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15h35 de terça-feira, hora local em Przewodów, vila no leste da Polónia. Um “objeto estranho” a cair do céu e o som de uma explosão. Dois homens — um capataz e um fazendeiro que estavam a pesar milho numa quinta — mortos. E um incidente sensível o suficiente para colocar toda a Aliança Atlântica em alerta.
Míssil atingiu quinta com cereais. Viu-se “um objeto estranho a cair rapidamente”
Seria preciso passarem mais quatro horas para a maior parte do mundo se aperceber de que aquilo que caiu naquela vila foi um míssil (ou destroços de um) e que, possivelmente, seria de origem russa. O primeiro alerta foi dado pela Associated Press, citando uma fonte dos serviços de informações norte-americanos que garantia que se trataria de um míssil russo, acompanhado quase em simultâneo de um anúncio de que o Conselho de Ministros polaco estava reunido de urgência.
Seguiram-se horas de especulação, com os responsáveis políticos a manterem-se, porém, cautelosos. O Pentágono e os aliados europeus pediram que se esperasse pelos resultados da investigação, com os países Bálticos a adiantarem-se nas reações e a serem lentamente seguidos por figuras como a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, ou a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.
A Rússia apressou-se a negar qualquer responsabilidade: “As declarações dos media e responsáveis polacos sobre a alegada queda de mísseis ‘russos’ na área de Przedwowow são uma provocação deliberada com o objetivo de conseguir uma escalada”, disse o ministério de Defesa russo. “Não foram feitos ataques contra alvos na fronteira entre a Ucrânia e a Polónia por meios de destruição russos”, garantiu Moscovo.
Mas, por volta da meia-noite (23h00 em Lisboa), Varsóvia reagia oficialmente. O primeiro-ministro polaco, Mateusz Morawiecki, confirmou que a explosão foi provocada pela “queda de um míssil de fabrico russo” e convocou o embaixador do país ao ministério dos Negócios Estrangeiros polaco. Mais: a Polónia aumentou o seu nível de alerta, reforçou a monitorização do seu espaço aéreo e disse estar a pensar acionar o artigo quarto da NATO. “Fiquemos calmos, sejamos prudentes, o caos é uma arma russa”, apelou, porém, Morawiecki.
De onde foi disparado o míssil? As três hipóteses e as acusações de “teorias da conspiração”
Apesar de todas as declarações, ainda há muito por esclarecer. “Ainda não é claro quem disparou o míssil”, lembrou à BBC J Andrés Gannon, especialista de segurança do Council for Foreign Relations. Os especialistas em armamento passaram as últimas horas a analisar fotografias dos destroços e começaram a afirmar que podiam pertencer a um míssil disparado por um sistema S-300.
Mas isso não ajuda a esclarecer se o míssil foi ou não disparado por Moscovo: “Sabemos que a Rússia usa o S-300 para ataques terrestres, apesar de ser um sistema aéreo, mas a Ucrânia também os usa como sistema de defesa aérea contra mísseis de cruzeiro”, esclarece Gannon.
Neste momento há, por isso, três hipóteses:
- A de que os destroços pertencem a um míssil disparado intencionalmente pela Rússia com o objetivo deliberado de atingir território polaco;
- A de que pertencem a um míssil disparado pela Rússia que tinha como objetivo atingir território ucraniano — possivelmente a cidade de Lviv, a cerca de 70 quilómetros de Przewodów —, mas que falhou o alvo;
- A de que os destroços pertencem a um míssil do sistema de defesa ucraniano que teria sido usado para atingir um míssil russo e que caíram em território polaco.
Apesar de a Polónia ter dito claramente que os destroços pertencem a um míssil de “fabrico russo”, tal não exclui por completo a última hipótese. Como lembrou no Twitter o jornalista do site bellingcat Aric Toler, todos os S-300 (incluindo os usados pela Ucrânia) são de fabrico russo e soviético. O jornalista que avançou a notícia da queda de um míssil em território polaco, Mariusz Gierszewski (da Radio ZET), também citou fontes que afirmam que os destroços “eram provavelmente os restos de um rocket abatido pelas Forças Armadas da Ucrânia”.
The fact that they also summoned the Russian ambassador is pretty clear with what they're saying, but worth noting that I'm fairly certain that all S-300 missiles were manufactured by Russia & the Soviet Union, regardless of the country using them…
— Aric Toler (@AricToler) November 15, 2022
Kiev, contudo, rejeita terminantemente esta possibilidade. Não passa de “uma teoria da conspiração”, acusou o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba. “O terror não se limita às nossas fronteiras nacionais. Mísseis russos atingiram a Polónia”, decretou o Presidente, Volodymyr Zelensky.
Já esta manhã de quarta-feira, a Associated Press noticiou, citando responsáveis dos EUA, que uma primeira leitura do incidente é que a explosão na Polónia terá sido causada pela defesa anti-aérea ucraniana – sem ficar totalmente claro se os projéteis eram ucranianos ou restos de um rocket russo cuja trajetória possa ter sido afetada pelos ucranianos.
Determinar de onde foi disparado o míssil é fulcral para decidir que passos deve a Polónia e o resto da NATO tomar em resposta a este incidente. Mas, seja qual for a conclusão, é quase certo que o Ocidente reagirá claramente contra a Rússia porque, como disse uma fonte de Bruxelas à agência russa TASS, “este incidente nunca teria acontecido se não houvesse a agressão russa contra a Ucrânia”. Basta lembrar que as mortes em Przewodów aconteceram num dia em que a Rússia disparou dezenas de mísseis contra várias cidades ucranianas, de Kharkiv a Lviv, passando por Kiev.
Artigo 4.º e Artigo 5.º, as armas da NATO
O que irá então a NATO fazer em reação a este incidente? Pode isto representar um envolvimento militar direto da Aliança Atlântica no conflito ucraniano?
Vamos por partes. A Polónia está a discutir a aplicação do Artigo 4.º do Tratado da NATO, que prevê a consulta formal entre todos os Estados-membros quando um deles se sente ameaçado por outro país ou por uma organização terrorista. E, tendo em conta as reações públicas de vários responsáveis de membros da Aliança, parece provável que estas conversações venham a acontecer.
Tal não seria surpreendente, até porque o Artigo 4.º já foi ativado várias vezes no passado. Foi assim no ano passado, quando soldados turcos foram mortos na Síria, e no início da invasão total da Ucrânia, em fevereiro deste ano, como lembra a Deutsche Welle.
Qualquer decisão sobre o que fazer em relação a essa ameaça sentida pela Polónia, porém, tem de ser tomada por unanimidade entre todos os 30 membros da Aliança, que incluem não apenas os Estados Unidos e membros da União Europeia, mas também a Noruega e a Turquia. Isso inclui a escalada do Artigo 4.º para o Artigo 5.º do Tratado da NATO — o famoso artigo que prevê que um ataque a um Estado-membro é um ataque “a todos os membros” da Aliança, que devem reagir em conjunto.
O Artigo 5.º só foi invocado uma vez ao longo de toda a História da Aliança, na sequência dos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos, e foi usado para justificar a missão da NATO no subsequente ataque ao Afeganistão.
Vedant Patel, porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, não quis especular esta terça-feira sobre a reação da NATO a este incidente na Polónia, mas afirmou que “é importante” avaliar qual a intenção — ou seja, um cenário em que a Aliança recorre ao Artigo 5.º deverá ser uma em que considera que houve “um ataque” deliberado.
“Preocupação” em vez de “pânico”. Como a NATO tentará evitar um confronto militar direto com a Rússia
Os especialistas duvidam de que este incidente resulte numa ativação do Artigo 5.º e num envolvimento direto da Aliança Atlântica no conflito ucraniano. Dois responsáveis da NATO disseram mesmo na noite de terça-feira ao Financial Times que a reação dentro do quartel-general da Aliança ao incidente em Przewodów foi de “preocupação”, mas não de “pânico”.
Significa isto que a NATO não vai fazer nada depois de dois cidadãos de um dos seus Estados-membros terem morrido por causa de uma guerra num país vizinho? Não exatamente. Fabrice Pothier, antigo diretor de planeamento da NATO, aventou à Sky News que o mais provável será um reforço dos sistemas de defesa aérea da Polónia, mas também da própria Ucrânia, já que esta é “a primeira linha de defesa de facto da Aliança”.
Outro sinal que aponta para este cenário é o facto de ter sido precisamente esta a exigência feita pelo responsável máximo da diplomacia ucraniana na noite desta terça-feira: “Uma cimeira da NATO com a participação da Ucrânia para desenhar mais ações conjuntas que forcem a Rússia a mudar de rumo na escalada, fornecendo à Ucrânia aeronaves modernas como F-15 e F-16, bem como sistemas de defesa aérea, para que possamos intercetar os mísseis russos”, escreveu Dmytro Kuleba no Twitter.
Ukraine reaffirms its full solidarity with Poland and stands ready to provide any necessary support. Collective response to Russian actions must be tough and principled. Among immediate actions: a NATO summit with Ukraine’s participation to craft further joint actions… 1/2
— Dmytro Kuleba (@DmytroKuleba) November 15, 2022
A isso soma-se o facto de que esta não seria, de todo, uma ação inédita por parte da Aliança. Na sequência de discussões no âmbito do Artigo 4.º, recorda o Business Insider, a NATO forneceu reforços aéreos à Turquia durante a guerra no Iraque (2003) e deu baterias de mísseis Patriot também à Turquia por causa da guerra na Síria (2012). O facto de a Turquia ter sido um dos países que já beneficiaram de decisões semelhantes no passado pode ajudar os restantes membros da Aliança a convencerem aquele que pode ser o país mais resistente a um confronto direto com a Rússia, o Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan.
A solução permitiria a todos os Estados salvarem a face, mantendo postura firme contra a Rússia, mas evitando um confronto direto entre a NATO e a Rússia. Stacie Pettyjohn, diretora do programa de defesa do Center for a New American Security, lembrou ao site especializado Breaking Defense que os Estados Unidos, por exemplo, não têm interesse em serem arrastados para um conflito militar direto com a Rússia: “Penso que a administração [Biden] vai tentar reduzir a escalada. Emitirá um aviso duro, dirá à Rússia que tem de ter mais cuidado no futuro e tomará medidas para dar mais garantias à Polónia e a outros membros da NATO.”
Mas, como outras guerras já mostraram no passado, pequenos incidentes podem ter grandes consequências. O tempo dirá se Przewodów ficará para a História como uma nota de rodapé ou um ponto de viragem no conflito ucraniano.
(Texto atualizado às 8h00 de quarta-feira com informação adicional citada pela Associated Press sobre a possível origem das explosões)