É um dos factos novos que o Ministério Público (MP) imputa a António Mexia e a João Manso Neto e até envolve a Operação Marquês, a Operação Lava Jato e uma conta bancária conhecida pelo nome de “Paulistinha”. No centro de tudo está a adjudicação da obra de construção da barragem do Baixo Sabor — localizada em Trás-os-Montes e que é considerada o maior centro de produção hidroeléctrica do país. O MP suspeita que António Mexia e João Manso Neto, com a ajuda do ex-ministro Manuel Pinho, terão alegadamente beneficiado o consórcio liderado pelo Grupo Lena e a Odebrecht Portugal (então designada de Bento Pedroso Construções) na adjudicação daquela obra no dia 30 de junho de 2008. Mais tarde, em 2016, a elétrica pagou cerca de 13 milhões de euros por trabalhos a mais que não estavam previstos no contrato inicial e que estão agora sob suspeita.
Tudo porque o MP considera que terá ocorrido um alegado prejuízo patrimonial para a empresa, razão pela qual imputou o crime de participação económica a António Mexia e a João Manso Neto e poderá vir a promover a suspensão de funções dos presidentes da EDP e da EDP Renováveis durante esta quinta-feira com o objetivo de prevenir eventuais prejuízos futuros. Os quatro crimes de corrupção ativa imputados a Mexia e a Manso Neto também deverão ser utilizados nesse contexto.
A EDP, por seu lado, sempre defendeu que a adjudicação é legal e que o pagamento de 13 milhões de euros é igualmente lícito (por corresponder a trabalhos efetivamente realizados). Além disso, a decisão não foi tomada por Mexia e Manso Neto mas sim pelo conselho de administração da EDP, que aprovou por voto unânime o pagamento — que foi posteriormente auditado pela Ernst & Young. Há também reuniões de responsáveis da Odebrecht com o Ministério da Economia que o MP relaciona com um alegado favorecimento no concurso de construção da barragem do Baixo Sabor mas que, na realidade, poderão estar ligadas a um projeto imobiliário em Vila Real de Santo António que a construtora queria então desenvolver com o selo de Projeto de Interesse Nacional (PIN) criado por Manuel Pinho.
Contactado pelo Observador, João Medeiros, o advogado dos gestores da EDP, não quis fazer comentários.
Acordo entre Pinho, Mexia e Manso Neto
Os despachos de indiciação de António Mexia e de João Manso Neto contêm a história completa do dossiê da barragem de Baixo Sabor. O MP não tem dúvidas de que Manuel Pinho, António Mexia e João Manso Neto “acertaram os termos em que a construção da barragem do Baixo Sabor ia ser adjudicada ao consórcio Odebrecht/Lena, bem sabendo que o custo final da obra seria muito superior ao da adjudicação“, lê-se no despacho de indiciação de Mexia e Manso Neto.
Ao contrário do que José Sócrates chegou a afirmar publicamente, os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto entendem que o Governo de então teve uma intervenção direta no processo de adjudicação através do ministro da Economia, Manuel Pinho. De acordo com as agendas de Pinho, este terá recebido pelo menos uma vez António Barroca e Miguel Henriques, do Grupo Lena, no dia 10 de março de 2008 — quando ainda decorria a avaliação das propostas. Já os responsáveis da Odebrecht foram recebidos por três vezes: a 1 e a 22 de fevereiro e a 9 de abril de 2008 por Francisca Pacheco, assessora de Manuel Pinho. “Das empresas que integravam os cinco consórcios que apresentaram propostas para a construção da barragem do Baixo Sabor, apenas o Grupo Lena e a Odebrecht foram recebidas no gabinete do arguido Manuel Pinho durante o período de avaliação dessas propostas”, lê-se nos despachos.
O primeiro dos encontros entre a assessora de Manuel Pinho e os representantes de Odebrecht ocorreu precisamente no mesmo dia em que as propostas dos concorrentes ao concurso público para a construção da barragem do Baixo Sabor foram abertas pela EDP.
No caso dos responsáveis da Odebrecht (Mário de Gaviria e António Pereira), o Observador sabe que estes também tiveram reuniões entre janeiro e fevereiro de 2008 com Bernardo Trindade (então secretário de Estado do Turismo), Óscar Gaspar (então assessor do primeiro-ministro José Sócrates), entre outros contactos institucionais, para apresentarem um projeto imobiliário que queriam desenvolver em Vila Real de Santo António com o selo de Projeto de Interesse Nacional (PIN) criado pelo então ministro Manuel Pinho. Os dois contactos com de Manuel Pinho poderão ter tido esse objetivo.
Em declarações ao Observador, António Pereira confirmou que as reuniões com Francisca Pacheco tiveram como objeto o projeto turístico que a construtora brasileira queria desenvolver em Vila Nova de Cacela. Os encontros com a assessora de Manuel Pinho, diz Pereira, foram pedidos formalmente por email e tinham como objetivo apresentar o projeto turístico a Pacheco porque esta era a representante do Ministério da Economia na comissão que decidia quais os projetos que poderiam ter o selo PIN — que, na prática, era uma espécie de via verde administrativa para os projetos turísticos mais relevantes. Certo é que a Odebrecht não conseguiu o selo PIN e muito menos conseguiu a aprovação de licenciamento urbanístico no Algarve para um projeto avaliado em cerca de 300 milhões de euros.
A obra da barragem do Baixo Sabor começou por ser anunciada no dia 29 de agosto de 2007 por Manuel Pinho — então ministro da Economia que é suspeito no caso EDP de ser sido alegadamente corrompido por Mexia, Manso Neto e Ricardo Salgado —, tendo sido apresentada publicamente dois dias depois em Torre de Moncorvo pelo então primeiro-ministro José Sócrates e pelo próprio Mexia. A 30 de junho de 2008, a EDP adjudicou a obra ao consórcio Lena/Odebrecht.
O início: os pagamentos detetados na Operação Lava Jato
Este caso, que já foi investigado na Operação Marquês por suspeitas que incidiam então sobre José Sócrates, começou por ser detetado na Operação Lava Jato. De acordo com o jornal Globo, a contabilista Maria Lúcia Tavares confessou em 2016 às autoridades brasileiras que a Odebrecht tinha realizado seis transferências entre 25 de março e 9 de abril de 2015 no valor total de 750 mil euros para pagar alegadas ‘luvas’ no contexto da construção da Barragem do Baixo Sabor. As transferências tinham sido realizadas a partir de uma conta bancária da construtora que tinha o nome de código de “paulistinha” — e uma das seis contas que Maria Lúcia geria sob as ordens de Marcelo Odebrecht.
Mais: Maria Lúcia Tavares terá também confessado que terão sido levantados cerca de 60 milhões de reais (cerca de 10,4 milhões de euros ao câmbio de hoje) em ‘dinheiro vivo’ para pagar alegados subornos no Peru e em Portugal.
Lúcia Tavares não era uma funcionária qualquer na Odebrecht, já que liderava o Setor das Operações Estruturais da construtora brasileira, reportando diretamente ao todo-poderoso Marcelo Odebrecht. O seu papel era de tal forma relevante que chegou a ser retratada na série “O Mecanismo”, da Netflix, sobre aquele caso de corrupção, pois Maria Lúcia foi uma das principais denunciantes do caso. Através de um acordo de colaboração premiada com o Ministério Público Federal, a antiga funcionária da Odebrecht entregou toda a contabilidade paralela da construtora que permitiu destapar os pagamentos ilícitos feitos sob as ordens de Marcelo Odebrecht. O relatório da Polícia Federal sobre a conta “Paulistinha”, que pode ser consultado aqui, revela bem a importância das informações documentais de Maria Lúcia, sendo que o líder da construtora brasileira viria mais tarde viria a confirmar as denúncias da sua ex-contabilista.
Todas estas informações foram transmitidas oficialmente ao Ministério Público português através de um pedido de cooperação internacional assinado pelo juiz Sérgio Moro, tal como o Observador noticiou então.
Tal como ficou demonstrado na Operação Lava Jato, a Odebrecht e outras construtoras brasileiras sobrefaturavam os seus clientes (a Petrobras e outras empresas públicas brasileiras) para financiarem o pagamento de subornos. Na prática, as ‘luvas’ a políticos e a gestores da Petrobras eram pagas com dinheiros públicos.
As suspeitas contra Sócrates na Operação Marquês
As suspeitas de corrupção na obra da barragem do Baixo Sabor começaram por ser investigadas nos autos da Operação Marquês. A equipa liderada pelo procurador Rosário Teixeira ainda suspeitou que José Sócrates tivesse sido alegadamente corrompido neste dossiê mas este desmentiu os factos. Tinha sido o governo de Sócrates a lançar a obra, incluída no Plano Nacional de Barragens, mas a defesa de Sócrates garantia que “a adjudicação e construção” da barragem do Baixo Sabor “foi da estrita competência da EDP, sem que nelas o governo de então interviesse a qualquer título”.
As suspeitas mantiveram-se durante algum tempo mas acabaram por ser descartadas com o despacho de encerramento de inquérito da Operação Marquês, que acusou José Sócrates de 31 crimes.
Em Março de 2018, o jornal Público relacionou pela primeira vez as transferências de 750 mil euros e os levantamentos em ‘dinheiro vivo’ de 60 milhões de reais detetados na Operação Lava Jato com os pagamentos de 13 milhões de euros de trabalhos a mais autorizados pelo conselho de administração da EDP liderado por António Mexia. Aquele jornal referiu ainda que o consórcio liderado pelo Grupo Lena não tinha experiência naquele tipo de empreitada.
Certo é que em vez dos 490 milhões de euros orçamentados inicialmente, o custo final veio a cifrar-se em 760 milhões. E em vez de ser inaugurada a 30 de junho de 2013, só foi inaugurada em 2016. Além de questões ambientais, também diversas exigências das autarquias e os investimentos ferroviários foram as razões apresentadas para o desvio orçamental e temporal.
Os trabalhos a mais de 13 milhões de euros
A barragem do Baixo Sabor começou a produzir energia em 2014 — apesar de ter sido dada como concluída em 2016. Cerca de quatro meses mais tarde, entre 25 de março de 2015 e 9 de abril 2015, foram feitas as já referidas seis transferências da conta “Paulistinha” no valor total de de 750 mil euros para Portugal. Desconhece-se o paradeiro do dinheiro.
Em junho de 2015, o juiz Sérgio Moro decretou a prisão preventiva de Marcelo Odebrecht e as luzes vermelhas acenderam-se na sede da EDP. Um pouco mais tarde, em 2017, a associação ambientalista GEOTA apresentou uma queixa-crime na Procuradoria-Geral da República, citando as transferências de 750 mil euros detetadas na Operação Lava Jato e que já tinham sido noticiadas no Brasil.
Foi precisamente em 2017, e após uma discussão iniciada um ano antes, que a EDP e a Lena/Odebrecht selaram um acordo para terminar com o conflito à volta dos trabalhos a mais que as questões ambientais e arqueológicas acabaram por provocar na zona. Em vez dos 20 milhões de euros reclamados, Mexia e o Manso Neto terão apoiado a proposta da EDP Produção (empresa do Grupo EDP responsável pela obra do Baixo Sabor) em reunião do conselho de administração da holding da elétrica para serem pagos cerca de 13 milhões de euros.
O que diz a EDP
Num direito de resposta enviado para o Público no dia 20 de março de 2018, a EDP refutou quaisquer ilegalidades seja no ato da adjudicação, seja no pagamento de 13 milhões de euros em trabalhos a mais.
Num documento assinado pelos administradores João Manso Neto e por Rui Teixeira, a EDP começou por garantir que o consórcio Grupo Lena/Odebrecht foi escolhido “por ter apresentado a proposta mais competitiva face aos critérios estabelecidos no concurso, em particular no que respeita à garantia de boa execução dos trabalhos e qualidade técnica”, lê-se no despacho de indiciação
A principal elétrica nacional explicou ainda que os valores extra de 13 milhões de euros pagos deveram-se a vários fatores:
- “Atrasos na obra decorrentes das providências cautelares requeridas contra o Estado;
- “Revisão de preços nos termos do contrato”;
- E “trabalhos de arqueologia”.
O Grupo EDP recordou ainda que o consórcio Lena/Odebrecht tinha proposto inicialmente o pagamento de 20 milhões de euros em trabalhos a mais — valor do qual a elétrica discordou. Por outro lado, os administradores Manso Neto e Rui Teixeira enfatizaram que o processo foi sempre conduzido pela EDP Produção (empresa na qual António Mexia ou o próprio Manso Neto não teriam qualquer cargo), sendo que o assunto só subiu para a holding da EDP por se tratar de uma verba que as regras internas obrigavam que fosse levado ao órgão executivo máximo liderado por Mexia. A aprovação, conclui o Grupo EDP, foi feita por unanimidade — facto que pretendia contrariar a informação do Público de que vários administradores da EDP teriam alegadamente discordado do valor pago ao consórcio Lena/Odebrecht pelos trabalhos a mais. E mais tarde terá sido validada por uma auditoria da Ernst & Young.
Texto alterado às 13h45 com a introdução de declarações de António Pereira, representante da Odebrecht, e novas informações sobre as reuniões da construtora brasileira no Ministério da Economia