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O ex-primeiro-ministro José Sócrates (à esquerda) negociou com Joe Berardo (ao centro) um acordo para a instalação da coleção de arte moderna no CCB que mereceu a censura do Presidente Cavaco Silva (à direita)
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O ex-primeiro-ministro José Sócrates (à esquerda) negociou com Joe Berardo (ao centro) um acordo para a instalação da coleção de arte moderna no CCB que mereceu a censura do Presidente Cavaco Silva (à direita)

O ex-primeiro-ministro José Sócrates (à esquerda) negociou com Joe Berardo (ao centro) um acordo para a instalação da coleção de arte moderna no CCB que mereceu a censura do Presidente Cavaco Silva (à direita)

Ministério Público acompanha dúvidas de Cavaco para investigar acordo entre Sócrates e Berardo

Reunião entre Sócrates e Berardo em São Bento para negociar acordo sobre Coleção Berardo está sob suspeita. Presidente Cavaco tentou mudar acordo mas Sócrates ignorou críticas de Belém.

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O alegado favorecimento do Governo de José Sócrates a Joe Berardo para o empresário instalar em junho de 2007 a sua coleção de arte moderna no Centro Cultural de Belém está sob investigação no inquérito da Caixa Geral de Depósitos (CGD), tal como o Observador avançou em julho de 2019. O Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária (PJ) suspeitam que os termos do acordo assinado na presença de Sócrates a 3 de março de 2006 beneficiam o empresário madeirense e prejudicam o Estado.

O acordo negociado por José Sócrates e pela ministra Isabel Pires de Lima (titular da pasta da Cultura) é também visto pelo MP e pela PJ como um obstáculo à execução da garantia de pagamento que Berardo deu à Caixa, BCP e BES a troco do empréstimo de mais de mil milhões de euros: precisamente a coleção de arte moderna, o espólio mais valioso da Coleção Berardo, que valerá mais de 500 milhões de euros.

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Os procuradores Inês Bonina, coordenadora da secção de crime bancário no DCIAP, e Pedro Roque acompanham, como sendo importantes indícios das alegadas irregularidades, as dúvidas que o Presidente Cavaco Silva teve antes de promulgar uma parte relevante do acordo negociado entre o Governo Sócrates e Joe Berardo, e que foram reveladas em exclusivo numa investigação do Observador publicada aqui.

Reuniões entre Sócrates e Berardo em São Bento

A Associação Coleção Berardo, que detém as obras de arte que foram sendo adquiridas por Joe Berardo desde os anos 80, foi constituída em setembro de 1996 com o objetivo de promover, divulgar e expandir a coleção construída pelo empresário madeirense.

Na fase final do Governo Guterres, mais concretamente em abril de 2001, José Sasportes, então ministro da Cultura, começou a negociar com o empresário madeirense a instalação da valiosa coleção de arte moderna (uma parte da Coleção Berardo que costuma ser apelidada de Volume 1) no Centro Cultural de Belém (CCB).

De acordo com os indícios recolhidos pelo MP e pela PJ, houve diversas reuniões entre fevereiro e dezembro de 2005 entre José Sócrates e Joe Berardo na residência oficial do primeiro-ministro. Nessas reuniões participou igualmente a ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima.

Sem evoluções durante o Governo de Durão Barroso, o dossiê foi retomado pelo Governo José Sócrates, com as negociações a terem a intervenção do próprio primeiro-ministro. De acordo com os indícios recolhidos pelo MP e pela PJ, houve diversas reuniões entre fevereiro e dezembro de 2005 na residência oficial de São Bento, tendo estado presentes Sócrates, a sua ministra da Cultura (Isabel Pires de Lima) e Joe Berardo.

Obviamente que as reuniões técnicas ocorreram entre equipas indicadas pelo Ministério da Cultura e por Berardo, mas o facto de Sócrates ter feito questão de receber Berardo, de ter estado presente no momento da assinatura do acordo e de ter inaugurado o Museu Berardo no CCB — tudo isto tem um caráter simbólico forte do envolvimento do então primeiro-ministro no acordo.

A relação com os créditos na Caixa e a cerca de proteção à Coleção contra os bancos

O envolvimento de Sócrates nas negociações com Berardo está a merecer a atenção do MP e da PJ. Por um lado, o acordo para a coleção de arte moderna é uma peça fulcral no autêntico puzzle jurídico construído pelo advogado André Luiz Gomes em defesa de Berardo — e que o MP considera que corresponde a um alegado esquema de burla agravada. Na prática, o acordo de comodato assinado pelo Governo Sócrates acaba por proteger a Coleção Berardo de ser penhorada pelos bancos porque a coleção está emprestada ao Estado. Mesmo com a penhora dos títulos que compõem o capital da Associação Coleção Berardo, a dona formal dos quadros, a existência do acordo de comodato é um claro obstáculo à venda dos mesmos.

Por outro lado, há ainda uma coincidência de timing entre a assinatura do protocolo entre o Estado e a Associação Coleção Berardo, a aprovação por parte do Governo Sócrates do decreto-lei que aprova os estatutos da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — a instituição que gere a Coleção Berardo no CCB mas que não é a dona dos quadros — e a aprovação dos créditos da Caixa a Joe Berardo para comprar ações do Banco Comercial Português (BCP) e de outras empresas do PSI-20, como a Portugal Telecom (PT). Na prática, o empresário madeirense meteu-se em duas guerras muito caras a José Sócrates: o controlo do BCP e da PT.

Sócrates recusou alterar acordo que favorece Berardo na instalação da sua coleção no CCB

Basta cruzar as datas para chegarmos a essas conclusões:

3 de abril de 2006 — Assinatura do protocolo entre o Estado e a Associação Coleção Berardo. Pode ver as imagens da cerimónia aqui num vídeo da RTP.

27 de abril de 2006 — A CGD liderada por Carlos Santos Ferreira aprovou o primeiro empréstimo de 50 milhões de euros à Metalgest, holding de Joe Berardo. A maioria do capital serviu para comprar ações do BCP mas também terá financiado a aquisição de ações da Portugal Telecom — onde Berardo entrou para se posicionar ao lado do BES de Ricardo Salgado contra a OPA da Sonae.

28 de maio de 2007 — A Caixa aprova um financiamento da Fundação José Berardo no montante de 350 milhões de euros para comprar ações do BCP, tendo como única garantia as próprias ações que iriam ser adquiridas. De acordo com a revista Sábado,  o crédito demorou 57 minutos a ser aprovado

25 de junho de 2007 — O Museu Berardo é inagurado com pompa e circunstância com a presença do primeiro-ministro José Sócrates. O Presidente Cavaco Silva foi convidado mas recusou estar presente.

Há ainda um novo empréstimo, de 38 milhões de euros, a 29 de abril de 2008, mas já fora dos timings de decisão do Museu Berardo.

As razões para a censura de Cavaco Silva

Por que razão o Presidente Cavaco Silva não esteve presente na inauguração do Museu Berardo, que concentrou toda a atenção da comunicação social no dia 25 de junho de 2007? A explicação é longa mas a versão resumida é esta: porque entendia que o acordo que José Sócrates tinha negociado com o empresário madeirense era altamente lesivo dos interesses do Estado — análise que o Observador sabe que o MP também faz. E a sua ausência no dia da inauguração servia para dizer que nada tinha a ver com aquilo.

Cavaco Silva tinha recebido seis pareceres/memorandos da assessoria jurídica da sua Casa Civil que fundamentavam tecnicamente os seus piores receios. O Observador teve acesso a esses pareceres em julho de 2019 e constatou que nos mesmos se pode ler críticas violentas, como por exemplo estas:

  • O acordo leva “longe de mais o reconhecimento dos interesses do colecionador José Berardo, com prejuízo dos interesses do Estado” através de cláusulas “altamente obscuras”, “singulares” e “controversas”.
  • O acordo é um “entreposto de imunidade em relação à classificação das obras”, da “posição de controlo ou goldenshare eterna” dos herdeiros Berardo ou do facto de nada poder ser alterado nos acordos assinados sem “autorização pessoal” do empresário madeirense.
Cavaco Silva censurou o acordo negociado por José Sócrates. Em seis pareceres da assessoria jurídica da sua Casa Civil, a que o Observador teve acesso, pode o ler-se que o acordo leva “longe de mais o reconhecimento dos interesses" de José Berardo, "com prejuízo dos interesses do Estado” através de cláusulas “altamente obscuras”, “singulares” e “controversas”.

Cavaco Silva analisou o decreto-lei que cria a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea (criada entre o Estado e Berardo para gerir a instalação da Coleção Berardo no CCB) e aplicou o protocolo que tinha sido assinado em abril de 2006, sob o olhar atento de José Sócrates, entre o Ministério da Cultura (representado por Isabel Pires de Lima), o Centro Cultural de Belém (cujo líder era António Mega Ferreira) e Berardo. E analisou ainda um segundo decreto-lei que reconhece a utilidade pública da mesma fundação.

Os pormenores do acordo alegadamente lesivo para o Estado

Os diplomas foram promulgados por Cavaco Silva, mas com muitas dúvidas e críticas que fez questão que fossem públicas através de um comunicado da Presidência da República datado de 28 de julho de 2006 — um mês depois da inauguração do Museu Berardo no CCB.

E que censuras eram essas? Várias. Eis um resumo das principais críticas que constam dos pareceres da assessoria jurídica do Presidente Cavaco Silva, sendo que pode encontrar aqui uma explicação mais pormenorizada.

O decreto-lei que cria a Fundação de Arte Moderna e Contemporânea é profundamente desequilibrado a favor de Joe Berardo, que tem desmesurados poderes. Um exemplo: a famosa cláusula de compra do Estado. No dia da inauguração, Berardo tinha-se vergado de forma humilde aos dotes de negociador de José Sócrates e da ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, dando-lhe “os parabéns pela pressão e exigência que fizeram de eu ter esta opção [de compra] ao valor de hoje”. A realidade do acordo, contudo, era outra.

Na prática, e tal como constatava o assessor jurídico da Presidência da República, tal cláusula de compra era mais uma cláusula de venda, tais são os poderes de Berardo para recusar o valor proposto pelo Estado. “Prevê-se uma avaliação internacional” do valor da coleção Berardo mas esta “de nada servirá do ponto de vista arbitral para a fixação do preço de venda, pois a Associação [Coleção Berardo, a dona dos quadros] pode pura e simplesmente recusar-se a aceitar tal preço resultante da avaliação”, lê-se no parecer.

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Pior: o Estado estava proibido de classificar as obras da Coleção Berardo e não era claro que pudesse impedir que as mesmas saíssem para o estrangeiro, segundo o entendimento da assessoria jurídica da Presidência.

Mais: o Estado comprometeu-se  a “não classificar (….) a Colecção Berardo, e/ou qualquer das peças que a integre” e não é claro se pode impedir a saída das obras de arte para o estrangeiro. Estas cláusulas não foram mudadas em 2016 quando o Estado e Joe Berardo prorrogaram o acordo até 2022.

Os custos eram para o Estado e as receitas para Berardo. Exemplo: os custos de funcionamento do Museu Berardo no CCB são suportados pela Fundação do CCB — a Fundação criada pelo Estado para gerir o CCB e não pela Fundação de Arte Moderna e Contemporânea —, não sendo contabilizado a favor do Estado o valor da visibilidade e exposição pública no CCB.

Acresce que as despesas de seguros serão “suportadas pela Fundação de Arte Moderna e Contemporânea”, enquanto que as receitas da bilheteira constituem receitas da Fundação Berardo, “não havendo a mínima previsão de qualquer encontro de contas” entre receitas e despesas.

Resultado: de acordo com os relatórios e contas da Fundação do CCB de 2015 a 2018 (os últimos disponibilizados no site da instituição), os custos de funcionamento têm estabilizado ligeiramente acima de 1 milhão de euros anuais. Isto é, o Estado já terá pago mais de 10 milhões de euros pelos custos do Museu Berardo. Mais: essa despesa anual vale quase 50% dos custos anuais de manutenção totais do CCB.

A “golden share eterna de Berardo”

Uma das piores críticas da assessoria jurídica da Presidência da República — e que o Observador sabe que é acompanhada pelos procuradores do MP e investigadores da PJ que acompanham o inquérito da Caixa Geral de Depósitos — prende-se com a possibilidade do Estado comprar a Coleção Berardo e os poderes que Joe Berardo manteria nesse novo contexto.

E a resposta é simples: o Estado arriscava-se a desembolsar uma verba entre os 316 milhões e os 500 milhões de euros — valor das diversas avaliações feitas entre 2006 e 2009 à Coleção de Arte Moderna (o já referido Volume 1 da Coleção Berardo — e o reinado de madeirense e da sua família manter-se-ia.

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Exemplos dos poderes de Berardo no cenário em que o Estado comprava a coleção:

  • Manutenção da presidência honorária da Fundação até à sua morte;
  • Propor a nomeação e a destituição do diretor do Museu Berardo;
  • Representar protocolarmente a Fundação;
  • O Estado não pode extinguir o Museu e o nome “Berardo” é considerado definitivo e irreversível,
  • Em caso de morte de Joe Berardo, também os seus descendentes manterão poderes importantes, mesmo após a coleção passar para o Estado: manutenção dos direitos de voto no Conselho de Administração, composição paritária e, para certas matérias, uma maioria de quatro quintos.

Para os assessores de Cavaco Silva, os herdeiros de Berardo “continuarão a ter uma posição de controlo ou golden share eterna, mesmo após a coleção passar para a propriedade plena do Estado”.

E são precisamente todas estas cláusulas que estão agora sob investigação do MP e da PJ no inquérito da Caixa.

Alertas ignorados por José Sócrates e de Silva Pereira

“Nunca conheci esses pareceres de que fala”, garantiu José Sócrates em julho de 2019 ao Observador. Mas Nunes Liberato, chefe da Casa Civil do Presidente Cavaco Silva, assegurava então: “Os pareceres da Casa Civil foram comunicados ao gabinete do primeiro-ministro, como era normal. Por isso mesmo, o Governo sentiu necessidade de alterar o diploma”. Nunes Liberato acrescenta que teve igualmente “contactos intensos” com Pedro Silva Pereira, então ministro da Presidência do Conselho de Ministros e braço-direito de Sócrates, para que os diplomas fossem alterados

“Nunca conheci esses pareceres de que fala”, garantiu José Sócrates em julho de 2019 ao Observador. Mas Nunes Liberato, chefe da Casa Civil do Presidente Cavaco Silva, assegurava então: “Os pareceres da Casa Civil foram comunicados ao gabinete do primeiro-ministro, como era normal".

As mudanças, contudo, foram de pormenor. Sócrates desvalorizou os alertas centrais da Presidência da República — que, aliás, tinham levado a Casa Civil a aconselhar Cavaco Silva a vetar o diploma. Conselho que o Presidente não seguiu, preferindo promulgar o diploma a 28 de julho de 2007 com um comunicado muito crítico em que esclareceu que não aderia “às opções políticas” tomadas por Sócrates. O comunicado deu muito que falar então — e incomodou em particular Joe Berardo.  “Vou começar um projeto com uma nuvem negra em cima de mim”, disse à RTP.

Nunes Liberato, chefe da Casa Civil de Cavaco, teve “intensos contactos” durante o processo de promulgação, segundo afirmou ao Observador, com Pedro Silva Pereira, ministro da Presidência do Conselho de Ministros. E chegou mesmo a entregar a Silva Pereira toda a informação contida nos pareceres durante um almoço que ocorreu no Palácio de Belém, segundo apurou o Observador. Contudo, praticamente todos os alertas foram ignorados.

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