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DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Miguel Guilherme: "Aos 13 anos fui detido por colar cartazes"

Aos 60 anos, Miguel Guilherme já fez tudo como ator. Agora, está no Teatro Aberto, com "A Verdade" e "A Mentira", e no cinema, em "Parque Mayer". Uma entrevista sobre trabalho, a idade e felicidade.

Entrevistas ao fim da tarde dá nisto. No quê? Em entrevistados com fome, entrevistados que ao fim da tarde ainda só comeram uma sandes com dois croquetes e manteiga. Desculpe?

“Se pedires no café eles não vão estranhar, o meu pai é que me trazia sempre estas sandes d’A Mexicana ou do Roma, quando vivíamos no Areeiro”.

Miguel Guilherme precisa de comer antes do ensaio, mas não é grande fã de gastronomia — e cozinhar? Fica nervoso.

Sempre viveu em Lisboa, depois do Areeiro cresceu nos Olivais – onde viria a ser detido por colar cartazes, onde “nem na altura do PREC se deixou de cuidar da relva” (e que agora está toda murcha, diz o ator) – e agora, nos últimos anos, no Príncipe Real, onde gosta de ir ao quiosque do Oliveira, embora rompa a fila que os turistas impuseram num sítio tão tradicional.

Apesar disso tudo, é um homem tímido, um homem tímido com piada, que também os há. Um homem que deixou de ir à missa quando começaram a rebentar os escândalos de pedofilia na Igreja Católica, um homem que ia ficando bêbado a fazer de bêbado, num filme de Manuel Mozos e que fumou uma erva estranha no Senegal, a rodar um filme de Manoel de Oliveira. Que foi o Quim de “Fura-Vidas”, que encenou na Cornucópia, que aprendeu a ler o teleponto quando fez “O Último a Sair”, que faz novela, teatro, cinema, produções independentes e comerciais. Um caso raro em Portugal, certamente, acabadinho de fazer 60 anos.

Esta quinta-feira chegou às salas “Parque Mayer”, filme de António-Pedro Vasconcelos cujo elenco conta com Miguel Guilherme. E o ator é um dos protagonistas de duas peças de Florian Zeller, “A Verdade” e “A Mentira”, com encenação de João Lourenço, que se estrearam esta semana no Teatro Aberto, em Lisboa. Nesta entrevista, Miguel Guilherme diz que é mais da verdade. Esperemos que não nos esteja a mentir.

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Duas peças do mesmo autor: “A Verdade” e “A Mentira”…
Na realidade, os nomes podiam estar trocados. A verdade e a mentira estão de tal forma cruzadas que os nomes se podiam inverter. Foram duas peças que o Florian Zeller escreveu em dois momentos diferentes, “A Verdade” escreveu em 2010, e “A Mentira”, que tem características mais de boulevard, escreveu já em 2017. “A Verdade” parece-me aquela mais bem estruturada no que diz respeito à escrita dramatúrgica, foi baseada na peça “Betrayal” do Harold Pinter. Mas as duas são engraçadas, e usam muito aquela estrutura do boulevard francês antigo, do princípio do século.

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E o Miguel é mais da verdade ou mais da mentira?
Não sei, as duas coisas andam de mãos dadas, digamos que é impossível viver sem mentir, uma certa mentira social, mas também é impossível viver sem dizer a verdade.

Às tantas tem que se dizer a verdade, não é?
Pois, se calhar dá jeito. Eu sou mais da verdade, antes da entrevista estava a refletir sobre isso, a peça é um bocadinho sobre o que nos acontece diariamente quando optamos por mentir ou ser verdadeiros. Essas consequências geralmente acontecem-nos logo a curto prazo, coisas muito pragmáticas, quando vamos para um lado ou para outro.

"Quando fiz 50 é que fiz uma festarola, aí sim. Foi mesmo para rebentar. Os sessenta são uma idade muito temida pelas pessoas. Por mim também, acho que só se compreende isso quando se franqueia essa porta, que abre espaço para toda uma maneira nova de viver que se chama velhice."

Mas a mentira é uma arma interessante para um ator, certo?
Eu acho que é mais fazer de conta, do que mentir.

Fazer de conta não tem a mesma intenção que a mentira?
Quando minto como ator não ganho nada com isso, só ganho na verdade. Também não quero entrar muito nestas lucubrações do que é que é um ator, já estou um bocadinho farto, para ser sincero. O que importante é descobrir a verdade da situação que o autor propõe, se não vais por aí estás a enganar as pessoas e a ti próprio. Na vida real é lícito mentir, por exemplo, para salvar a vida é lícito mentir? E não são situações assim tão hipotéticas como isso, basta a gente lembrar-se dos judeus ou da questão bíblica de Pedro que renegou Cristo para salvar a vida. Isto faz-me refletir… quando é que a mentira pode ser uma coisa libertadora ou salvadora. Mas, no fundo, o que salva é a verdade.

Por falar em questões bíblicas, qual é a sua relação com a Igreja?
Neste momento não é grande coisa. Esta questão da pedofilia, a quantidade de anos em que a coisa foi sendo abafada, é uma coisa, como católico, que me abala bastante.

Deixou de ir à missa, por exemplo?
Sim, deixei, sim, não estava a ser verdadeiro comigo próprio se continuasse a ir. De repente foi um destapar de um escândalo em vários países, mas isso não quer dizer que não pense na fé. Por exemplo, gosto imenso deste Papa.

Vê nele uma pessoa progressista?
Sim, vejo, mas também não vai conseguir. Aquilo está tão minado…

Uma pessoa que supostamente tem um poder enorme.
Com o poder vem também uma solidão muito grande, acho eu.

Acabou de fazer 60 anos.
Não vamos falar sobre isso.

Temos que falar sobre isto. Fez uma grande festa?
Nada, não fiz festa nenhuma, estávamos a ensaiar e a malta aqui do Teatro [Aberto] fez-me assim uma pequena festa e foi muito comovente. Quando fiz 50 é que fiz uma festarola, aí sim. Foi mesmo para rebentar. Os sessenta são uma idade muito temida pelas pessoas. Por mim também, acho que só se compreende isso quando se franqueia essa porta, que abre espaço para toda uma maneira nova de viver que se chama velhice. Ao mesmo tempo tenho curiosidade de saber como é que vai ser, a velhice profunda é quase como se fosse um nascer ao contrário…

Tem pensado muito sobre isso, portanto.
Muito. E às vezes obsessivamente, tenho que parar.

Sente mudanças de hábitos?
Eu não sinto, mas as outras pessoas provavelmente sentem, enfim, é uma questão da pessoa se ir habituando, é ver isto como uma nova aventura.

Já tem projetos para essa época?
Vamos lá ser claros: ainda não estou nessa fase. É difícil pensar nisso, a maioria das pessoas evita e quando chega a altura leva com um grande balde de água, acho que se tem de começar a pensar nisso até jovem. Ver a finitude – talvez o máximo que dure são uns vinte anos – isto põe questões lixadas, é como levar um murro no peito. Também não se pode ficar preso nisso, lido particularmente mal com isso, ou seja, penso muito na morte. Não é que tenha de ser mau, mas tens de pensar de uma forma clara, olhar para o corpo e para a mente e perceber que vamos acabar. Não podemos querer ser aquilo que já não conseguimos ser, ainda que possamos ser sempre qualquer coisa.

"É trabalho e depois esse trabalho dá felicidade ou não. A comédia não está ligada à felicidade e ainda bem. A felicidade é um sentimento um bocado estranho"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A idade altera muito a condição de ator?
Sim, vamos esquecendo o que fomos… Quando tinha 30 anos como é que representava? Como é que me mexia, como é que encarava o trabalho? Uma das coisas boas de ser ator é que podemos sempre usar o corpo que temos. Cá não acontece muito isso porque temos um teatro e um cinema muito frágil, não há reportório, não é como em Inglaterra ou em França, onde quer na televisão, quer no cinema, há papéis para atores mais velhos. O teatro continua a ser uma coisa muito precária, de amigos, como foi no meu tempo, uma série de amigos que se juntam para fazer projetos com os quais sonham. Continuamos nesse pé. Não há uma solidificação.

Tem alguma proposta?
Não sei… acho, e apesar do belo trabalho que o Tiago Rodrigues está a fazer no Teatro Nacional, que os teatros nacionais deviam ter reportório, companhias não direi vitalícias, mas com contratos de cinco, seis anos, onde se faziam os clássicos, onde as coisas não fossem só experimentais. As velhas companhias independentes estão a acabar porque as pessoas estão a ficar mais velhas, e não vejo que o Estado financie companhias novas como financiou A Comuna, o Teatro Aberto, a Cornucópia, a Companhia de Teatro de Almada, que são companhias que vêm da Revolução. Faz falta as pessoas unirem-se e o Estado ter uma política clara para as artes performativas.

Dos dois lados há coisas a resolver?
Sim, no meu caso, o caso de um ator mais velho, começo a pensar como é que posso representar, onde é que posso representar. E claro, nós somos muito egoístas, só pensamos nas coisas quando lá chegamos. Mas é verdade que os atores mais velhos precisam de algumas condições de conforto, que não precisam quando têm vinte ou trinta anos. Isso é tudo um bocado melindroso.

Deduzo que não se sinta excluído, não tem parado de trabalhar.
Não, de todo, mas eventualmente daqui a uns anos terei que abrandar. Ou porque tenho menos trabalho ou porque quero abrandar. Só pensava em termos de teatro, nunca pensava na minha vida pessoal. Há de chegar o dia em que vou estar só, sem o teatro.

Li que uma vez, para fazer um filme para o Manuel Mozos, começou a beber um bocado de mais.
Aquilo era um filme um bocado autobiográfico, mas ninguém dizia que era sobre a vida dele, nem ele. Mas sim, levei aquilo um bocado a sério de mais, não perdi o controlo nunca, mas carreguei um bocado no álcool, foi só nessa altura, mas lembro-me que estava na antestreia completamente bêbado, não faz parte da minha pessoa, não ia para uma antestreia bêbado porque o personagem era um alcoólico.

Sempre gostou de trabalhar assim ao detalhe?
Depende dos projetos, há coisas que pedem mais contenção, ou que não valem a pena, acho que tem de haver inteligência.

Portanto nunca sentiu que já era mais a personagem do que o Miguel Guilherme.
Nunca, isso nunca, talvez nessa altura desse filme do Mozos, mas foi quase sem me aperceber, “o que é que se passa aqui, estás parvo ou quê?”, disse para mim mesmo. E então rapidamente a coisa virou.

"Sempre fui um miúdo muito fechado e tímido. Um bocado como sou hoje, mas hoje estou mais polido, sei melhor navegar nisto que é a vida, sei estar em certas situações, era muito umbiguista... sem dúvida, mas depois fui aprendendo a disfarçar."

Cresceu nos Olivais, onde foi levado para a esquadra por estar a colar cartazes.
Sim, éramos miúdos, adolescentes, pré-adolescentes, e já éramos muito politizados, estávamos em 1972, 1973, alguns pais do nosso grupo eram antifascistas, já tinham estado presos, havia pessoas do PCP, havia socialistas, esquerdistas, não percebia nada disso, sabia é que havia ali alguma coisa que estava errada. Não sabia o que era a liberdade, não sabia o que era a ideia das pessoas fazerem uma reunião associativa, não conhecia. Estávamos a colar cartazes da CDE [Coligação Democrática Eleitoral] a um sábado e entretanto aparece a polícia e somos detidos. O movimento associativo já estava muito forte, já muitas pessoas iam presas. No meu caso ficámos detidos umas horas, mas aquilo era lixado, tinha treze anos, tinha que estar às sete horas em casa para jantar. Eu e o meu irmão a pensar no que é que íamos dizer se não estivéssemos em casa às sete.

Qual foi a mentira que inventaram?
Não houve mentira nenhuma. Libertaram-nos às seis e conseguimos estar às sete em casa. Isso foi a minha experiência com as forças da repressão. É lógico que quando houve liberdade em Portugal isto rebentou por todos os lados, cometeram-se muitos excessos como não podia deixar de ser, eu pelo menos considero que esses excessos foram maravilhosos.

Era um rapaz mais tímido ou assim mais arisco?
Sempre fui um miúdo muito fechado e tímido. Um bocado como sou hoje, mas hoje estou mais polido, sei melhor navegar nisto que é a vida, sei estar em certas situações, era muito umbiguista… sem dúvida, mas depois fui aprendendo a disfarçar.

Onde é que fazia férias?
Fazia férias na Arrábida com os meus primos, numa quinta. Íamos os três meses de férias para a Serra da Arrábida.

Grandes caminhadas?
Grandes caminhadas, divertíamo-nos muito mesmo. Quando começámos a crescer, bom, fui o tipo de nós todos que tirou a carta de condução mais tarde, provavelmente o sexo também foi mais tarde, fiz tudo mais tarde. Mas foi isso, quando houve carro deixámos de ir. Íamos para discotecas, surgem raparigas… e aí…

…a agenda fica assoberbada.
E muda, completamente.

Sempre viveu em Lisboa. Primeiro em Arroios, depois nos Olivais e agora no Príncipe Real.
Sim, já vivi no Chiado, também.

Como é que vê a cidade hoje?
Vejo uma cidade a mudar. É muito impressionante, muda muito rápido. E depois, claro, podemos entrar naquela onda do “no meu tempo é que era bom”… e era, lembro-me quando ia para o Bairro Alto, com vinte e tal anos, mas também havia lá uns velhos a dizer que aquilo no tempo deles é que era bom. Se hoje for ao Bairro Alto também digo no meu tempo é que era bom. Mas depois passa-me logo isso. Agora a cidade mudar assim é um bocado assombroso, lá está, deixa de ser a minha cidade.

"Quando digo que temos pouco dinheiro em Portugal não é para ficarmos todos ricos, é para se fazerem bem as coisas"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Mas ainda gosta de Lisboa?
Claro que sim, de outras coisas nem tanto, o turismo em massa matou muita coisa, a maneira de viver lisboeta, os bairros estão a ser expurgados das pessoas, disso não gosto, se não o que é que as pessoas vêm cá ver? Fachadas de prédios?

E ainda vai ao Quiosque do Oliveira?
Claro, é obrigatório, sobretudo no verão. Faz-me muita confusão ver pessoas a fazer fila para o quiosque. Um gajo está em fila para o quiosque? Isto não faz sentido e é uma coisa que tem três ou quatro anos. As pessoas chegavam lá e havia uma lei natural em que ele atendia, eu cá recuso-me a ir para a fila.

Passa à frente?
Pois passo, aquilo é só cámones. Gosto de uma cidade cosmopolita, mas… vá lá, porra.

Estudou Antropologia, certo?
Sim, foi o maior erro da minha vida, ou um dos maiores. Detestei aquilo logo ao princípio, não sei, o Levi-Strauss, aquela ideia do “Bom Selvagem”, de ir para a selva. Já não há selva, já não há índios para estudar. Percebi que não era bem aquilo, se tivesse ido logo para História… hoje talvez fosse licenciado em História. Ator, sempre, mas licenciado em História. E também fui preguiçoso, podia ter feito as duas coisas, mas estava de tal maneira imbuído no teatro, uma espécie de vida em comum, que me deixa ir. Ainda estive em cinema… e depois desisti também.

E ainda teve um part-time num arquivo de um laboratório de análises clínicas.
Sim, foi a única vez na minha vida em que trabalhei, fora do teatro. Foi horrível, tinha 18 anos, era um part-time de três horas e aquelas míseras três horas pareciam dias.

O que é que fazia?
Arquivava as análises com o nome do doente. Só que naquela altura não havia sida, era uma rebaldaria total, o sangue não era considerado uma coisa perigosa, portanto a8quilo era sangue por todo o lado, os papéis vinham com sangue fresco.

Isto em que ano?
Em 1978. As seringas não eram descartáveis, entre outras coisas, e provavelmente foi aí que apanhei tuberculose. Não havia a mínima consciência, mas pronto, a tuberculose resolveu-se rapidamente, foi o meu tio, que era cardiologista, que me tratou, não havia aquelas estirpes novas, foi fácil de tratar.

Começou em teatro n’A Comuna.
Sim, era um grupo muito interessante nos anos 70. Era um grupo de festival, que ia a Nancy, à Colômbia, Festival de São Paulo e viajei muito com eles e aprendi muito. Havia aquela ideia onde éramos todos iguais, o que era uma falsidade porque isso não é possível, mas aprendi muito na Comuna. E depois saí, eu já não queria aquilo e eles já não me queriam a mim. Cumpri lá o meu tempo e depois segui uma carreira de ator normal.

"Já nem sei se há cinema em Portugal, o cinema não é isto, não é chegar ali com a máquina e filmar, não é isso, por isso é que falo em luxo, dinheiro, as pessoas estarem relativamente bem instaladas, comerem bem, porque no cinema é muito importante comer bem. Uma maneira de satisfazer as equipas é que se coma bem, agora já nem isso acontece."

Mas já trabalhou com muitas pessoas diferentes, faz coisas mais independentes, coisas mais comerciais. Normalmente as pessoas escolhem um caminho mais vincado.
Pois, percebo isso, sempre estive neste terreno misto. Para mim é importante pensar que além de uma atividade artística isto é a minha profissão e não vou negar que há coisas que fiz por dinheiro, outras que correram mal, mas isso faz parte do caminho.

Não fosse isso e teria ido, eventualmente, por um caminho mais independente.
Sim, claramente. Cada pessoa é uma pessoa, eu vivi e vivo disto e não quer dizer que não haja uma certa ética em relação a nós próprios, sempre naveguei pelos vários sítios.

Gosta dessa ideia de rotação, portanto.
Gosto e acho que isso também me trouxe alguma técnica ou alguma experiência e algumas alegrias, porque fui conhecendo pessoas diferentes. Neste momento, sobretudo a nível de teatro, já penso muito bem o que vou fazer, já tem de estar mais claro, para mim.

Isso porque o teatro exige mais?
O teatro é a minha matriz, foi onde comecei e é onde me sinto melhor. É claro que também tiro muito gosto a representar noutros media.

Em cinema, por exemplo, li que uma vez fumou uma erva que não lhe fez muito bem, no Senegal, durante as rodagens de um filme do Manoel de Oliveira. Os bastidores do cinema têm muitas histórias.
Sim, e aí éramos muito novos, estávamos ali um mês e meio sem fazer grande coisa, ainda por cima durante três ou quatro semanas estivemos parados porque alguns atores adoeceram com malária e tiveram que ir para o hospital, em Dakar. Então ficámos numa zona de fronteira com a Guiné, só havia praia e selva, e por acaso aconteceu-me, nem era muito dessas coisas, mas aqueles sons de África à noite são uma coisa… entrei um bocado em paranoia, mas depois pronto, fui para o quarto de um amigo e estivemos a conversar até passar.

Pelo que está a dizer parece que as rodagens não são propriamente sítios muito divertidos.
Pois… não sei, onde senti que estava a fazer mais cinema foi nos filmes do Manoel de Oliveira, na medida em que havia sempre mais dinheiro e o cinema é um sítio luxuoso, não é uma coisa que se faz em quatro semanas, um filme que faça dois minutos por dia já é muito tempo. Agora fazem-se sessenta minutos de televisão e quer-se exportar para o cinema e está-se a conseguir, ou seja, nós temos a particularidade de estragar aquilo que é bom, ou que não estava bom mas… no fundo, o mau influencia o bom e não o contrário. Já nem sei se há cinema em Portugal, o cinema não é isto, não é chegar ali com a máquina e filmar, não é isso, por isso é que falo em luxo, dinheiro, as pessoas estarem relativamente bem instaladas, comerem bem, porque no cinema é muito importante comer bem. Uma maneira de satisfazer as equipas é que se coma bem, agora já nem isso acontece, as pessoas trabalham onze horas por dia mas se comerem bem a coisa resulta. Se dão porcaria para os atores comerem, aquilo vai correr mal.

Ainda assim o Miguel tem continuado a fazer.
Sim, fiz o novo filme do António-Pedro Vasconcelos, o “Parque Mayer”. O António-Pedro Vasconcelos é um senhor, é um realizador com setenta e tal anos. Eu vi-o a tentar fazer um filme com pessoas que já não sabem o que é fazer um filme, um plano, “não, mas eu preciso de quinze minutos ou de meia-hora para pensar no plano”, “o quê? isto não é para pensar, isto é para fazer”. E olhei para ele e comoveu-me imenso que aquilo não é propriamente um produto, como se chama agora, é um filme. Isto não é no mundo inteiro, é uma coisa nossa.

[o trailer de “Parque Mayer”:]

Mas lá fora haverá mais dinheiro para ter tempo.
Sim, mais dinheiro, mais consciência, mais honestidade, mais verdade. Somos um país de poetas, de escritores e de pintores.

Mas há muita gente talentosa a começar.
Sem dúvida, muito boa gente, faço novela e vejo muitos atores de novela que são muito talentosos e profissionais, mas que não têm hipótese de fazer outras coisas, se calhar é assim: se faço novela, faço novela; se faço cinema, faço cinema. Mas é pena que não haja uma transmutação.

Estava a falar dessas rodagens e lembrei-me das rodagens que se passam na série “Sara”, do Bruno Nogueira e do Marco Martins, onde o Miguel é uma espécie de assistente.
Não, sou não um assistente, sou um amigo do realizador. Aqueles realizadores do Novo Cinema Português tinham sempre uma espécie de musa ou de um tipo que lhes amparava os golpes.

Que era assim filósofo.
Era um filósofo sim, e havia, ainda há acho eu, sempre houve uma espécie de figura que fazia a semiologia da coisa.

Que tem pouco que ver com a forma de ser do Miguel.
Pois, mas eu vi muito isso. E a série é genial, é a prova provada de que podemos fazer bem. Só que tem que ser honesto, aquilo é feito com uma grande inteligência e resulta, é bom.

E as outras não resultam porquê? Até se têm feito algumas séries.
Não sei, ou é porque as pessoas não sabem fazer ou são questões de produção. O que sei é que é a série é muito inteligente, há um naipe de atores que é muito difícil ter junto, há um guião maravilhoso e não há dinheiro… claro que só se faz uma vez. Aquilo foi uma experiência, mas agora já podemos dizer “não”, já é possível fazer bem e com inteligência… e a maior parte das séries são muito burras.

"Há pessoas que são cómicas por natureza e que são pessoas até muito tristes na vida. Não é bem o meu caso, mas podem ser pessoas altamente deprimidas, a felicidade não é para aqui chamada, é uma coisa à parte."

Falando de projetos com sucesso na televisão, o Miguel esteve no lendário “O Fura-Vidas”.
Ainda hoje me falam do “O Fura-Vidas”, disso e do “Conta-me Como Foi”. “O Fura-Vidas” é assim uma coisa mais fasquiada.

Em 2016 entrevistei o Ivo Canelas que me disse que aceitou assim que soube que era consigo e ainda acrescentou: “É um profissional obsessivo ao pormenor, se passar no radar dele algo que não bate certo ele acusa”. Confirma isto?
Confirmo. Quando uma pessoa critica tem que ser para agitar, para fazer mexer, quando digo que temos pouco dinheiro em Portugal não é para ficarmos todos ricos, é para se fazerem bem as coisas. A questão da formação também é essencial. Mas voltando ao “Fura-Vidas”… era a primeira vez que o Ivo estava a fazer televisão, lembro-me assim de coisas soltas, não sei. Na realidade, o “Fura-Vidas” foi um falhanço enorme, porque a SIC foi abaixo nessa altura com o aparecimento do “Big Brother”, portanto os gajos nem sequer passaram “O Fura-Vidas” todo.

Pensaram que era melhor fazer um reality show.
Passaram-se, como é normal. Mas depois apareceu um canal chamado SIC Comédia e aí é que “O Fura-Vidas” começou a passar, dois ou três anos depois. E foi aí que teve êxito, já não me lembrava daquilo quando me começavam a chamar-me Quim na rua e eu não percebia o motivo. Foi um sucesso tardio, mas foi.

[recorde aqui o “Fura-Vidas”:]

https://www.youtube.com/watch?v=6rXnfJuvCwE

Já que estamos a falar de reality shows, quero perguntar-lhe como é que foi fazer “O Último a Sair”?
Grande loucura. Já nem sabia quem é que eu era.

O apelido era o mesmo, Teresa Guilherme, Miguel Guilherme.
Epá e eu nem estava muito com eles, chegava lá, gravava quatro programas e ia-me embora. E foi onde comecei a utilizar bem o teleponto, não decorava aquela treta, não é? Gostei muito daquela ambivalência toda, depois havia pessoas que eram contra, odiavam, depois outros achavam que aquilo era verdade, depois outros achavam que aquilo era uma mentira mentirosa demais, agitou umas águas porreiras. É um projeto do Bruno Nogueira, que criou o “Sara”. Há pessoas com quem gosto muito de trabalhar e sempre que posso aceito, é outra coisa, todos temos as nossas tribos, não fujo à regra.

[Miguel “Teresa” Guilherme no “Último a Sair”:]

O Miguel sempre esteve associado a um lado de comédia. O que é que o fascina no humor?
Não sei se fui eu que escolhi fazer comédia, se foi a comédia que me escolheu. Fazer rir não é fácil, não se consegue fazer rir involuntariamente, só se fizermos má figura. Acredito que existe na pessoa alguma aptidão e depois vai-se aprendendo.

Ainda que o Miguel, pelo que tenho percebido nesta entrevista, não seja propriamente uma pessoa expansiva.
Sim, mas isto não tem nada que ver com a vida pessoal. Há pessoas que são cómicas por natureza e que são pessoas até muito tristes na vida. Não é bem o meu caso, mas podem ser pessoas altamente deprimidas, a felicidade não é para aqui chamada, é uma coisa à parte.

É trabalho.
É trabalho e depois esse trabalho dá felicidade ou não. A comédia não está ligada à felicidade e ainda bem. A felicidade é um sentimento um bocado estranho.

"Quero começar também a estruturar a minha vida pessoal um bocadinho melhor"

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

Duvidoso?
Muito duvidoso. Quem está aqui só para ser feliz anda enganado, acho que o ideal é estar aqui para fazer qualquer coisa e de preferência que ajude os outros, isso é que era o ideal, não é o meu caso, infelizmente.

Não é o seu caso porquê?
O trabalho sempre me deu muito gozo e eu sempre fui egoísta, nunca foi por razões sociopolíticas ou humanitárias, é nesse sentido que sou egoísta. Mas o ideal é estar aqui por um motivo, para fazer qualquer coisa, a idade da felicidade em abstrato, que é muito vendida pela publicidade, é uma coisa que não existe. O meu trabalho deu-me muitas felicidades. É como se fosse o meu combustível. Basicamente, sou ator, não sou mais nada. O que não abona em meu favor e por aqui fico.

Não quer aprofundar isso?
Não quero não. Há mais coisas para fazer, estou a descobrir isso agora, o que apesar de tudo é porreiro, ainda estou a descobrir coisas. Há mais vida, há coisas.

Como por exemplo?
Sei lá, tanta coisa, agora não me ocorre nada, mas há.

Encenar?
Epá… eu encenei, nos anos 90, na Cornucópia, depois no Clube Estefânia, a meias com o José Pedro Gomes. Cheguei à conclusão que toda a gente pode encenar, mas pouca gente se exprime artisticamente através da encenação. Qualquer pessoa pode chegar aqui e dizer “vou encenar”, o teatro tem essa coisa bonita de se poder dizer isso, mas eu sou ator, é assim que me exprimo. Pode ser que, eventualmente, chegue um projeto que me entusiasme, não sei.

Esperemos então.
Esperemos, sim. Quero começar também a estruturar a minha vida pessoal um bocadinho melhor, começar a olhar para o céu, para a praia, para as pessoas, está na altura de começar a viver também fora do palco, fora do cinema, do teatro e da televisão. Não é um mau projeto, pois não?

Nada mau, nada mau.
Pois. Também me parece.

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