O relatório da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) confirma que pelo menos três entidades (Ministério da Saúde — através da intervenção do então secretário de Estado António Lacerda Sales —, Hospital de Santa Maria e Infarmed) agiram de forma irregular no caso das gémeas luso-brasileiras, facilitando o acesso das crianças à terapêutica, ao arrepio das regras de referenciação do SNS.

O relatório do processo de inspeção levado a cabo pelas IGAS, a que o Observador teve acesso, concluiu “que não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças à consulta de neuropediatria no CHULN, E.P.E. [Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, que abarcava o Hospital de Santa Maria] porquanto a marcação da consulta não cumpriu o disposto na Portaria n.o 147/2017, de 27 de abril, que regula o sistema integrado de gestão de acesso dos utentes ao SNS”. Recorde-se que a portaria em questão estabelece que a referenciação para uma consulta de especialidade hospitalar só pode ser feita por uma unidade de saúde ou por uma estrutura do SNS.

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O Ministério da Saúde foi uma das entidades visadas no relatório da IGAS. Foi António Lacerda Sales (então secretário de Estado da Saúde) que pediu à então secretária pessoal, Carla Silva, que recolhesse os dados das crianças, junto do filho do Presidente da República, facultando-lhe o número de telefone de Nuno Rebelo de Sousa para esse efeito.

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Na sequência desse contacto, a funcionária remeteu os dados das duas crianças (nomes, data de nascimento, diagnóstico clínico e informação das datas de permanência dos pais em Portugal no mês de dezembro) ao Hospital de Santa Maria, assinala o relatório. No dia 20 de novembro, Carla Silva enviou então um email à Diretora do Departamento de Pediatria “a solicitar ajuda para o agendamento de uma consulta e avaliação por neuropediatra”.

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A IGAS sublinha que, apesar de Lacerda Sales “negar o seu envolvimento na obtenção de informação sobre as gémeas junto do Dr. Nuno Rebelo de Sousa e posterior encaminhamento para o CHULN” com vista a marcar a consulta para as gémeas luso-brasileiras, “não se descortina como a sua secretária pessoal, atento o seu grau de autonomia, poderia ter tido conhecimento do caso das duas crianças gémeas e da sua informação pessoal, e comunicado com o CHULN, E.P.E., que não fosse através do modo e contactos referidos”.

Ouvida pelos inspetores da IGAS, é a própria Carla Silva que confirma que foi Lacerda Sales a pedir-lhe para contactar Nuno Rebelo de Sousa (“que pretendia que fosse marcada uma consulta para duas crianças no Hospital de St.ª Maria”) e que foi também o ex-secretário de Estado a solicitar-lhe que contactasse “telefonicamente com a Diretora do Departamento de Pediatria”, contacto que se realizou por email a 20 de novembro de 2019.

Ou seja, a IGAS considera que Carla Silva não tinha autonomia suficiente para contactar o Hospital de Santa Maria e marcar a consulta para as gémeas, sem que tal fosse solicitado por António Lacerda Sales. Isso mesmo foi confirmado aos inspetores da IGAS pela própria secretaria de Estado da Saúde. Tanto Lacerda Sales como o seu chefe de gabinete detalharam que Carla Silva só teria essa autonomia se a mesma lhe tivesse sido concedida, o que não aconteceu.

Recorde-se que o ex-secretário de Estado sempre negou que tivesse efetuado quaisquer diligência no sentido de marcar a consulta para as crianças luso-brasileiras.

A IGAS vem assim confirmar, neste ponto, a conclusão da auditoria interna levado a cabo pelo Santa Maria e que revelou que a referenciação das gémeas tinha sido feita por intervenção do então secretário de Estado da Saúde.

No entanto, à IGAS, Lacerda Sales critica a conclusão do relatório, alegando que o documento “enferma de várias contradições, que colocam em causa as mais variadas conclusões e é fundamentado com base em meros indícios e suposições” e diz que “inexistem dúvidas de que quem ordenou a marcação da “primeira consulta” foi o Diretor Clínico. Já esta quinta-feira, à Lusa, o ex-secretário de Estado critica a IGAS por, diz, ter dado menos valor à sua palavra do que à da sua secretária pessoal, que contactou o Hospital de Santa Maria para agendar a consulta das gémeas. “Qual o motivo para a inspeção-geral dar mais credibilidade ao depoimento da secretária pessoal que ao do secretário de Estado da Saúde”, questiona António Lacerda Sales, reafirmando nunca solicitou a marcação de qualquer consulta.

O ex-governante lembra que a sua secretária pessoal tinha exercido funções no Hospital de Santa Maria e, por isso, poderia já ter conhecimento do caso das gémeas, cujos pedidos de ajuda tinham começado em setembro de 2019. Sales sublinha o facto de não constar ’em CC’ (com conhecimento) no email e questiona: “Porque é que não existe qualquer indicação no mail de que o mesmo foi enviado a pedido do SES? Não seria prudente, considerando que a então secretária estava ali, no exercício das duas funções, há pouco mais de 15 dias?” e realça a forma como a secretária pessoal se dirige à diretora do departamento de pediatria (“Cara Profª Isabel Lopes” e “Mais uma vez muito agradeço a sua preciosa ajuda”) questionando: “Qual o grau de intimidade entre as intervenientes? Já se conheciam anteriormente?”.

Quanto a este argumento, a IGAS admite que “a existência de uma proximidade pessoal da então secretária pessoal com o Departamento de Pediatria” mas sublinha que isso “não significa necessariamente que o pedido tenha revestido natureza pessoal”.

Em declarações à Rádio Observador, esta quinta-feira, o antigo secretário de Estado da Saúde garante que continua com “a consciência tranquila” relativamente à sua atuação neste caso. Sublinhando que na “atividade política” nunca comentou “um relatório das atividades inspetivas ou judiciárias, muito menos o faria agora fora da atividade política”, acrescenta que “este é o tempo da justiça” e mantém a posição de que não fez nada de errado.

Hospital de Santa Maria: a autorização para a consulta

O relatório da IGAS conclui que foi o diretor clínico à época do Hospital de Santa Maria, Luís Pinheiro, que deu instruções ao Departamento de Pediatria do hospital para agendar a consulta para as gémeas luso-brasileiras, e que acabaria por ser realizada no dia 5 de dezembro de 2019.

“A Diretora do Departamento de Pediatria informou a Dra. Teresa Moreno da indicação do Diretor Clínico para a marcação das consultas de patologia neuromuscular para duas gémeas, até ao final do ano de 2019, tendo esta última alertado que o objetivo da família era especificamente a obtenção do tratamento com Zolgensma. Não obstante, o Diretor Clínico manteve as instruções de marcação das primeiras consultas da especialidade para as gémeas”, escrevem os inspetores da IGAS.

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A IGAS realça que “Luís Pinheiro autorizou o agendamento das consultas, o que merece reparo, atentas as funções que então exercia”. Ouvido pelos inpetores da IGAS, Luís Pinheiro defende-se, sublinhando que, no email enviado pela Diretora do Departamento de Pediatria, “não é feita qualquer menção específica a nenhum caso, ou detalhado o teor de quaisquer contactos recebidos pela Dra. Teresa Moreno [médica neuropediatra que acompanha os casos de Atrofia Muscular Espinhal no Santa Maria]”. Luís Pinheiro garante que não lhe foi enviada “qualquer informação relativa à existência das duas crianças (“gémeas brasileiras”) em apreço, à sua situação clínica ou às solicitações/diligências levadas a cabo directamente junto do Departamento de Pediatria e/ou dos seus Médicos, seja por quem for”.

O Hospital de Santa Maria já reagiu, entretanto, às conclusões do relatório da IGAS. Num despacho interno a que o Observador teve acesso, o Presidente do Conselho de Administração, Carlos Martins, deu instruções para que os dirigentes máximos do hospital “garantam o cumprimento dos requisitos de referenciação” a uma primeira consulta de especialidade.

No despacho está anexada a portaria que estabelece os critérios de referenciação a aplicar e que define que esta só pode ser efetuado pelos ACES (os agrupamentos de centros de saúde), por outro serviço do mesmo hospital ou por outro hospital, pelo Centro de Contacto do SNS, pela Rede Nacional de Cuidados Continuados, ou por entidades externas ao SNS, como instituições de saúde privadas.

Infarmed: pedidos não seguiram (num primeiro momento) pela via oficial

Uma das novidades do relatório da IGAS é a inclusão do Infarmed na lista de entidades que intervieram no caso das gémeas de forma irregular. Isto porque os pedidos do Santa Maria para a administração do medicamento Zolgensma às crianças foram feitos, numa primeira fase, através de email, pelo próprio diretor clínico, Luís Pinheiro, e o Infarmed iniciou a avaliação dos mesmos de imediato, sem esperar que fossem inseridos na plataforma onde são remetidos este tipo de pedidos — o SIATS (Sistema de Informação para Avaliação de Tecnologias de Saúde). Desta forma, concluem os inspetores, os pedidos “não seguiram o circuito de aprovação e validação dos pedidos de AUE [Autorização de Utilização Excecional]”.

“Os pedidos de AUE 202000516, 202000527 e 202000528 não seguiram o circuito de aprovação e validação dos pedidos de AUE, nos termos do previsto no n.o 1 do artigo 11.o do Regulamento, que se encontra transposto para o SIATS (Sistema de Informação para Avaliação de Tecnologias de Saúde), uma vez que foram remetidos por email ao INFARMED, I.P., em 29 de fevereiro de 2020, e avaliados pela perita em momento anterior à sua submissão no SIATS, que apenas ocorreu em 2 de março de 2020. Não obstante, as referidas autorizações apenas foram concedidas após a submissão dos pedidos na plataforma”, pode ler-se no documento.

Os inspetores apuraram que o diretor clínico do Santa Maria enviou um email ao Presidente do Infarmed, Rui Ivo, “solicitando a sua colaboração no sentido da emissão de declaração autorizando a utilização do medicamento Zolgensma” para três doentes — as gémeas luso-brasileiras e uma outra criança.

Nas trocas de emails ocorridas em 29 de fevereiro de 2020 entre Luís Pinheiro e Rui Ivo “foram remetidos vários documentos que correspondiam aos formulários de registo no MAP global AVXS-101 dos três utentes, da médica assistente e do CHULN, E.P.E., e três documentos, assinados pelo Diretor Clínico do CHULN, contendo breve resumo do historial clínico do doente com indicação das terapêuticas prévias realizadas, descrição da estratégia terapêutica e justificação da imprescindibilidade do medicamento e ausência de alternativas terapêuticas”, detalha a IGAS.

Aos inspetores da IGAS, o Infarmed refuta todas as alegações, garantindo que a sua “atuação e respetiva decisão relativa a estes pedidos de AUE cumpriu o disposto no Regulamento de Autorização de Utilização Excecional” e que o pedido do fármaco para as gémeas “foi sujeito a avaliação e decidido pelo Conselho Diretivo do INFARMED após inserção, formalização e validação de todos os elementos na plataforma informática criada para apoio à tramitação dos processos de AUE, o SIATS”.

O Infarmed esclarece — confrontado com a existência de pedidos por email antes da inserção na plataforma informática própria — que “o que se verificou, à semelhança de outros, atendendo à urgência manifestada pelo hospital requerente, foi uma comunicação e articulação prévia a inserção de dados na plataforma, entre o Hospital e o INFARMED“.

“No caso concreto, a submissão dos três pedidos de AUE, via SIATS, foi antecedida de email a 29-02-2020, do hospital requerente indicando urgência para potencial elegibilidade para um programa internacional de acesso ao medicamento da responsabilidade da empresa titular do medicamento”, disse, às IGAS, a entidade liderada por Rui Ivo.

Ao final da tarde, num comunicado enviado às redações, o Infarmed sublinha que o facto de os pedidos de AUE para as gémeas não se terem iniciado na plataforma SIATS “não é, nem pode ser considerada uma irregularidade” e adianta que os dois pedidos, “à semelhança de tantos outros considerados urgentes, não foram ab initio submetidos via plataforma informática”. Ou seja, a Autoridade Nacional do Medicamento admite que o procedimento — apontado pela IGAS como uma irregularidade — é, afinal, uma prática corrente nos pedidos de AUE.

Cronologia dos factos

O relatório da IGAS faz a reconstituição dos factos desde setembro de 2019, quando as gémeas foram diagnosticadas com Atrofia Muscular Espinhal, no Brasil.

  • Os inspetores que assinam o documento confirmam que o filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, remete email ao pai, solicitando a sua intervenção deste no caso das gémeas a 21 de outubro de 2019.
  • Depois de diligências levadas a cabo pela Presidência da República, o caso acabaria por ser remetida, a 31 de outubro, para o Chefe do Gabinete do Primeiro-Ministro, que, por sua vez, o encaminhou para a Chefe do Gabinete da Ministra da Saúde, a 6 de novembro.
  • Logo no dia seguinte, a 7 de novembro, António Lacerda Sales reunia-se com o Nuno Rebelo de Sousa. Nessa reunião, o filho do Presidente da República pediu que Sales interviesse no tratamento das gémeas com o medicamento Zolgensma.
  • No dia 14 de novembro, as mãe das gémeas enviou um email à médica neuropediatra que acompanha os doentes com Atrofia Muscular Espinhal no Santa Maria (Teresa Moreno), expondo o caso das filhas.
  • No mesmo dia, Teresa Moreno reencaminhou o email para a Diretora do Departamento de Pediatria, pedindo orientação.
  • No dia seguinte, a 15 de novembro, Ana Isabel Lopes informou o à época Diretor Clínico, Luís Pinheiro, dos contactos recebidos por Teresa Moreno, “solicitando a análise do assunto ao nível do Conselho de Administração”.
  • Paralelamente, e numa data que a IGAS não conseguiu apurar (mas que terá sido entre 7 e 2o de novembro), Lacerda Sales forneceu o contacto telefónico de Nuno Rebelo de Sousa à sua secretária pessoal com indicação de que contatasse telefonicamente o Secretário de Estado.
  • No dia 20, a secretária de Sales, Carla Silva, enviou um email à Diretora do Departamento de Pediatria com informação das gémeas (recolhida junto de Nuno Rebelo de Sousa), e que Ana Isabel Lopes reencaminhou para o diretor clínico do hospital.
  • Entre o dia 22 e o dia 28 de novembro, a médica Teresa Moreno recebeu indicação, da Diretora do Departamento, para proceder à marcação de consulta após concordância do Diretor Clínico.
  • A 29 de novembro, é entregue a Luís Pinheiro uma carta subscrita pelos neuropediatras do hospital acerca do acesso a medicamentos inovadores.
  • No dia 5 de dezembro, realiza-se a primeira consulta, apenas com a presença do pai e do tio das gémeas, uma vez que as crianças se encontravam internadas no Brasil.
  • A 2 de janeiro é feita a segunda consulta, já com a presença das crianças.
  • No dia 24 de janeiro de 2020, a neuropediatra Teresa Moreno considerou que as crianças reuniam critérios clínicos para a administração de Zolgensma e no dia 29 foi efetuado à Comissão de Farmácia e Terapêutica do Santa Maria.
  • No dia 29 de fevereiro, é o próprio diretor clínico a remeter ao Infarmed “documentação relativa a três crianças (nas quais de incluíam as gémeas) no sentido de agilizar o processo de obtenção” do medicamento, sendo que, por essa altura, os pedidos ainda não tinham sido submetidos na plataforma SIATS (Sistema de Informação para Avaliação de Tecnologias de Saúde).
  • A 2 de março, os dois pedidos para as gémeas foram inseridos na plataforma e logo no dia seguinte o Infarmed deu luz verde.
  • O fármaco acabaria por ser administrado às crianças a 23 e 25 de junho.