor medidas de maneira a prever esta instabilidade? Como é que isto se resolve, tendo em conta que é algo que não controlamos?
Este R0, o número de contágios por indivíduo infeccioso, depende das taxas de contactos e depende do valor deste R0 se estas micro-ondas vão ser mais próximas ou mais espaçadas. Eu digo micro, porque nós vamos controlá-las, não vamos deixá-las crescer. Nós podemos fazer cálculos, podemos pensar em várias medidas de redução de contactos, várias medidas de distanciamento social. Dependendo do pacote de medidas que se utilizar, podemos tentar fazer previsões de qual será este espaçamento entre surtos. Isso podemos fazer, com o grau de incerteza que todas estas coisas têm e também atendendo a que quanto mais eficaz for o distanciamento social, mais tempo nós vamos ter entre surtos. Se voltarmos à normalidade que tínhamos em fevereiro, o próximo surto será no espaço de um mês. Se no fim de maio voltarmos à normalidade que tínhamos em janeiro e fevereiro, até ao fim de junho já estamos outra vez com um crescimento bem claro e numa situação parecida com aquela que vivemos no mês de março.
Mas isso não seria bom, tendo em conta que precisamos dos tais 10% a 15% de imunidade da população?
Outro cálculo que também sai destes modelos é que quanto mais pequeninos forem estes micro-surtos, menos pessoas são infetadas para ter a imunidade de grupo. Se nós não tivéssemos controlado isto de todo, íamos ter uma epidemia grande que durava cerca de dois meses e ficávamos com imunidade de grupo. Para gerar essa imunidade de grupo dessa forma, muitas muitas pessoas iam ser infetadas. Se formos gerar a mesma imunidade de grupo não numa só onda, mas com duas ondas, o total de infetados nestas duas ondas é menor que o total de infetados numa só onda gigante. Quanto mais baixinhas estas ondinhas forem, umas a seguir às outras, menor é o número de infetados que nos permite atingir a imunidade de grupo. Demora mais tempo, mas também o total de pessoas que ficaram doentes e o total de pessoas que morrem é menor.
Quando diz que demora mais tempo, consegue prever quanto tempo?
Sim. Ainda não fiz isso, isto está a ser tudo tão rápido que não tenho mãos a medir [risos], mas é uma coisa que está nos meus planos.
Tendo em conta esta taxa de imunidade de grupo, dos 10% a 15%, o que muda no cenário em Portugal?
Se calhar vamos ter imunidade de grupo antes de vir a vacina. Penso que, não sei, se calhar lá para o fim do ano, acho que podemos estar mais perto. Para dizer números com muita certeza preciso ainda de fazer mais estudos. Isto é um assunto que estamos ainda a estudar. Estou a basear-me em medidas de heterogeneidade que nós obtivemos para outras doenças e pensando que para este vírus serão parecidas. Agora vamos ter que pegar nos micro-dados que já estão a ser disponibilizados pela Direção-Geral da Saúde (DGS) e tentar medir quanta heterogeneidade é que temos na população, porque isso é absolutamente crítico para obter uma medida mais precisa. Acho que é extremamente positivo estarmos a pensar já que, se calhar, não que temos viver assim até termos uma vacina. Espero que a imunidade por via natural aconteça mais rápido do que a vacina, mas se ela vier ainda mais depressa do que aquilo que está previsto ainda melhor, evidentemente. Mas se não pudermos contar com a vacina para parar isto, acredito que lá chegaremos por esta via de imunização natural. E uma coisa é estar a pensar como chegar de 2% ou 3% de imunidade até 10%. É três a quatro vezes mais do que o que temos de imunidade, mas se fosse até 70%…
Seria muito mais difícil chegar lá…
Seria anos até lá chegarmos. Espero que isto em termos psicológicos e de ânimo seja muito positivo. Com vacina ou sem vacina, acho que livrarmo-nos deste vírus é algo que está ao nosso alcance. Livrarmo-nos do vírus como um problema de saúde, não do vírus em si. O vírus se calhar vai continuar por aí, mas esperemos que nos vá apoquentando menos.
Há pouco perguntava-lhe quando é que vamos chegar a estes 10% a 15% de imunidade. Daqui a alguns meses? Acho que é possível ainda este ano chegarmos lá?
Diria que lá para o inverno, o que seria muito bom para isto não se misturar com os vírus da gripe e das outras coisas.
Acha possível?
Sim, acho possível. As estimativas não são ainda muito precisas, acho que temos 2% a 3% de imunidade até ao fim desta primeira onda, mas não tenho a certeza. Se a taxa de assintomáticos se vier a mostrar maior do que aquilo que estou a assumir nos meus modelos, então estaremos ainda mais perto. Há ainda alguns graus que podem tornar isto numa coisa ainda mais otimista. Se as ondas que se espera que venham a seguir a contermos esta vierem cada vez com menos força, cada vez a nossa imunidade será maior. Podemos estar a dizer que isto vai demorar até ao fim do ano, mas também vai sendo atenuado ao longo do tempo.
E até atingirmos esta taxa de imunidade, quantas ondas é que poderemos ter? Duas, três, quatro? Ou isso vai depender das medidas forem impostas à medida que o número de casos aumentar?
Depende do quanto as ondas crescerem, depende da dimensão de cada onda e depende também de quantas infeções assintomáticas acontecem com cada onda, porque nós não temos dados sobre isso, mas com os testes de anticorpos vamos poder estimar isso. Diria talvez umas quatro ondas, sendo que serão atenuadas. Cada uma virá com menos força do que a anterior, mas é um número que estou a atirar com base naquilo que conheço e que tem muitas lacunas. Não temos uma quantificação dos assintomáticos e ainda não fui estudar os micro-dados que nos vão dar uma boa medida da heterogeneidade na suscetibilidade da população e que seja específica a este vírus. Estou-me a basear em outras doenças.
No seu estudo tem também um gráfico sobre estratégias para combater o novo coronavírus. Portugal utilizou a estratégia da supressão…
Sim.
Relativamente a essa estratégia, vê-se uma onda pequena e depois uma outra onda. Nas outras (mitigação e sem intervenção), vejo uma onda muito acentuada. Isto tem a ver com o tipo de medidas que são impostas à população? Se Portugal usou esta metodologia da supressão, foi a correta?
Penso que sim. Tenho uma curva a azul, que diz mitigação e que tem uma redução moderada nos contactos sociais — 40% ou algo assim. Depois tenho uma curva laranja, que é a supressão e que tem uma redução mais acentuada nos contactos (75%), portanto a onda é mais pequena e depois vem uma outra. No caso da onda azul, foi suficientemente grande para conseguir induzir imunidade de grupo, porque infetou muita gente e na laranja não atingimos a imunidade de grupo, portanto ficamos sujeitos a futuras ondas. Fiz aquela segunda onda sem qualquer contenção para mostrar o potencial epidémico que ainda tínhamos. Não estava a sugerir que se deixasse tal onda crescer sem controlo.
Esta segunda onda aconteceria se nada se fizesse em relação ao aumento do número de casos?
Exatamente. O que seria inconcebível, isso não se ia fazer. Mas de qualquer maneira ela dá uma ideia do quanto potencial epidémico ainda mantemos. Naturalmente que se os casos voltarem a subir nós vamos contê-la novamente. Ela há-de voltar querer subir passado uns meses e nós haveremos de contê-la novamente.
Portanto em vez de termos estas duas ondas, teríamos as tais três ou quatro ondas que tinha falado…
Exato, teríamos as várias ondinhas cada vez mais pequeninas, cada vez com menos força. Existe uma diferença fundamental entre estas duas curvas, entre a mitigação e a supressão. No caso da mitigação, o R0 nunca vai abaixo de 1, por isso é que nós conseguimos ir induzindo a imunidade de grupo.
Porque o número de pessoas contagiadas é maior.
Exato. Na curva laranja, o R0 é de facto trazido para baixo, para valores inferiores a 1. Deixa de induzir imunidade de grupo, porque quando o R0 vem para valor abaixo de 1 já não estamos a ter aquele crescimento [de casos]. Estamos simplesmente a ir vendo os casos que já são praticamente inevitáveis, porque já foram infetados antes do R0 chegar a valores inferiores a 1 ou cadeias muito próximas das pessoas que foram infetadas quando o R0 ainda era superior a 1. A partir do momento em que o R0 vai para baixo de 1, isto vai caindo e eventualmente chega a valores muito próximos de zero. Se o R0 for forçado a ficar em valores abaixo de 1, temos tão poucos casos que não vamos induzir imunidade de grupo. Agora qualquer alívio na contenção dos contactos que faça com que o R0 volte acima de 1, voltamos novamente a ter um crescimento, porque o potencial está lá, as pessoas não estão imunes.
E porque o vírus não desapareceu e não há vacinas.
Sim. Por isso é que acho que estas ideias de manter isto a um nível constante e muito baixo durante meses e calcular exatamente como é que seria a nossa vida, a nossa nova sociedade é uma utopia. Não é possível, porque a dinâmica destas coisas não é assim. Qualquer coisinha faria com que isto vacilasse e subisse o R0. Até uma coisa local ou um acontecimento numa região do país, em que houvesse mais um aglomerado de pessoas que já se sentisse confortáveis. [Se] naquele local subisse acima de 1, então começa outra vez a propagar-se. Isto não se consegue manter, é muito instável.
Mas não se pode trancar as pessoas em casa eternamente, não podemos manter a economia parada eternamente…
Exatamente e acho muito bem que se vá voltando com cautela. Não vamos é poder estar a imaginar que isto vai ficar assim contido a um nível constante. Não vai. Vamos ter estes sustos de vez em quando. Vamos ter que estar muito atentos, a monitorizar muito bem, porque vamos ter surtos a surgirem e nós vamos ter que decidir rapidamente, atuar rapidamente para suprimi-los.
Portanto é permitir que haja estes surtos, impor medidas outra vez para não deixar subir a onda, mas esperar que isso aconteça. Estas ondas vão acontecer.
Sim. Não podemos estar a tentar magicar uma estratégia que impeça os surtos de acontecerem. Os surtos vão acontecer, enquanto não tivermos imunidade de grupo. Temos que aceitar isso e prepararmo-nos para saber lidar com eles, para suprimi-los rapidamente.
Este estudo que fez foi com base noutras epidemias. Com a disponibilização de dados por parte da DGS poderá alterar alguma coisa?
Está nos meus planos [pedir os dados à DGS]. É uma das prioridades, acho que seria muito importante fazermos isso e tentarmos então ver quanto é que precisamos de imunizar esta população para podermos atingir a imunidade de grupo.
Esta percentagem dos 10% a 15% até pode ser vir a ser uma percentagem diferente.
Sim. Quanto maior for a tal variação da suscetibilidade, menor será a imunidade de grupo.
Tem-se falado muito nesta questão do pico: há quem diga que se atingiu o pico, há quem diga que não. Qual é a sua opinião? Portugal já atingiu o pico?
Acho que sim. Enquanto o distanciamento social continuar nós já passámos o pico. Naturalmente se voltar a intensificar-se, volta a subir.
E quando é que tivemos esse pico?
Penso que em fins de março, início de abril. Foi quando a minha curva deu a volta e os dados de facto têm estado a acompanhar essa curva.