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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mentiras, declarações brejeiras e uma decisão ainda por tomar. A cartada de Sócrates para derrubar a Operação Marquês

O ex-primeiro-ministro acusa o juiz Carlos Alexandre de ter combinado com uma funcionária judicial da sua confiança a atribuição do processo Marquês a ele próprio só por causa do mediatismo do caso.

A faustosa sala do primeiro piso do Tribunal da Relação de Lisboa esteve na tarde desta segunda-feira dividida ao meio. De um lado da barricada, a defesa do ex-primeiro-ministro José Sócrates a insistir que o sorteio que atribuiu o processo Marquês ao juiz Carlos Alexandre foi manipulado porque, dizem, o magistrado só queria chamar a ele os processos mediáticos. Do outro, a defesa do juiz e da escrivã, que com ele está acusada dos crimes de abuso de poder, falsificação praticada por funcionário e de denegação de justiça, a par do procurador do Ministério Público que considerou a tese da defesa de Sócrates completamente “ficcionada”.

A batalha foi travada sem os protagonistas presentes. Sócrates, Carlos Alexandre e Teresa Santos optaram por delegar as armas nos seus representantes legais. “Há matéria suficiente que justifique a sujeição dos arguidos a julgamento?”, perguntou o juiz desembargador como quem lança o dado num tabuleiro de jogo. Seguiram-se as alegações do debate instrutório do caso, com direito a recados, a mensagens subliminares e a duas versões da história. No final, e com o pré-aviso de daí não advir qualquer posição final, o juiz desembargador decidiu acrescentar à acusação uma parte que parece dividir os argumentos: um relatório final do Conselho Superior da Magistratura sobre as distribuições de processos no Tribunal Central de Instrução Criminal, conhecido por Ticão, feito em 2021. A decisão ficou marcada para o dia 3 de maio, mas antes, a 22 de abril, ainda há uma sessão para os advogados se pronunciarem sobre o que o juiz juntou à acusação.

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O primeiro a entrar em jogo: o procurador que concorda com colega que tinha arquivado o caso por falta de indícios de crime

O primeiro a ir a jogo, quase a bater nas 15h, foi o procurador do Ministério Público da Relação. O debate instrutório que opõe Sócrates a Carlos Alexandre e à escrivã deste, numa derradeira tentativa de deitar o processo Marquês abaixo, decorre num tribunal superior por um dos arguidos ser magistrado.

Joaquim Moreira da Silva, que por causa da Covid-19 pediu que o caso fosse adiado, começou logo pelas conclusões: não encontrou nada que a magistrada que arquivou inicialmente o processo não tivesse encontrado. Recorde-se que este caso nasceu de uma certidão mandada extrair pelo juiz Ivo Rosa quando leu o despacho de pronúncia da Operação Marquês. Segundo ele, havia suspeitas de possíveis crimes na distribuição de processos no Ticão que tinham de ser investigadas.

Juiz Ivo Rosa vai mandar Ministério Público investigar sorteio que deu processo ao juiz Carlos Alexandre

A procuradora a quem calhou o caso ouviu os intervenientes e várias testemunhas. Analisou relatórios e concluiu que não havia indícios suficientes para condenar os dois arguidos por qualquer crime. A defesa do ex-primeiro-ministro, que se constituiu assistente do Ministério Público no caso, não concordou. E optou por pedir a abertura de instrução, ou seja, entregar o processo nas mãos de um juiz para que conclua se há ou não matéria para condenar o superjuiz. “Respaldamos, não por uma questão corporativa, mas de convicção na posição da magistrada”, disse o magistrado. “É incontornável que, nem que seja por um principio basilar do direito processual penal, que é o in dubio pro reo, não se poderá favorecer essa posição da defesa”, acrescentou.

Juiz Carlos Alexandre

O juiz Carlos Alexandre não esteve presente no tribunal

JOÃO RELVAS/LUSA

E rebatendo as nulidades invocadas pelo advogado Pedro Delille, que defende Sócrates, lembrou que neste caso não houve um juiz “com poderes premonitórios” para perceber de antemão que aquele processo visaria um ex-ministro, nem uma “funcionária que estaria na calha para a secretaria” ou, sequer, uma “interferência nebulosa na sua escolha para o lugar. Por outro lado, o magistrado criticou as expressões usadas por Delille no requerimento de abertura de instrução (que neste caso funciona como acusação do processo), classificando-as mesmo como “brejeiras”, ao chamar “companheira funcional do arguido” à funcionária e ao referir-se ao juiz Carlos Alexandre como “superjuiz dos tablóides”. “São situações ficcionadas, não há o mínimo de consistência”, acusou. Explicando que dois meses após o novo mapa judiciário, em 2014, e a consequente reforma no sistema informático, o Citius “continuava a deixar num estado de nervos toda a justiça”. Quase diariamente o sistema de justiça era “confrontado com a disfuncionalidade do sistema”. “Este Citius resulta de algum amadorismo”, disse, acusando mesmo tal ser o resultado de uma falta de investimento no setor da justiça. Foi por causa de um “apagão no Citius” registado nesse ano em que se mudou o sistema para o novo mapa judiciário que a funcionária optou pelo sorteio manual.

"Respaldamos, não por uma questão corporativa, mas de convicção na posição da magistrada"
Procurador do Ministério Público

Por outro lado, era já prática no tribunal que os juízes não assistissem aos atos da distribuição. A advogada de Carlos Alexandre, Fátima Esteves, viria a reforçar mais tarde que nem juízes, nem advogados, nem Ministério Público, como dita a lei, estão sempre presentes neste ato por tal ser impossível de fazer duas vezes por dia.

“Desde 1 de setembro até abril de 2016 que quer Carlos Alexandre, quer o juiz Bártolo, quer Ivo Rosa, nenhum deles assistiu a atos de distribuição. Não se pode estar a assacar este vício só Carlos Alexandre se era assim” constatou por seu turno o procurador do Ministério Público.

Pedro Delille entra em jogo, mas coloca-se ao lado do procurador para estarem ao mesmo nível

Pedro Delille, a representar o ex-primeiro ministro, fez questão de falar ao lado do procurador, não só por ser assistente do processo e, por isso, ter que estar ao mesmo nível, mas também para poder passar a mensagem ao público, no caso os jornalistas na sala (tantas vezes criticados por José Sócrates). O juiz desembargador aproveitou para soltar  a ironia, dizendo que, até hoje, os arquitetos que constroem salas de audiência têm dificuldade em encontrar o sítio certo para os advogados.

Pedro Delille, advogado de José Sócrates, durante a sessão do debate instrutório no âmbito do processo Operação Marquês, no Campus de Justiça, em Lisboa, 01 de julho de 2020. A Operação Marquês conta com 28 arguidos – 19 pessoas e 9 empresas -, entre os quais o ex-primeiro-ministro José Sócrates, o banqueiro Ricardo Salgado, o empresário e amigo de Sócrates Carlos Santos Silva e altos quadros da Portugal Telecom e está relacionado com crimes de corrupção, ativa e passiva, branqueamento de capitais, falsificação de documento e fraude fiscal. ANTÓNIO COTRIM/POOL/LUSA

O advogado Pedro Delille lembrou que a escolha dos juízes num processo tem de ser aleatória

ANTÓNIO COTRIM/POOL/LUSA

A jogada de Delille estava lançada, porém, e, para ele, do sítio certo. A olhar para a esquerda falava para o juiz e por vezes para o procurador, para a direita falava para os jornalistas. O advogado lembrou que a questão do sorteio começou a ser levantada há já cinco anos por ele e outros arguidos do caso Marquês, porque no Ticão não foi registado qualquer “apagão” nem qualquer problema informático que levasse à opção da atribuição manual do processo, socorrendo-se nas conclusões do Conselho Superior da Magistratura para o afirmar. Um olhar sobre o caso que o juiz Ivo Rosa, responsável pela instrução do caso Marquês, acabou por não fazer, optanto antes por decidir mandar investigar. Portanto, diz a defesa, é ali, na faustosa sala da Relação, o sítio certo para falar do caso.

"Concluiu-se que não houve apagão [do Citius] nenhum. Houve um erro… Este processo, Vistos Gold e todos os processos que ocuparam a justiça portuguesa nos últimos dez anos foram todos atribuídos assim"
Pedro Delille, advogado de Sócrates

Sócrates não tem dúvidas de que Carlos Alexandre fez de tudo para ficar com os processos mais mediáticos da praça, no caso a Operação Marquês, mas também os Vistos Gold. E para isso planeou ir buscar uma funcionária judicial da sua confiança — com quem já tinha trabalhado dez anos –, que usou para substituir uma outra, e assim combinaram juntos a manipulação do sorteio. Numa tese completamente inversa à do MP e à dos advogados do juiz e a da funcionária, a defesa do ex-primeiro-ministro reiterou que ficou demonstrado que não havia qualquer razão para atribuir o processo manualmente por não haver qualquer falha do sistema informático dos tribunais naquele serviço. “Concluiu-se que não houve apagão [do Citius] nenhum. Houve um erro… Este processo, Vistos Gold e todos os processos que ocuparam a justiça portuguesa nos últimos dez anos foram todos atribuídos assim”, acusou.

O raciocínio de Delille levou-o mesmo a suspeitar deste processo agora na liça, neste caso apontando o dedo ao juiz de instrução João Bártolo, — por ter sido a ele que calhou o caso da investigação à distribuição de processos no Ticão. “Nunca me passou pela cabeça que um juiz de instrução considerasse que há crime nas distribuições, e que um desses juízes pudesse aceitar as funções de juiz de instrução desse inquérito e de impedir o assistente do acesso aos autos”, queixou-se, para depois explicar que nunca conseguiu aceder ao processo em fase de inquérito, mesmo sendo assistente.

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A advogada de Carlos Alexandre joga contra Sócrates e ao lado do MP

Seguiu-se a advogada de Carlos Alexandre, Fátima Esteves, que numa posição contrária a Delille disse que não estava ali para falar para o público, mas para o juiz. A advogada frisou que na altura, em 2014, houve uma série de falhas informáticas que obrigaram a funcionária a optar pelo sorteio manual, tal como aconteceu em tantos outros sítios do país. “Mas a questão aqui é o juiz ser o Carlos Alexandre”, jogou, não deixando de criticar o requerimento de Sócrates.

“Neste caso não foi feito de forma automática porque não era possível. O que íamos fazer? Bolas brancas, bolas pretas? Ainda hoje existem na lei distribuições manuais, não é o preferível, só existem quando as outras não são possíveis, mas são legais e são feitas constantemente quando há problemas informáticos”, concluiu. “Parece que Carlos Alexandre é um Deus que manda nos juízes todos, lamento informar que não”, afirmou.

"Neste caso, a distribuição não foi feita de forma automática porque não era possível. “O que íamos fazer? Bolas brancas, bolas pretas?”
Fátima Esteves, advogada de Carlos Alexandre

Já o advogado Filipe Zóia, que representa a escrivã Teresa Santos, lembrou que a sua cliente foi chamada para aquele serviço pela sua larga experiência já de 41 anos de serviço. De facto ela já tinha trabalhado com Carlos Alexandre na secção militar e precisavam no Ticão de alguém com um perfil semelhante, o que teve a concordância da juiz presidente da comarca. “Os indícios são absolutamente insuficientes. Foi essa a conclusão do processo de inquérito e do inquérito do CMS sobre a distribuição”, concluiu.

Delille ainda tomou a palavra, chamando a tese da defesa “mentirosa”, depois o procurador, e novamente Delille, a advogada de Carlos Alexandre e o advogado de Teresa Santos. Todos voltaram a esgrimir os mesmos argumentos.

Já passava das 18h quando o juiz desembargador tomou as rédeas. E, partindo das posições contraditórias de um lado e de outro sobre o que disse o Conselho Superior da Magistratura e sobre os sorteios e as atribuições de processos, decidiu ele próprio acrescentar alguns elementos à acusação, naquela que foi considerada uma alteração não substancial dos factos. “Prevendo o interesse de cada um dos sujeitos nesse elemento documental e analisando o asservo documental vertido no Requerimento de Abertura de Instrução e não havendo total incidência entre uma coisa e outra, entendi ser cauteloso e ver em que medida é que alguns elementos vindos do CSM poderiam ser úteis na matéria que me cabe”, justificou, sem com esta alteração querer tomar já uma posição. Estas alterações foram entregues por escrito aos advogados.

Em causa na reclamação estava o segundo acórdão consecutivo do Tribunal da Relação de Lisboa

A sessão decorreu numa sala do primeiro andar do Tribunal da Relação por se tratar de um juiz arguido

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Juiz só decide em maio

Ao que o Observador apurou, nesta alteração entregue aos advogados e que será agora por eles analisada, constam elementos do relatório final do processo de inquérito do CSM, feito em 2021, que lembra que o TCIC foi criado em 1999 e até setembro de 2014 teve apenas um juiz, quando passou a ter dois, em setembro desse ano, com o juiz João Bártolo — que passou a ser o juiz 2.

O mesmo documento refere que o Citius, a plataforma informática de tramitação eletrónica dos processos judiciais, entre setembro e dezembro de 2014, “teve constrangimentos técnicos que afetaram a sua operacionalidade, quer em termos de acesso quer quanto à sua utilização” aquando da migração dos processos da antiga estrutura judiciária para a decorrente reforma judiciais.

Antes e depois destas falhas houve, porém, sempre dois tipos de distribuição: a automática e a manual (assim selecionada pelo utilizador na plataforma Citius, mas que depois corria como a primeira opção). Antes do novo sistema, existia uma terceira forma: o método Manual-Atribuição, em que o processo era de facto distribuído manualmente.

Os advogados decidiram levar estas alterações para casa, para poderem estudá-las e irão pronunciar-se sobre elas a 22 de abril, numa segunda sessão marcada para depois das férias judiciais da Páscoa. O jogo terminou para já sem vencedores, mas com uma data prevista para a decisão: 3 de maio, pelas 16h.

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