A cura total de determinados tipos de cancros já é possível graças às terapias de precisão com células Car-T. Em Portugal, estes tratamentos têm sido feitos com sucesso desde 2019 a doentes com linfoma ou leucemia. Na maioria, ficam livres da doença.
Foi sobre esta medicina que se falou no passado dia 27 de outubro, a propósito da cerimónia de entrega da Bolsa de Investigação Building Future Knowledge (ver caixa), promovida pela APCL e pela Sociedade Portuguesa de Hematologia e com o apoio da Gilead Sciences. Em parceria, o Observador e a Associação Portuguesa Contra a Leucemia falaram, em mesa-redonda, sobre “O Futuro da Medicina de Precisão em Portugal”, juntando o Dr. Alexandre Valentim Lourenço, obstetra e presidente da Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos; a Dra. Catarina Baptista, investigadora e vice-presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH); o Prof. Dr. Manuel Abecasis, hematologista e presidente da Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL); e a Prof.ª Dra. Ana Paula Martins, diretora de governmental affairs da Gilead Sciences.
Um caso real
A Medicina de Precisão é uma disciplina altamente inovadora e disruptiva e, para mostrar os seus efeitos práticos, nada melhor do que um caso real. Assim, a cerimónia começou com a exibição de um vídeo no qual um ex-doente oncológico conta como a terapia com células Car-T lhe permite viver em remissão. Havia sido tratado com recurso a quimioterapia e radioterapia sem que o linfoma cedesse. Sem a Medicina de Precisão, não havia esperança.
Nem de propósito, uma das palavras que mais se ouviu durante a talk foi esperança. Esperança para os doentes, para os próprios médicos, para a investigação e para a medicina como um todo. Porque embora nem todos os doentes possam receber este tratamento, a evolução da Medicina de Precisão continua a acontecer e, possivelmente, muitas pessoas poderão vir a usufruir desta grande inovação. Fala-se em cerca de 20 anos, mas Manuel Abecasis (APCL) acredita que poderá ser antes disso.
A maior das esperanças
As terapias de precisão são terapias personalizadas, nas quais cada doente tem a sua terapêutica. Esta é fabricada a partir de células do próprio doente que, após colhidas, são geneticamente modificadas em laboratório tornando-se capazes de reconhecer as células cancerígenas daquela pessoa. São, então, aplicadas como medicamento para atacar o cancro, destruindo-o. Ficção científica? Não. Este tratamento é uma inovadora realidade e Portugal já o praticou em 70 pessoas desde 2019. Manuel Abecasis revelou que estas modificações celulares não se fazem em Portugal e, em todo o mundo, há poucos laboratórios com esta tecnologia. “No início, as células iam para laboratórios na Costa Oeste dos Estados Unidos, ou seja, atravessavam o oceano e muitos quilómetros de terra firme”, recorda o médico. Hoje, os três hospitais portugueses certificados para administrar estes tratamentos (Santa Maria, IPO de Lisboa e IPO do Porto) enviam as células para a Holanda. Em cerca de 15 dias, o doente já pode começar a receber o tratamento.
Financiamento precisa-se
A Medicina de Precisão é uma inovação recente mas, como explicou Ana Paula Martins (Gilead), a investigação que a tornou possível teve início nos anos 1960. Assim, embora a Gilead Sciences seja pioneira nestas tecnologias de saúde inovadoras, estas longas décadas de investigação e know-how vão permitir que outros laboratórios também venham a produzir este “medicamento pessoal”. A diretora realça que, além de fornecer esta tecnologia, a Gilead também tem a responsabilidade de certificar os Centros que aplicam as terapêuticas. Neste momento, o IPO de Coimbra está em processo de certificação.
Catarina Batista, da APAH, também refere a importância da investigação e da criação de know-how e refere que é fundamental que esta investigação seja financiada. Lembra que a Medicina de Precisão existe para melhorar os resultados clínicos e, por isso, “é preciso criar o awareness de que a Medicina de Precisão precisa de ser integrada no nosso sistema de saúde”. Para isso, refere que tem de haver alterações de financiamento e de valorização de resultados pois há que tornar as terapias com Car-T acessíveis a um maior número de pessoas. Nesse sentido, para propor modelos de financiamento exequíveis, a APAH criou, juntamente com a Ordem dos Médicos, a Agenda Estratégica para o Futuro da Medicina de Precisão em Portugal.
Escalar é o próximo passo
A urgência em que a Medicina de Precisão seja democratizada é uma visão comum a praticamente toda a classe médica, ciente de que esta é uma terapêutica disruptiva mas já testada e de eficácia comprovada. A Ordem dos Médicos é uma das vozes que se levanta nesse sentido. “É preciso ver que nós damos saltos tecnológicos que nos permitem, de repente, tratar melhor uma doença e curarmos doenças”, reforçou Alexandre Valentim Lourenço. E frisou ainda que a Medicina de Precisão é a melhor opção para aumentar a sobrevida e a melhoria dos doentes. “Hoje temos 70 doentes tratados e, daqui a uns anos, vamos estar a tratar sete mil, a preços mais baixos porque o mercado vai se encarregar disso. Depois, temos de pegar nesta tecnologia e deixar de tratar apenas os cancros mais dificeis para tratar todos os cancros e muitas outras patologias”. O representante da Ordem dos Médicos explica, assim, a necessidade de escalar a Medicina de Precisão, fazendo-a chegar a mais e mais pessoas doentes. Explica que a Agenda Estratégica tem o objetivo de democratizar esta medicina “para quem precisa dela hoje e para quem vai precisar dela amanhã, e isso é essencial fazermos já”.
Building Future Knowledge fomenta investigação
↓ Mostrar
↑ Esconder
Nuno Rodrigues dos Santos, Investigador Auxiliar do IPATIMUP e do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto é o vencedor da 4.ª Edição da Bolsa Building Future Knowledge. Esta iniciativa, promovida pela Associação Portuguesa Contra a Leucemia e pela Sociedade Portuguesa de Hematologia, com o apoio da Gilead Sciences, visa fomentar a investigação científica e epidemiológica nas áreas das neoplasias de células B maduras.
Há vários anos que Nuno Rodrigues dos Santos investiga nesta área e explica que o trabalho para o qual recebeu esta Bolsa pretende demonstrar que “se usarmos um anticorpo para o nosso alvo terapêutico, os linfócitos T respondem às células malignas de linfoma”.
O investigador considera que é possível fazer boa investigação em Portugal e que, para isso, é preciso pessoal qualificado e financiamento. Afirma que, quanto a pessoal qualificado, o nosso país não carece de recursos e, nas suas palavras, os apoios como o da Bolsa que agora recebe “são sempre muito importantes como estímulo para a investigação em Portugal e são o reconhecimento da qualidade da investigação que se faz no país”.