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O movimento "Médicos Pela Verdade" foi criado em agosto. As queixas à Ordem dos Médicos foram quase imediatas
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O movimento "Médicos Pela Verdade" foi criado em agosto. As queixas à Ordem dos Médicos foram quase imediatas

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

O movimento "Médicos Pela Verdade" foi criado em agosto. As queixas à Ordem dos Médicos foram quase imediatas

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

"Médicos Pela Verdade". Ordem abre processo contra movimento que nega a gravidade da Covid-19

Uma das queixas está já em fase de instrução. Grupo minimiza a gravidade da Covid-19, é contra uso generalizado de máscaras e diz que fazer testes ou isolamento assintomáticos não é necessário.

A Ordem dos Médicos (OM), por meio dos conselhos disciplinares regionais, vai investigar um conjunto de “informações, denúncias, documentação e queixas relacionadas com os médicos que integram o movimento [Médicos Pela Verdade] e com as ideias por eles propagadas”, informou fonte do gabinete do bastonário. O Observador sabe que pelo menos uma queixa contra o referido movimento e os médicos que o fundaram já está em processo de instrução.

Entre outras alegações, o movimento nega que exista uma pandemia de Covid-19, é contra a testagem e o isolamento de pessoas assintomáticas e rejeita do uso de máscara de forma generalizada. As ideias que defendem têm sido difundidas através das redes sociais e em artigos de opinião publicados na imprensa, incluindo no Observador. Por causa disso, e desde que o grupo foi fundado, no final de agosto, começou a circular no Facebook um modelo de carta a enviar à Ordem dos Médicos, alertando para o “perigo” que a ação do movimento representa para a saúde pública. “A OM o que faz em relação aos Médicos Pela Verdade? Está a par da perigosa desinformação que tem vindo a publicitar por todas as vias de informação possíveis?”, são algumas das questões levantadas nas cartas que começaram a chegar à Ordem e que levaram à abertura do processo.

Em resposta ao Observador, Joaquim Sá Couto, um dos médicos que faz parte do movimento, diz não ter conhecimento do processo aberto pela Ordem dos Médicos, mas vê-o com bons olhos. “Se há um inquérito, não sabia, mas vejo isso como extremamente positivo no sentido de haver um escrutínio daquilo que as pessoas dizem e fazem“, explica o cirurgião geral, mantendo, ainda assim, alguma distância: diz que não tem “acompanhado de tão próximo” tudo o que o movimento tem defendido e, por isso, não pode dizer se apoia “todas as coisas que fazem ou dizem”.

Ainda assim, sublinha que, tendo em conta a “narrativa oficial” que existe sobre a Covid-19, “todos os que têm uma opinião contrária estão sujeitos a um certo escrutínio”, pelo que acha “normal” e positiva a investigação da Ordem dos Médicos.

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O movimento foi apresentado num evento divulgado nas redes sociais. “O nosso objetivo é juntar os médicos que estão descontentes com o discurso oficial, que decorre em paralelo com a realidade”, disse Gabriel Branco, um dos fundadores do movimento, nessa altura. O grupo, que se apresenta como “um agrupamento de médicos de diversas especialidades, de diversos escalões etários e sem qualquer vínculo a qualquer fação religiosa”, não tem nenhum virologista, infecciologista, pneumologista ou especialista em Saúde Pública — áreas de referência para os assuntos relacionados com a infeção com SARS-CoV-2 e a pandemia de Covid-19 — pelo menos identificados na página oficial.

"A ciência não é a arte de usar dados para mostra aquilo em que acreditamos. É manter uma dúvida razoável e ler os resultados imparcialmente."
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública

Uma das queixas que chegou à Ordem diz respeito, precisamente, a Gabriel Branco, acusado de incitar à desobediência no uso de máscaras. Além disso, o médico — que é diretor de Neurorradiologia do Hospital de Egas Moniz — é acusado também por colegas, profissionais do serviço que dirige, de não usar máscara em permanência quando está nas áreas comuns do espaço, como foi definido pela Direção-Geral da Saúde. Contactado pelo Observador, o médico confirma que não usa sempre a máscara, mas garante que só a tira quando está no gabinete. Ao Observador, fonte do hospital explica que o gabinete é um dos espaços comuns.

Movimento minimiza a gravidade da doença causada pelo coronavírus

A “retoma da atividade do SNS [Serviço Nacional de Saúde] sem quaisquer restrições” é o primeiro ponto dos objetivos do movimento. Outro é “defender o direito ao Consentimento Informado, por escrito, oral explícito ou implícito, para todos os atos médicos, preventivos, diagnósticos ou terapêuticos”. Duas metas que reúnem facilmente a aprovação de profissionais de saúde e doentes.

Os restantes objetivos, no entanto, assentam em argumentos que não são fundamentados pelo conhecimento científico ou que adaptam as publicações científicas às conclusões que pretendem tirar, segundo alguns especialistas ouvidos pelo Observador. “A ciência não é a arte de usar dados para mostrar aquilo em que acreditamos. É manter uma dúvida razoável e ler os resultados imparcialmente”, diz Ricardo Mexia, médico de Saúde Pública.

As máscaras

Uma das bandeiras do movimento é a rejeição do uso de máscaras — não durante a prática clínica, onde anteriormente já as usavam, mas em todas as outras situações da vida profissional ou social. Na conferência de imprensa de apresentação do movimento, que aconteceu num espaço fechado, nem os oradores nem a audiência estavam a usar máscara, como é possível ver nas imagens do vídeo divulgado.

Na conferência de imprensa que anunciou a criação do movimento Médicos Pela Verdade, dia 29 de agosto, ninguém estava com máscara apesar de estarem num espaço fechado

No Manifesto, o grupo critica “o exagero nas medidas implementadas, como a obrigatoriedade do uso de máscaras na população”, e define como um dos objetivos informar as pessoas de que “o uso de máscaras pela população em geral aumenta o risco respiratório”. Se é certo que, em doentes específicos, o uso de máscara pode ser desaconselhado pelo médico assistente, para a população em geral tal não se verifica, diz Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública.

Quem não concorda com a visão do movimento lembra que, se o uso prolongado de máscaras fosse realmente tão prejudicial, já há muito que haveria informação sobre isso, fosse entre trabalhadores que têm de as usar, por causa das funções específicas que exercem, ou doentes, nomeadamente os imunodeprimidos. “Existem variadíssimos estudos que mostram que milhares de trabalhadores que trabalham com tintas, sprays ou outros gases tóxicos no mundo — e os médicos, naturalmente — utilizam máscaras P2 e P3 durante muito tempo sem consequências”, diz ao Observador Vasco Ricoca Peixoto, investigador na Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa.

“Numa fase inicial, também não advogava o uso generalizado de máscara, porque a evidência não existia”, admite Ricardo Mexia. Mas o conhecimento foi evoluindo ao longo do tempo e o médico de Saúde Pública diz que a informação disponível neste momento confirma a importância na prevenção da transmissão do vírus.

A análise do que aconteceu nos últimos meses e o aumento do conhecimento da doença e do comportamento do vírus poderá permitir, por exemplo, que se venha a reduzir o período de isolamento profilático das pessoas sem sintomas que tiveram contactos de risco, diz o médico. As medidas, refere, têm sido adotadas de uma forma dinâmica consoante o conhecimento adquirido. Esse conhecimento permite saber também que os assintomáticos podem ter altas cargas virais e serem transmissores do vírus. Daí a necessidade de uso de máscara mesmo por quem não tem sintomas.

“A máscara serve em inúmeras situações em medicina para proteger o outro: o cirurgião para não colocar bactérias em áreas estéreis do doente operado ou o doente com tuberculose para minimizar o risco para outros.”
Vasco Ricoca Peixoto, investigador na Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa

Tiago Tribolet de Abreu, especialista em Medicina Interna no Hospital Espírito Santo de Évora, diz também não entender a ideia de prevenção para proteger os outros — nomeadamente no uso de máscaras —, quando as recomendações em saúde são feitas para proteger o próprio. “Passámos de um conceito do uso de máscara para proteção do próprio contra infeções, para um conceito em que o uso de máscara é para proteção dos outros”, diz o médico num vídeo publicado na página do movimento. “Em saúde em geral, as recomendações de saúde servem para proteção do próprio.”

O médico de Saúde Pública Ricardo Mexia diz que a afirmação não podia estar mais desenquadrada da realidade porque as medidas de saúde pública tomam-se com vista a proteger os próprios, mas também terceiros — tal como a imunidade de grupo criada pela vacinação pretende proteger os que não podem ser vacinados. “As medidas de saúde pública são o mais abrangente, de maneira a que possamos proteger a saúde de todos.”

Vasco Ricoca Peixoto, médico interno de Saúde Pública, completa com exemplos em que as medidas, nomeadamente o uso de máscara, são feitas para proteger os outros e não o próprio. “A máscara serve em inúmeras situações em medicina para proteger o outro: o cirurgião para não colocar bactérias em áreas estéreis do doente operado ou o doente com tuberculose para minimizar o risco para outros.”

Os testes PCR

Outro dos grandes alvos do movimento Médicos Pela Verdade são os testes de diagnóstico por PCR. Nos objetivos propõe-se refutar os dados obtidos por este tipo de testes e acabar com a testagem de pessoas que não têm sintomas. O argumento expresso no Manifesto do grupo diz que “o uso de um teste RT-PCR, que não foi de modo algum criado para fazer este tipo de diagnóstico, leva a um elevado número de falsos positivos o que está de acordo com a elevadíssima percentagem de casos assintomáticos”.

O argumento apresentado encerra, contudo, três informações erradas ou deturpadas, defende em declarações ao Observador Celso Cunha, virologista no Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Primeiro, é verdade que a técnica de PCR, quando foi criada nos anos 1980, não foi pensada como um teste de diagnóstico, mas como uma forma de amplificar porções de ácidos nucleicos, ou seja, aumentar o número de pedaços de material genético para que fosse possível detetá-lo e analisá-lo com a tecnologia que existia na época. A descoberta — tal como tantas outras em ciência — acabou por dar importantes contributos noutras áreas, como a Biologia Celular e Molecular ou a Genética. E entre as aplicações surgiu também a possibilidade de detetar a presença de determinados vírus, por amplificação de uma porção específica do código genético.

Em segundo lugar, o virologista nega que exista um elevado número de falsos positivos para SARS-CoV-2 usando PCR e parte da resposta relaciona-se com a sua origem: o método é adaptado de forma a ser altamente específico da molécula que se quer detetar. Portanto, “a probabilidade de amplificar outra porção do material genético [que não o alvo específico] é muito escassa”. O investigador não arrisca dizer que nunca acontece, porque em ciência há sempre exceções, mas será uma quantidade desprezável e não com o impacto que o movimento pretende atribuir.

“Estar a detetar apenas ácidos nucleicos não é impossível, mas é muito improvável.”
Celso Cunha, investigador no Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa

Por fim, Celso Cunha diz que não é por causa dos testes que há um elevado número de assintomáticos. “Ser assintomático depende do sistema imunitário, não do vírus.” Mas explica o que pode suscitar algumas dúvidas: como o teste de PCR deteta porções do vírus e não partículas virais intactas, pode acontecer que a pessoa testada ainda tenha algum material genético do vírus, sem ter o vírus presente. Ou seja, esteve infetada no passado, mas já não está naquele momento. Mas como o material genético dos coronavírus — o ARN — é instável e se degrada com relativa facilidade, é pouco provável que se essas porções existam durante muito tempo depois das partículas do vírus terem desaparecido. “Estar a detetar apenas ácidos nucleicos não é impossível, mas é muito improvável.”

Parte da desvalorização da gravidade da pandemia pelo grupo resulta também do facto de considerarem que não há infetados, há testes positivos, e que só quando há sintomas é que se pode considerar que houve uma infeção com o vírus. No entanto, a infeção acontece sempre que um agente patogénico (capaz de causar uma doença) invade os tecidos de um organismo — no caso, quando SARS-CoV-2 entra nas células humanas, segundo explicou ao Observador o virologista Celso Cunha. Haver infeção não implica que haja sintomas — basta pensar nas pessoas infetadas com o VIH que nunca desenvolvem sida —, o que não quer dizer que as pessoas não possam transmitir o vírus — como repetidamente tem explicado a Direção Geral da Saúde.

A pandemia

O movimento destaca ainda as “discrepâncias que existem entre a gravidade atual da Covid-19 e as medidas que estão a ser implementadas” e a “desproporção entre o mediatismo do fenómeno e a gravidade do mesmo” — e acusa a comunicação social de “alimentar o medo e o pânico na população”. Não negam a existência do vírus — embora alguns dos elementos neguem que seja um vírus novo (em contraciclo com a comunidade científica) —, mas falam numa “virose respiratória”, “que pode ser muito grave nos pacientes com imunidade deprimida, doenças pré-existentes ou idade muito avançada”.

É certo que muitos dos doentes de risco para a Covid-19 são também doentes de risco para a gripe, mas a taxa de letalidade por Covid-19, em geral, é muito maior do que a da gripe, segunda OMS. E, entre os idosos, a diferença é ainda mais significativa. E isto considerando que muitos países do mundo implementaram medidas de confinamento, distanciamento social ou uso de máscaras que ajudou a conter a disseminação do vírus. Sem estas medidas, dizem os epidemiologistas, haveria, certamente, mais infetados e mais mortos.

Estudo em 11 países diz que confinamento terá evitado mais de três milhões de mortes

“A minha posição geral sobre a crise está expressa. Digo aquilo que tenho a dizer como cidadão e como médico”, diz Gabriel Branco, um dos fundadores do movimento, ao Observador, acrescentando que “a opinião dos especialistas vale zero quando há estudos publicados.” Para os elementos do movimento, o mais importante é ter ensaios clínicos e artigos que façam uma revisão sistemática dos artigos publicados. “Numa situação de emergência não é fácil — e até levanta problemas éticos importantes — dar prioridade à investigação experimental”, diz Ricardo Mexia. “Uma parte da evidência é construída com estudos observacionais e experimentais.” Estudos que os Médicos Pela Verdade tendem a desconsiderar no que diz respeito à pandemia de Covid-19.

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