Há países onde Mein Kampf não só é fácil de encontrar nas livrarias como é um apreciável sucesso comercial. É o caso da Índia, onde as vendas acumuladas, desde a primeira edição, em 1928, ascendem a 100.000 exemplares. Na Turquia, uma reedição efetuada em 2005 e publicitada como “um clássico da literatura anti-marxista” vendeu 100.000 exemplares em apenas dois meses (metade, segundo outras fontes), um êxito possivelmente associado ao peso crescente do islamismo na política e na sociedade turcas e ao acirrar do anti-semitismo (num país que albergou durante séculos uma importante comunidade judaica).
No mundo árabe, a primeira tradução foi sujeita, com permissão de Hitler, a uma revisão que suavizava as diatribes contra as “raças inferiores” (mas não as que visavam os judeus), mas nunca chegou a ser impressa. Em traduções posteriores, o livro tem tido alguma circulação e chegou ao 6.º lugar no top de vendas da Palestina (o lugar atingido é menos surpreendente do que saber que alguém contabiliza regularmente os livros vendidos num país tão precário como a Palestina). No Japão surgiu em 2008 uma versão manga, numa coleção destinada a colocar os jovens em contacto com “clássicos da literatura” (uma distinção que Mein Kampf está longe de merecer).
Nalguns países existem restrições de diverso grau e natureza à sua publicação e comercialização: na Rússia é proibido desde 2010, por incitar ao extremismo; na Holanda é legítima a sua posse, mas não a sua venda; no Canadá não há obstáculos legais à publicação, mas a principal cadeia de livrarias recusa vendê-lo; em França, a editora detentora dos direitos, vinculada à direita nacionalista, foi alvo de um processo por incitação ao ódio racial, mas acabou por continuar a poder vender o livro, ainda que com a obrigação de incluir um texto de oito páginas que coloca a obra no contexto das calamidades desencadeadas pelo III Reich.
Compreende-se que nalguns países o assunto seja particularmente sensível, como é o caso de Israel: Mein Kampf foi traduzido para hebreu em 1992, mas numa edição parcial, densamente anotada e com tiragem minúscula, destinada a estudantes de história alemã, não ao público em geral. Na Áustria, a publicação está proibida ao abrigo de uma lei que interdita a glorificação ou promoção do nazismo. Na Alemanha, o Estado da Baviera assumiu-se como detentor dos direitos de autor do livro e tem vindo a impedir a sua publicação, com o apoio do governo federal, ainda que a posse do livro seja legal, tal como o é a transação de exemplares antigos.
Tem havido várias pressões para que a interdição de publicação seja levantada, algumas delas invocando o ditado de que “o fruto proibido é o mais apetecido”. Uma proveio, surpreendentemente, do Conselho Central dos Judeus da Alemanha, cujo secretário-geral defendeu, em 2008, que a publicação seria a forma de “impedir os neo-nazis de se aproveitarem” da obra e de “dissipar os mitos que a envolvem”, oferecendo mesmo os seus préstimos para a preparação de uma edição anotada. Tal posição seria contrariada pelo secretário-geral que lhe sucedeu, que se opôs à publicação de uma obra “repassada de anti-semitismo e ódio”.
Sendo previsível que com a expiração dos direitos de autor no dia 1 de janeiro de 2016 e a consequente entrada do livro no domínio público, surjam várias edições descontextualizadas, o Instituto de História Contemporânea de Munique assumiu a responsabilidade de preparar uma edição anotada, com 2000 páginas, a maior parte das quais correspondentes a notas – o veneno é comercializado, mas acoplado a um frasco com o seu antídoto – que chegará às livrarias a 7 ou 8 de janeiro.
Mein Kampf em português
Em Portugal, o livro foi publicado pela primeira vez em 1976, pelas edições Afrodite, em tradução, a partir do alemão, de Jaime de Carvalho. É essa tradução, revista e precedida de um prefácio sumário de António Costa Pinto, mas sem qualquer outra contextualização (à excepção de uma ou outra nota sumária), que agora chega às livrarias portuguesas, pela mão da E-Primatur.
Entre uma e outra, houve uma edição da Hugin, em 1998, que foi retirada do mercado em resultado de pressões da embaixada alemã e da comunidade judaica e de alguma contestação da “sociedade civil”.
Qualquer leitor de Mein Kampf, seja qual for a sua convicção ideológica, terá de munir-se de imensa paciência para enfrentar esta mistura inepta de autobiografia, manifesto político e manual de psicologia de massas, escrito numa prosa veemente, bombástica, pedestre e redundante, estribado em raciocínios descabelados, tautológicos e circulares e que saltita indisciplinadamente entre assuntos sem nexo entre eles – o arrazoado de um Maquiavel de cervejaria que se estende por 650 penosas páginas. O título originalmente proposto por Hitler – Viereinhalb Jahre (des Kampfes) gegen Lüge, Dummheit und Feigheit (Quatro anos e meio (de luta) contra mentiras, estupidez e cobardia) – reflecte melhor do que o Mein Kampf sugerido pelo editor Max Amann a verdadeira natureza da obra.
Retrato do Führer enquanto jovem: omissões, distorções e mentiras
Adolf Hitler (1889-1945) conta-nos que proveio de origens humildes e que o pai, Alois, sempre tinha lutado “para se tornar qualquer coisa de mais elevado”. Não diz, porém, que essa “elevação” passou por Alois ter mudado o nome de família de Schicklgruber, de ressonâncias rústicas, para um mais distinto Hitler. Pode parecer um detalhe de somenos, mas talvez tenha dado um empurrão à ascensão política do filho – não é preciso ser-se especialista em propaganda para perceber que “Heil, Schicklgruber!” tem pouco potencial para arrebatar as massas.
O retrato que Hitler traça da sua adolescência, em rebeldia contra a autoridade paterna e apaixonado pelas artes, tem muito que se lhe diga. É certo que Alois se opôs a que o filho seguisse uma carreira artística e lhe destinava uma carreira de funcionário público, mas Adolf jamais mostrou possuir o talento e a persistência para singrar no mundo artístico. E apenas parte do péssimo desempenho escolar de Adolf pode ser explicado pelo conflito com Alois (como Hitler pretende no livro), pois, após a morte do pai, em 1903, e a mudança para uma escola mais a seu gosto, o seu aproveitamento continuou a ser lamentável.
Hitler conta-nos que, com 16 anos, rumou a Viena para seguir a carreira artística a que se imaginava destinado, mas a verdade é que os primeiros anos passados na capital do império foram de boémia e “ociosidade parasítica” (a expressão é de Ian Kershaw, na sua biografia de Hitler), alimentadas pela pensão de orfandade e pelo dinheiro enviado pela mãe, Klara. As suas candidaturas à Academia de Belas Artes foram rejeitadas e, vendo as pinturas de Hitler desta época, percebe-se porquê: são obras destituídas de imaginação, identidade ou vitalidade. Aliás, quando Hitler conta que subsistiu como pintor em Viena “esquece-se” de dizer que a sua “pintura” pouco tinha de artístico: eram banais vistas de Viena, a maioria copiadas de calendários e bilhetes-postais, para vender a turistas como recordação.
A ausência, no material que chegou aos nossos dias, de pinturas ou esboços tendo por assunto o corpo humano é sintomático das suas limitações como artista (convém aqui realçar que muitas das obras atribuídas a Hitler que se encontram na Internet são falsificações ou atribuições fantasiosas – muitas são fáceis de identificar, pois ostentam datas posteriores a 1917, ano em que Hitler pôs de lado os pincéis).
Após a morte da mãe, Klara, em 1907, Hitler regressou a Viena, desta feita com o objectivo de se tornar arquitecto (ou melhor, um grande arquitecto, já que a sua inclinação fantasiosa só lhe permitia imaginar feitos grandiosos), mas sem tomar nenhuma acção nesse sentido: prosseguiu a vida de “indolência, preguiça e auto-indulgência” (Kershaw) que levara até então. Quando o dinheiro que herdara da mãe e o que a tia Johanna lhe emprestara se esgotou, Hitler tornou-se num sem-abrigo, magro, esquálido, envergando roupas infestadas de percevejos. Hitler trata a sua juventude em Viena no capítulo “Anos de estudos e sofrimento em Viena”, mas na verdade Hitler não fez qualquer estudo em Viena (a não ser que se tome por “estudo” a leitura dos jornais populistas deixados nas mesas dos cafés) e o sofrimento, embora real, foi uma consequência inevitável do rumo ocioso, diletante e irresponsável que imprimiu à sua vida. Claro que no relato vago que faz, Hitler dá antes a impressão de ter sido vítima de misteriosos infortúnios.
O que o salvou da completa ruína foi um companheiro de asilo com carácter mais empreendedor, que o persuadiu a pedir novo empréstimo à tia Johanna, para poder “prosseguir os estudos” – na realidade, foi usado para comprar materiais para montar um negócio com aguarelas de vistas de Viena, que Hitler pintava e o parceiro impingia aos turistas. Kershaw conta que, no final de 1910, poucos meses antes da morte da tia Johanna, todas as poupanças desta foram retiradas da sua conta e que o destinatário mais provável da soma foi o seu adorado sobrinho que “estudava” em Viena.
A guerra faz desabrochar um talento
Em Maio de 1913, Adolf recebeu, finalmente, a sua quota na herança de Alois, e trocou Viena por Munique. O livro omite a herança e é vago sobre as actividades e objectivos de Hitler, quer em Viena quer em Munique. No início do capítulo “Munique”, Hitler prossegue com a dissimulação e a mentira, embora admita que a pintura já não é a carreira que pretende: “pintava para, dessa maneira, assegurar a minha vida, ou melhor, para assim poder continuar os meus estudos”, sem especificar qual a natureza ou propósitos destes “estudos” – num esboço autobiográfico de 1921, declararia que fora para Munique na qualidade de “designer de arquitectura” ou “pintor de arquitectura”, embora não tivesse qualificações nem talento para exercer estas actividades. Na verdade, em Munique Hitler prosseguiu, sem grande empenho, a sua actividade de pintar aguarelas de locais famosos da cidade para vender a turistas – e há que reconhecer que algumas obras desta fase, ao menos, revelam um mínimo de competência técnica.
Nesta mediocridade apagada, abúlica e sem rumo poderia ter-se escoado a existência de Hitler, não fosse a I Guerra Mundial. Embora fosse cidadão austríaco, ofereceu-se como voluntário para o exército alemão e combateu na Flandres. Quer Mein Kampf quer as histórias que fez correr à época – e que são hoje consensualmente aceites – mostram-no directamente envolvido nos combates, desempenhando arriscadas missões como estafeta; a bravura demonstrada e os ferimentos sofridos valeram-lhe a Cruz de Ferro de primeira classe. Porém, em Hitlers erster Krieg (A Primeira Guerra de Hitler), o historiador Thomas Weber defende, baseado no exame de registos militares da unidade em que Hitler prestou serviço, que este glorioso passado militar foi empolado para fins de propaganda política: Hitler teria sido estafeta, sim, mas uns quilómetros atrás da frente de combate. Seja como for, a guerra parece ter tido sobre Hitler um papel catalisador, tornando-o mais focado e determinado.
Após o Armistício e uma tentativa – duramente reprimida – de implantação um regime socialista na Baviera (a Bayerische Räterepublik), a Alemanha estava à beira do caos. Hitler foi colocado, com milhares de camaradas sem perspectivas de futuro, num quartel em Munique. Aí seria nomeado, em Julho de 1919, como “agente de informação”, com a missão de apurar que soldados tinham tomado partido pela Räterepublik.
O putsch da cervejaria
Quando o “agente de informação” Adolf Hitler recebeu a incumbência de se infiltrar no minúsculo Partido dos Trabalhadores Alemães (DAP), acabou por ser atraído pela retórica anti-semita e anti-bolchevique do seu fundador Anton Drexler. Pelo seu lado, este pensou poder tirar partido dos dotes de orador de Hitler e convidou-o a filiar-se. Hitler acabaria por tomar o lugar de Drexler, converter o DAP no NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) e expandir o partido e dotá-lo de milícias armadas, em parte inspirado pela ascensão do partido fascista de Mussolini em Itália.
Porém, quando tentou emular em Munique, a 8 e 9 novembro de 1923, a marcha triunfal dos camisas negras italianos sobre Roma, em outubro de 1922, as coisas correram mal: o “putsch da cervejaria” foi uma desastrada tentativa de golpe de Estado que rapidamente caiu num impasse. Numa tentativa para sair dele, dois mil nazis marcharam por Munique, sem propósito definido, e acabaram por ir contra um bloqueio montado pela polícia. Dos recontros resultaram 16 mortos entre os nazis, quatro entre os polícias e a prisão dos cabecilhas nazis. Os 16 homens que “tombaram pela sua crença fiel na ressurreição do seu povo” seriam convertidos em mártires e envoltos em roupagens mitológicas pelo NSDAP – Hitler nomeia-os, um a um, no prefácio de Mein Kampf e dedica-lhes o I volume, “para que o seu martírio irradie constantemente sobre os nossos militantes”.
Hitler, que se magoara no ombro ao atirar-se ao chão para se proteger das balas que voavam, foi preso três dias depois e acusado de traição. Com a conivência das autoridades e, em particular, do juiz que presidiu ao julgamento, um simpatizante nazi, Hitler acabou por transformar as sessões do tribunal num comício político que se arrastou por 24 dias e o tornaram uma estrela da política alemã. O tribunal acabou por condená-lo a cinco anos de prisão em Landsberg, mas, ao contrário do que pode depreender-se de Mein Kampf, pouco ou nada houve de penoso no tempo que aí passou.
Uma gaiola dourada
Os cinco anos foram reduzidos a nove meses e Landsberg revelou-se um cativeiro dourado – Kershaw descreve as condições “como estando mais próximas de um hotel do que de uma penitenciária”: “As janelas da vasta divisão, confortavelmente mobilada, proporcionavam uma visão desafogada dos campos em volta. Envergando uns Lederhosen [os calções de couro tradicionais da Baviera], Hitler podia ler tranquilamente o jornal num cadeirão de vime […] ou sentar-se na secretária a tratar da volumosa correspondência que recebia. Era tratado com grande respeito pelos carcereiros, alguns dos quais o saudavam, discretamente, com um ‘Heil Hitler’ e tinha todos os privilégios imagináveis. […] Recebia mais visitas do que era capaz de dar conta” e vivia rodeado de uma pequena corte de devotos. O próprio Hitler referir-se-ia mais tarde a este cativeiro como “estudos superiores a expensas do Estado”.
Foi neste aprazível ambiente que escreveu e ditou a Rudolf Hess, seu secretário pessoal, e Emil Maurice, seu motorista e guarda-costas, a primeira parte de Mein Kampf, talvez mais impelido pela perspectiva de obter proventos que lhe permitissem pagar as avultadas despesas com os advogados (o director da prisão confirma que Hitler contava com “uma tiragem importante para fazer face a todas as suas obrigações financeiras”) do que pela urgência em fixar o seu ideário em papel.
Aliás, no prefácio, Hitler deixa claro que “é pela palavra, muito mais do que pelos livros, que se ganham os homens: todos os grandes movimentos que a História registou ficaram a dever muito mais aos oradores do que aos escritores”, ideia que reafirmará mais do que uma vez ao longo do livro: “A mais bela doutrina não tem nem finalidade nem eficiência se o Führer não consegue empolgar as massas”.
[Veja nesta fotogaleria como Hitler preparava os seus discursos para conseguir o máximo efeito sobre quem o via e ouvia]
Otto Strasser (que fez parte do círculo de poder do NSDAP mas acabaria por ser expulso em 1930 e se exilaria em 1933), sugere que a ideia de escrever Mein Kampf terá sido instilada em Hitler pelo seu irmão, Gregor Strasser, que também estava detido em Landsberg e que já não suportava as intermináveis arengas de Hitler: a redacção das memórias, esperava Gregor, canalizaria a tagarelice de Hitler e pouparia os reclusos. O futuro dissidente Otto Strasser não é fonte digna de grande crédito mas “se non è vero è ben trovato”.
Porém, as expectativas de vendas copiosas imaginadas por Hitler não pareceram credíveis aos vários editores que o visitaram assiduamente na prisão. As negociações fracassaram, pelo que a edição de Mein Kampf acabou por recair na pequena editora Franz Eher Verlag, que era propriedade do NSDAP. Em Maio de 1924, Max Amann, o responsável pela editora, fez um estudo de mercado e concluiu que haveria mercado para uma “edição especial para coleccionador”, autografada por Hitler.
O livro, que começara por ser concebido como um breve e incisivo “ajuste de contas” (e chegou a ter, provisoriamente, este título) relativo aos eventos de 9 Novembro de 1923, acabou por evoluir para um épico em que “Hitler emergia como herói da sua própria vida”, nas palavras de Timothy Ryback em A biblioteca privada de Hitler: Os livros que moldaram a sua vida (Civilização). A escrita acabou por absorvê-lo a ponto de impor restrições às visitas e de suspender a actividade política (Hitler continuara a dirigir o NSDAP, temporariamente ilegalizado, a partir da prisão). Mesmo assim só concluiu o livro em Outubro, muito depois da data acordada com Amann.
Um intelectual provinciano
O I volume só foi impresso em Julho de 1925, em parte devido às numerosas revisões a que o livro teve de ser sujeito. Ryback, após examinar textos escritos pelo punho de Hitler, nomeadamente as páginas não revistas de Mein Kampf, conclui: “Quando em estado bruto, os seus textos estão pejados de erros lexicais e de sintaxe. O uso que faz da pontuação e das maiúsculas mostra-se tão frágil quanto incoerente. Com a idade de 35 anos, Hitler ainda não dominava a ortografia mais básica”. Otto Strasser descreveu a versão original como “um verdadeiro caos de banalidades, recordações de rapazinho de escola, julgamentos subjectivos e ódios pessoais”.
Pelo menos sete revisores intervieram no livro, recaindo o grosso do trabalho sobre o padre Bernhard Stempfle, director de um jornal local de pendor anti-semita, que viria a ser executado em Dachau, após a Noite das Facas Longas, em 1934 (há quem sugira que as falhas e insuficiências apontadas por Stempfle a Mein Kampf terão agastado Hitler e pesado na decisão da sua eliminação, mas é uma hipótese muito improvável).
Outro foi Ernst Hanfstaengl, um homem de negócios que se tornara admirador e confidente de Hitler, e que, mais tarde, recordaria o “uso excessivo de superlativos”, a profusão de auto-elogios, as “pequenas desonestidades” e o “provincianismo intelectual” de Mein Kampf.
As várias revisões não foram, todavia, suficientes para transformar a longa, confusa e errática arenga de Hitler num livro legível. No entanto, quando o I volume saiu, Hitler, entusiasmado, já estava a trabalhar num II volume, de orientação menos autobiográfica e mais dedicado à explanação do seu projecto político, que seria publicado em dezembro de 1926.
Contra o parlamentarismo
A argumentação enredada e rudimentar de Mein Kampf atira-se repetidas vezes contra os mesmos alvos. Um deles é a democracia parlamentar: após apresentar-se como “um homem de sentimentos liberais” (!), Hitler proclama que a intenção da democracia parlamentar não é “formar uma assembleia de sábios, mas, pelo contrário, reunir um conjunto de nulidades subservientes que possam ser facilmente manipuladas em determinadas direcções definidas”, com “os que puxam os cordelinhos” a ficar “em segurança por trás dos bastidores”. “Assim, não há praticamente responsabilidade, porque a responsabilidade só pode recair sobre uma individualidade única e não sobre as gaiolas de tagarelice que são as assembleias parlamentares”. Mais à frente afirma: “O movimento [nazi] é anti-parlamentarista. A sua participação numa tal instituição só pode ter o objectivo de destruir o parlamento, que deve ser visto como um dos mais graves sintomas da decadência da humanidade”.
Não é pela rejeição do parlamentarismo que o “pensamento” político de Hitler revela originalidade. Ela estava no “ar do tempo”, como realça Mark Mazower em Dark continent (O continente das trevas, Edições 70): ao longo das décadas de 20 e 30, as intermináveis quezílias entre partidos, a precariedade dos governos e as crises financeiras e económicas levaram a que muitos concluíssem que “a democracia, que era suposto unificar as nações, era afinal a causa da sua divisão”. A democracia era atacada por ser “burguesa, morosa, materialista, pouco excitante, incapaz de despertar a simpatia das massas e reflectindo as aspirações da geração anterior, cujos políticos envergavam fraque e cartola” – hoje dir-se-ia, mais sucintamente, que a democracia não é sexy.
Assim, havia muitos intelectuais a entusiasmarem-se com formas de governação alternativas, como “o despotismo benevolente” ou até o despotismo sem qualquer benevolência. Emil Cioran e Mircea Eliade, então dois jovens de sangue na guelra, saudaram “a investida de Hitler contra o ‘racionalismo democrático’ e o vigor do totalitarismo messiânico”; H.G. Wells exortou os alunos de um curso de verão em Oxford a “converterem-se em ‘liberal-fascistas’ e ‘nazis iluminados’”.
No entanto, a análise que Hitler faz da crise da democracia envolve um salto acrobático de que só ele é capaz: “Esse tipo de democracia tornou-se o instrumento da raça que, para a consecução dos seus objectivos, tem de evitar a luz do sol, agora e para sempre. Ninguém, a não ser um judeu, pode estimar uma instituição que é tão suja e falsa quanto ele próprio”.
[Veja nesta fotogaleria alguns dos cartazes de propaganda feitos pelos nazis]
Contra o judeu
O judeu está no cerne de Mein Kampf e do “pensamento” de Hitler. A eles atribui a culpa por tudo o que de funesto acontece e não descortina neles qualquer qualidade. “Se os judeus fossem os únicos habitantes do mundo não somente morreriam sufocados em porcaria como tentariam, numa luta sem tréguas, explorar-se e exterminar-se mutuamente”. “O judeu não possui qualquer força susceptível de construir uma civilização e isso pela razão de não possuir nem nunca ter possuído o menor idealismo, sem o qual o homem não pode evoluir num sentido superior”.
Contra o bolchevismo
“O único fim [do marxismo] é e será sempre a destruição de todas as nacionalidades não judaicas”.
Contra o Grande Capital
“O capital internacional não só foi o maior instigador da [I] guerra [Mundial], como, mesmo depois de ela acabar, continua a transformar a paz num inferno. Combater a alta finança internacional tornou-se num dos pontos essenciais do programa na luta da nação alemã”.
Contra a imprensa liberal
“O que a chamada imprensa liberal fez antes da [I] guerra [Mundial] foi cavar um túmulo para a nação alemã”. O único objectivo dos “mentirosos jornais marxistas”, redigidos e controlados por judeus, é “quebrar as forças de resistência da nação, preparando-a para a escravidão do capitalismo internacional e dos seus senhores, os judeus”. A “liberdade de imprensa” é “um eufemismo com que costuma designar-se o abuso desse instrumento de ludíbrio e envenenamento do povo, ao abrigo de quaisquer punições”.
Contra a arte degenerada
“A arte dos Estados bolcheviques só pode contar com produtos doentios de loucos ou degenerados que […] conhecemos sob a forma de dadaísmo e cubismo, como a arte oficialmente reconhecida e admirada”.
“Nunca houve uma arte judaica [e] as duas rainhas das artes – a arquitectura e a música – não devem nada de original aos judeus. O que eles têm feito no terreno artístico é ou fanfarronice verbal ou plágio espiritual”. A arte que mais atrai o judeu é a arte dramática, “por ser a que menos depende de invenção pessoal. Mesmo nessa especialidade, ele realmente não passa de um actor reles, ou melhor, de um macaco de imitação”. Para “encobrir a falta de vitalidade intrínseca do seu talento” só conta com o socorro da “imprensa judaica” que entoa “um tal hino de hossanas que o resto do mundo acaba por supor tratar-se de um verdadeiro artista, quando se trata, apenas, de um miserável comediante”.
Há, pois, que tomar medidas contra este lamentável estado de coisas: “O teatro, a arte, a literatura, o cinema, a imprensa, os anúncios, as vitrinas [!], devem ser destinados a limpar a nação da podridão existente e pôr-se ao serviço da moral e da cultura oficiais”.
Contra a pieguice
“A paz do Mundo não se mantém com as lágrimas de carpideiras pacifistas, mas pela espada vitoriosa de um povo dominador que põe o Mundo ao serviço de uma alta cultura”.
Pela conservação da raça
“A liberdade individual deve ceder o lugar à conservação da raça […] Tornar impossível que indivíduos doentes procriem outros seres doentes é uma exigência que deve ser posta em prática de um modo metódico, pois trata-se da mais humana das medidas […] O sofrimento passageiro durante um século livrará a humanidade de sofrimentos idênticos por milhares de anos”.
Limpo o terreno de judeus e degenerados, ele ficaria livre para a raça superior: “O que hoje se apresenta a nós em matéria de cultura humana, de resultados colhidos no terreno da arte, da ciência e da técnica, é quase exclusivamente produto da criação dos Arianos […] O Ariano é o Prometeu da Humanidade, e da sua fronte é que jorrou, em todas as épocas, a centelha de génio”, sem ele “a civilização humana chegará ao seu termo e o mundo tornar-se-á um deserto!”.
Quer nas medidas de eugenia acima mencionadas, quer no entendimento das relações entre os povos, a visão de Hitler é “darwinista” (ou melhor, acompanha a deturpação das teorias de Darwin por Francis Galton e Herbert Spencer) e prevê que “aquele que não é capaz de lutar pela vida tem o seu fim decretado pela providência. O mundo não foi feito para os povos cobardes”.
Por uma educação salutar
“O Estado étnico deve dirigir a educação do povo, não no sentido puramente intelectual, mas tendo em vista sobretudo a formação de corpos sadios”. Primeiro a educação física, em segundo lugar a “formação de carácter”, ou seja, “a formação do poder de vontade e de decisão, e do hábito de assumir com prazer todas as responsabilidades”, e “só depois disso é que vem a aquisição do conhecimento puro”. “Um povo de sábios fisicamente degenerados torna-se fraco da vontade e transforma-se num corpo de pacifistas cobardes que nunca se elevará às grandes acções e nem mesmo poderá assegurar a sua própria existência na Terra”.
Hitler entra depois em detalhes, prescrevendo pelo menos uma hora por dia de exercício físico, com realce para o boxe – “antes de tudo, o rapaz sadio deve aprender a suportar pancadas”. Já a educação das mulheres deveria ter como objectivo prepará-las “para o seu papel de futuras mães”. A educação intelectual de rapazes e raparigas não deveria sobrecarregar os cérebros com assuntos “desnecessários e cedo esquecidos” – entre eles está a aprendizagem de “duas ou três línguas estrangeiras que só em proporções insignificantes podem utilizar […] De cem mil alunos que aprendem francês, por exemplo, talvez apenas dois mil possam encontrar utilização para esse conhecimento” – o que patenteia a mentalidade tacanha e provinciana de Hitler.
O culto maníaco do exercício físico torna-se particularmente caricato quando o próprio Hitler foi um indolente enquanto jovem e em momento algum da vida praticou aquilo que pretendia impor aos outros.
As suas teorias sobre saúde levaram-no a adoptar um regime vegetariano, a não beber álcool (pelo menos em público) e a cultivar um antitabagismo fanático. Ironicamente, acabaria por ser derrotado por um homem obeso, com aversão a todo o exercício físico, fumador inveterado de charutos e consumidor de prodigiosas quantidades de álcool – Churchill.
Se Hitler estava longe de corresponder ao ideal ariano por si exaltado, o resto da liderança nazi não era melhor, o que motivou a circulação de anedotas que definiam o ideal do homem ariano como sendo “louro como Hitler, esbelto como Goering e belo como Goebbels”, logo exploradas pela propaganda aliada.
O perfil do líder
Em contraposição com a decadente democracia parlamentarista austríaca, Hitler enaltece a “democracia alemã”, “que escolhe livremente o seu chefe, sobre quem recai a inteira responsabilidade de todos os actos que pratique ou deixe de praticar”. Ao longo de todo o livro vai enunciando as características que esse chefe messiânico deverá reunir, ao mesmo tempo que vai dando exemplos da sua actuação destemida e decidida, de forma que mesmo ao mais obtuso dos leitores não restem dúvidas de que é ele que cumpre os requisitos que enuncia: “Quem se propuser a ser chefe terá a mais ilimitada autoridade, ao lado da mais absoluta responsabilidade. […] Só o herói reúne condições para assumir esse posto”.
“O Estado racista [völkisch] não pode tolerar que homens cuja educação ou ocupação não lhes tenha proporcionado conhecimentos especiais sejam convidados a dar conselhos ou a julgar”. Uma vez que os seus estudos tinham sido escassos e com mau aproveitamento e, antes de entrar na política, as suas ocupações se tinham circunscrito a gandulo, sem-abrigo e pintor de souvenirs de pataco e na hierarquia militar não passara de cabo, resta saber que “conhecimentos especiais” entendia Hitler possuir para a tarefa de governar uma nação.
Tinha pelo seu lado uma confiança ilimitada no seu dom para a palavra e um sentido de predestinação: “Somente uma tempestade de paixão escaldante é que consegue trocar o destino dos povos; mas só se consegue provocar entusiasmo quem o possua no seu íntimo. Só esse entusiasmo inspira nos eleitos as palavras que, como marteladas, conseguem abrir as portas do coração do povo. Não é escolhido para anunciador da vontade divina aquele a quem falta paixão”.
Isto está tudo ligado
“A arte de todos os grandes condutores de povos, em todas as épocas, consiste, em primeiro lugar, em não dispersar a atenção de um povo, mas sim em concentrá-la contra um único adversário. Quanto mais concentrada for a vontade combativa de um povo, tanto maior será a atracção magnética de um movimento e mais formidável o ímpeto do golpe. Um grande chefe deve fazer parecer que pertencem a uma só categoria todos os adversários dispersos”. E Hitler pôs em prática de forma exemplar este seu mandamento: identificou como adversários o bolchevismo, o parlamentarismo e o capitalismo, mas colocou por trás dos três o Judeu, agindo quase sempre através da imprensa.
“A finança judaica deseja […] não somente o inteiro aniquilamento económico da Alemanha, mas também a sua completa escravização política”. “Todos os ataques contra a Alemanha, no mundo inteiro, são da autoria dos judeus. Foram eles que, na paz como na guerra, pela sua imprensa, atiçaram premeditadamente o ódio contra a Alemanha”. “A bolchevização da Alemanha, isto é, a exterminação da cultura do nosso povo e a consequente pressão sobre o trabalho alemão por parte dos capitalistas judeus, é apenas o primeiro passo para a conquista do mundo por essa raça”. E assim prosseguirão os judeus, “até converterem num campo de ruínas uma nação após outra e, sobre essas ruínas, erigirem a soberania do império judaico eterno”.
A derrota alemã na I Guerra Mundial é atribuída por Hitler às maquinações do judaísmo, do bolchevismo e do capitalismo, que, tirando partido de elementos cobardes e poltrões do povo alemão, criaram tais entraves e tumultos na retaguarda que deixaram desamparados os valorosos soldados (como ele) que combatiam na frente. “Nunca, na nossa história, fomos vencidos pela força dos inimigos, mas sim, sempre, devido aos nossos próprios erros e a termos inimigos no nosso próprio campo”.
A qualquer pessoa com um mínimo de bom senso parecerá estranho que inimigos figadais como o capitalismo internacional e o bolchevismo estejam afinal mancomunados, mas a argumentação de Hitler é alheia a qualquer racionalidade: o bolchevismo apenas finge ser inimigo do capitalismo e grita “constantemente contra o capital internacional quando em verdade o que visa é a economia nacional. É esta que importa demolir a fim de sobre o seu cadáver se poder edificar triunfalmente a bolsa internacional”. Wall Street e o Kremlin estavam, afinal, irmanados nos propósitos – e, quem sabe, ligados por um túnel secreto.
A contaminação do sangue
Uma das obsessões patentes em Mein Kampf é a do “envenenamento do sangue [que] está hoje metodicamente a ser posto em prática pelo judeu. Sistematicamente, esses parasitas das nações estão a desonrar as nossas jovens inexperientes, destruindo dessa forma um valor que nunca mais pode ser restituído”. Sobre os franceses, talvez sugestionado pelo uso de soldados africanos provenientes das colónias francesas em África durante a I Guerra Mundial, escreve: “Esse povo, continuando cada vez mais a degenerar-se pela mistura com os negros africanos, representa, na sua ligação com os objectivos da dominação mundial judaica, um perigo latente para a existência da raça branca na Europa. A infecção do sangue africano no Reno, no coração da Europa, significa não só a sede de vingança sádica e perversa desse eterno inimigo hereditário do nosso povo como a fria resolução do judeu de começar a mestiçagem do centro do continente europeu, mediante infecção com sangue inferior, dos fundamentos para uma existência autónoma”. E considera que a França “fez tais progressos na sua negrificação que, na realidade, já pode falar-se num Estado africano em solo europeu”.
Noutro trecho afirma que “a impotência dos povos, a sua própria morte pelo envelhecimento, dependem da sua pureza de sangue. E essa pureza, o judeu guarda-a melhor do que qualquer povo da Terra”. É uma ideia a que recorre ao longo do livro, sem que Hitler pareça dar pela contradição de acusar o judeu de contaminar o sangue ariano e, ao mesmo tempo, de zelar por não misturar o seu sangue com o de outros povos.
[Veja este excerto de Der ewige Jude (O judeu eterno), um “documentário” de 1940, realizado por Fritz Hippler, que faz um paralelo entre a disseminação dos judeus pelo mundo à dos ratos]
https://www.youtube.com/watch?v=vjvL2UbED3Q
A indignação de Hitler é levada ao rubro pela ideia da “sedução de centenas de milhares de raparigas por judeus bastardos, de pernas tortas e desengonçados” e noutro trecho lança-se numa diatribe contra a sífilis que grassa nas cidades e que vê como resultado da “prostituição do amor”, da “mercantilização das relações entre os dois sexos”, promovida pelos judeus. A forma como expressa a sua repulsa por Viena, capital de um império multi-étnico, é também sintomática: “Esta cidade gigante parecia-me a encarnação do incesto”.
Joachim Fest, um dos mais renomados biógrafos de Hitler, via reflectidas em Mein Kampf “as ansiedades e pulsões do antigo residente no asilo [a casa para homens sem-abrigo em que viveu nos anos de miséria de Viena], assombradas por um imaginário feito de cópulas, sodomia, perversão, violação e contaminação do sangue”.
O Diabo invoca Deus
Hitler é, por vezes, citado pelos adversários do ateísmo como um exemplo dos perigos que assomam quando deixa de se acreditar em Deus – uma falácia tão rudimentar como pretender usar o exemplo de Hitler para desacreditar o vegetarianismo. Mas, apesar de Hitler desdenhar do cristianismo e das religiões em geral – não haveria lugar para elas num mundo governado pelo nazismo, uma ideologia pretensamente fundada na ciência – em Mein Kampf não deixa de recorrer a toscas considerações de inspiração cristã para apelar a que católicos e protestantes se unam no combate ao judaísmo: “O homem de sentimentos racistas [völkisch] devia ter a sagrada obrigação, cada um dentro do seu próprio credo, de cuidar, não só de falar sempre da vontade de Deus, mas também de cumpri-la, não permitindo que a obra de Deus seja enlameada. A vontade de Deus foi o que deu aos homens a sua forma exterior, a sua natureza e as suas faculdades. Destruir esta obra é declarar guerra à criação do Senhor, a Sua vontade divina”.
E propõe que se ensine às crianças alemãs a oração “Deus-Todo-Poderoso, abençoai as nossas armas […], abençoai o nosso combate!”.
Uma ideologia caída do céu?
As leituras e a cultura de Hitler são assunto de controvérsia, embora a opinião mais consensual o apresente como leitor ávido mas com escasso critério. Na sua biografia de Hitler, Ian Kershaw, escreve: “Sem dúvida que lia imenso. Mas […], como ele deixa claro em Mein Kampf, essa leitura tinha para ele um propósito estritamente instrumental. Não lia para obter conhecimento ou esclarecimento mas para confirmar os seus próprios preconceitos”.
Em A biblioteca privada de Hitler, Timothy Ryback examina os 1200 livros que fazem parte de uma colecção na Biblioteca do Congresso e que são o que resta dos cerca de 16.000 volumes que terão integrado a biblioteca privada de Hitler. É um exercício com uma componente especulativa, pois nem sempre é possível apurar que livros foram lidos por Hitler ou a quem pertencem as notas escritas nas margens e o mesmo acontece com a distinção entre obras adquiridas e oferecidas.
Ryback realça a presença de numerosos livros sobre ocultismo e espiritismo na dita biblioteca, entre os quais se conta Magia: História, teoria e prática (Magie: Geschichte, Theorie, Praxis, 1923), de Ernst Schertel, que foi anotado e sublinhado por Hitler e que Ryback considera ter moldado “o núcleo duro [do pensamento] de Hitler. Não caberia a uma destilação das filosofias de Schopenhauer e de Nietzsche, mas sim a uma obra de fancaria fragmentária, urdida a partir de pasquins tendenciosos e livros de esoterismo, justificar uma baixa e calculada falácia intimidatória”.
Seja como for, salta à vista em Mein Kampf a ausência de menção a políticos ou filósofos – na verdade, em 650 páginas, as citações explícitas de pensamentos alheios são apenas duas e provêm de dois estrategas alemães: Moltke e Clausewitz. Mussolini e o fascismo italiano, a que o NSDAP devia muita inspiração, merecem-lhe duas breves menções, em tom aprovador. Resta saber se tal decorre da cultura superficial de Hitler, se da vontade de não sobrecarregar um livro dirigido às massas com a floreada e indigesta erudição que reprovava nos outros políticos – “toda a propaganda deve ser popular e estabelecer o seu nível espiritual de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante daqueles a quem ela se pretende dirigir”.
Este vazio pode também decorrer de Hitler pretender dar a impressão de que a sua mundividência (Weltanschauung) era uma criação original, sem dívidas para com quaisquer pensadores que o precederam, mas, se se descontar o radicalismo e a torpeza da linguagem, não há novidades em Mein Kampf. De acordo com Otto Strasser, as principais influências de Mein Kampf foram Houston Chamberlain, um filósofo político nascido na Grã-Bretanha e casado com uma filha de Wagner, Eva von Bülow, e Paul de Lagarde, um biblista e filósofo alemão, dois propagadores de ideias racistas, anti-semitas, anti-cristãs e pan-germanistas, que advogavam a supremacia germânica e a necessidade de expulsar os judeus da Europa e de a Alemanha se expandir para Leste.
Ryback identifica duas outras fontes decisivas para Mein Kampf: Rassenkunde des deutschen Volkes (Etnografia do povo alemão), de Hans F.K. Günther, e The international Jew: The world’s foremost problem (O judeu internacional: O problema capital do mundo), de Henry Ford. Ford é mais conhecido pelo Modelo T, mas foi também um anti-semita fanático e fez coligir sob aquele título uma selecção de alguns dos 91 artigos (em seu nome, mas encomendados a “negros”) que fizera publicar semanalmente no seu jornal The Dearborn Independent entre 1920 e 1922.
Pelo seu lado, os artigos assinados por Ford também não eram particularmente originais: inspiravam-se nos Protocolos dos Sábios de Sião, um panfleto forjado por círculos anti-semitas – possivelmente a polícia secreta czarista – que descrevia uma suposta conspiração judaica para o domínio mundial, que à data já tinha sido amplamente denunciado como um embuste (mas que continua a fazer o seu caminho: o artigo “A máquina da morte e a utopia”, publicado no Avante! em 2011 e que pretendia expor as engrenagens do capitalismo internacional, ainda citava os Protocolos como se fossem um documento autêntico).
Hitler era admirador confesso de Henry Ford e possuía um retrato do industrial americano no seu gabinete, mas não o cita em Mein Kampf. Por outro lado, Hitler alega ter estudado atentamente a literatura marxista a fim de a poder criticar com fundamento, mas Kershaw não encontrou nas suas palavras, escritas ou faladas, indícios de que estivesse familiarizado com os principais escritos marxistas.
Um político que cumpre o que promete
Os que menosprezaram a ameaça do nazismo não podem alegar que este tenha agido dissimuladamente: em Mein Kampf, Hitler diz claramente ao que vem. Não é difícil adivinhar o Holocausto quando, após a interminável enumeração de torpezas que atribui aos judeus, surge uma frase tão ameaçadora como “[O judeu] prossegue o seu caminho nefasto, até que se lhe oponha uma outra força que, em luta gigantesca, reenvie para Lúcifer o que pretende assaltar o céu”. Ou, noutra passagem: “A chefia do judeu na questão social manter-se-á até ao dia em que uma campanha enorme em prol do esclarecimento das massas populares se exerça […] ou até que o Estado aniquile tanto o judeu como a sua obra”.
E quando considera que “já não são os príncipes e amantes de príncipes que mercadejam e negoceiam as fronteiras do Estado, mas sim o implacável judeu internacional”, percebe-se que nada o irá deter na demanda por espaço vital (Lebensraum) para a nação alemã, o que logo explicita abaixo, quando afirma que o propósito da política externa nazi é “assegurar ao povo alemão o território que lhe compete neste mundo”. Ora, na sua mente retorcida, Hitler vê o povo alemão “apertado numa extensão territorial insignificante, aguardando um futuro deplorável” – um “grande povo, sem possibilidade de aumento territorial, parece destinado ao desaparecimento. Sobretudo quando não se trata de um qualquer poviléu de negros, mas sim da pátria germânica que imprimiu ao mundo de hoje o seu cunho cultural”. E num raciocínio tão desprovido de lógica como os anteriores, conclui: “A Alemanha tornar-se-á uma potência mundial ou deixará de existir”.
Acontece que, ao contrário do Kaiser Guilherme II, Hitler não vê na aquisição de colónias ultramarinas solução para esta situação sufocante: “Quando falamos de novas terras na Europa, pensamos em primeiro lugar na Rússia e nos países limítrofes que dela dependem”. Ora, as terras russas não só são apetitosas, como a Alemanha tem todo o direito a elas: “O destino, ao abandonar a Rússia ao bolchevismo, roubou ao povo russo a classe instruída que criara e garantira a sua existência como Estado. A organização do Estado russo não foi o resultado da capacidade política do eslavismo […] mas um maravilhoso exemplo da eficiência […] dos elementos germânicos no seio de uma raça inferior”. No lugar desta benfazeja influência germânica, a revolução bolchevique colocara o judeu e, este, sendo, inerentemente, um elemento destruidor, estava a causar a derrocada do “imenso império de Oriente”. “O fim do domínio judaico na Rússia será também o fim da Rússia como Estado. Fomos eleitos pelo destino para ser testemunhas de uma catástrofe que será a mais sólida prova das teorias racistas”. Onde está “testemunhas” deverá ler-se “agentes”, já que quatro linhas abaixo Hitler explicita que será pelo “gládio” que se obterá espaço para o “trabalho laborioso da charrua alemã” (toda a arcaica concepção económica de Hitler assenta na agricultura).
Se Estaline tivesse lido estes trechos com atenção não teria ficado blindado na sua convicção de que Hitler não cometeria a insensatez de abrir uma segunda frente e invadir a Rússia. A Operação Barbarossa resultou menos de considerações estratégicas do que de uma obsessão doentia de Hitler.
Mas a conclusão de Mein Kampf também encerra um aviso óbvio para o resto do mundo: “Um Estado que, numa época de contaminação de raças, vela inquieta e escrupulosamente pela conservação dos seus melhores elementos, deve um dia tornar-se senhor da Terra”.
A recepção pública de Mein Kampf
O lançamento de Mein Kampf em Julho de 1925 suscitou curiosidade passageira, críticas arrasadoras na imprensa de esquerda, críticas pouco generosas na imprensa de direita e vendas modestas. Informa Ryback que, em 1927, o I volume tinha-se ficado pelos 5.000 exemplares vendidos e o II pelos 1200. Só os primeiros triunfos eleitorais do NSDAP, a partir de 1930, fizeram as vendas subir – em 1933, nas vésperas da tomada do poder por Hitler, as vendas acumuladas ascendiam já a 240.000 exemplares, gerando 1.2 milhões de marcos em direitos de autor (e uma dívida ao fisco de 400.000 marcos, já que Hitler não pagou os impostos devidos), permitindo a Hitler prescindir, num gesto público de aparente largueza, do ordenado como chanceler. Mas isto era uma amostra do que estava por vir: só em 1933 venderam-se 1.5 milhões de exemplares. O livro tornou-se omnipresente: era oferecido, a expensas do Estado, a todos os casais quando do matrimónio e a todos os soldados enviados para a frente de combate. Assim se escoaram, até 1945, cerca de 10 milhões de exemplares (incluindo-se aqui a versão em braille, surgida em 1936), número a que há que somar as traduções, que em 1939 já contemplavam onze línguas.
O facto de o livro estar por todo o lado não queria dizer necessariamente que fosse lido. O já mencionado Otto Strasser conta, na pouco fidedigna memória da sua relação com Hitler, Hitler und Ich (1948), que num jantar de altos dignitários nazis no congresso do NSDAP, em Nuremberga, em 1927, citou alguns trechos que tinha memorizado (embora não tivesse lido o livro), o que causou hilaridade geral entre os presentes, que o desconheciam. “Acordou-se que a primeira pessoa que se juntasse a nós que tivesse lido Mein Kampf pagaria a conta do jantar. A resposta de Gregor [irmão de Otto] foi um rotundo “não”, Goebbels abanou a cabeça, envergonhado, Goering desatou a rir ruidosamente e o Conde Reventlow desculpou-se com a falta de tempo. Ninguém lera Mein Kampf, de forma que cada um teve de pagar a sua conta”.
O próprio Hitler viria a mostrar pouco apreço pela sua obra. Confidenciou a Hans Frank que a sua vocação não era a escrita e que, “se em 1924 imaginasse que chegaria a chanceler do Reich, nunca teria escrito o livro”.
O poder de Mein Kampf no seu tempo
Não se depreenda destas palavras que o pensamento político de Hitler se alterara significativamente entre 1924 e 1933 (ou 1939, ou 1945). Como realça Kershaw, Mein Kampf oferece “uma exposição inequívoca dos princípios políticos de Hitler, da sua mundividência, do seu sentido de missão, da sua visão da sociedade e dos seus objectivos de longo prazo”. E Hitler “manteve-se rigidamente fiel a estes princípios básicos durante o resto da sua vida. Nada de substancial seria alterado nos anos vindouros”.
O desagrado de Hitler com Mein Kampf tinha mais a ver com aspectos formais e com a sua preferência pelo discurso oral (“é preciso que os literatelhos e peralvilhos de hoje saibam que as maiores revoluções deste mundo nunca foram dirigidas por escrevinhadores!”). Tal não significa que os discursos de Hitler fossem mais coerentes e estruturados do que os seus pífios escritos, só que no ambiente sobreaquecido, extático e histérico dos comícios e congressos ninguém entre o público seguiria com frieza analítica a ziguezagueante linha discursiva e seria capaz de detectar contradições, falhas de raciocínio, tautologias, lugares-comuns ou puros disparates, sobretudo se a arenga se estendesse por mais de uma hora, como era frequente com Hitler.
[Veja aqui um excerto de um discurso de Hitler]
https://www.youtube.com/watch?v=EV9kyocogKo
A ideologia nazi foi abraçada ou, pelo menos, aceite, pela maioria dos alemães, por convicção genuína, ou por inércia, cobardia ou oportunismo, mas não é possível discernir que papel desempenhou Mein Kampf no processo, embora tudo indique que esteve longe de ser proporcional ao assombroso número de exemplares em circulação.
Mein Kampf ainda é tóxico?
Que poder maligno restará hoje em Mein Kampf? Poderá, por si só, instigar um renascimento do nazismo e do anti-semitismo?
É verdade que se assiste pela Europa fora à ascensão da extrema-direita populista, xenófoba, nacionalista e isolacionista, mas os partidos que logram atrair um número significativo de votos estão longe da virulência do NSDAP. Em França, a Frente Nacional percebeu que para crescer eleitoralmente tinha de descartar, amenizar ou disfarçar as suas ideias mais radicais, pelo que pôs de lado Jean-Marie Le Pen e as suas declarações que reduziam as câmaras de gás a “um detalhe da história” e apontavam o ébola como forma natural de limpeza de raças indesejáveis.
Desde os tempos de Hitler, muito mudou na sociedade. Para começar, o nazismo teve a tremenda vantagem de uma máquina de propaganda inédita – nisso, há que reconhecer que Hitler e a sua equipa tiveram intuições certeiras – mas hoje todos os partidos e ideologias dispõem das mesmas armas. Por outro lado, a atitude dos cidadãos no Ocidente tornou-se mais individualista, comodista e cínica, pelo que é mais difícil encontrar gente que esteja disposta a morrer ou a sacrificar o seu conforto material pela pátria, pela luta contra o bolchevismo ou por qualquer abstracção ideológica. O nazismo foi possível porque houve muita gente disposta a derramar o seu sangue por ele, mas hoje a maioria dos “activistas” não está disposta a investir em algo que vá para lá da bravata nas redes sociais e nas caixas de comentário dos jornais. As causas partidárias já não suscitam paixões destemperadas e são encaradas com desconfiança, cepticismo ou indiferença. As fontes de informação diversificaram-se e fragmentaram-se e tornam mais difícil a manipulação de grandes massas, mesmo que tal não signifique necessariamente que estas estejam mais bem informadas.
A geopolítica europeia também se alterou decisivamente: as nações que durante séculos disputaram território e se guerrearam integraram-se na NATO, na UE e noutras parcerias e agora limitam-se a discutir quotas de captura de choco. As fronteiras europeias estabilizaram e nenhum Estado alimenta desígnios de expansão territorial à custa de outro (a excepção é a turbulência no extremo oriental da Europa, entre a Ucrânia e a Rússia).
Mein Kampf é, indiscutivelmente, uma semente perigosa, mas o terreno deixou de ser propício a que se desenvolva luxuriantemente. Claro que haverá sempre espíritos suficientemente débeis e malévolos a quem o livro pode despertar uma vocação (no caso de conseguirem chegar a meio da logorreia, o que requer determinação), mas quem possua uma estrutura mental capaz de se deixar fascinar por Mein Kampf poderá também ser “mobilizado” para uma carreira de violência, obtusidade e barbárie por qualquer outro livro – o Corão, a Bíblia, O Capital, Laranja Mecânica, American Psycho. Ou, para quem tenha dificuldade em ler livros inteiros, pela infinidade de sites e blogues anti-semitas, racistas, supremacistas brancos e pró-nazis que reproduzem atoardas, inanidades e incitações ao ódio não muito diversas das que podem encontrar-se em Mein Kampf.
Não há, pois, razão para temer ou demonizar a reedição de Mein Kampf, em alemão, em português ou noutras línguas.