Depois de anos de discurso político centrado na necessidade de ter contas certas, Luís Montenegro vem tirar peso a esse mantra que os socialistas tomaram nos últimos anos, com uma adaptação da velha máxima sampaísta: “Há vida além do excedente”. Ainda assim, o primeiro-ministro sabe que não pode correr riscos e, com um Parlamento dividido, avisa a oposição que o Orçamento não pode ser desvirtuado na especialidade que aí vem.
Cerca de cinco horas de debate, e esta quinta-feira ainda mais, para encerrar a primeira fase de um Orçamento que todos enjeitam mas que sairá aprovado da Assembleia da República. A viabilização socialista vai servindo à direita e a alguma esquerda para atacar quem mais convém. No PCP, o PS é colocado ao lado da direita, mas no Chega e na IL o novo bloco central serve para fazer tiro a Luís Montenegro que chegaram a apelidar de “socialista”.
O OE possível que ninguém quer assumir que apadrinha e que Montenegro não quer que vá mais além
Luís Montenegro entrou no debate apostado em fazer vingar duas teses. A primeira é que este foi o Orçamento possível e não aquele que queria ter apresentado. A segunda é que mexer-lhe muito pode “desvirtuar”o programa eleitoral que saiu vencedor nas legislativas de 10 de março. No fundo as duas reduzem-se a um único aviso: o Orçamento que o PS já se comprometeu a viabilizar, na primeira e na última votação, já foi feito à medida desse voto e pedir mais é ir para lá do limite do Governo.
“A proposta que apresentámos ao maior partido da oposição é um compromisso até ao limite do razoável, aquele limite a partir do qual se desvirtuaria o programa do Governo”, disse o primeiro-ministro no Parlamento onde sabe que o próximo mês pode trazer um debate na especialidade intenso e potencialmente perigoso para as suas pretensões, já que não tem maioria para controlar as propostas de alteração que vierem, como lamentou – “não me estou a queixar, mas…” – várias vezes.
A pressão sobre o PS foi-se repetindo: “Acredito na palavra do PS”, foi avisando Montenegro, sobre a viabilização do documento assim como sobre as promessas de manutenção do equilíbrio das contas durante o processo de especialidade. “Naturalmente confiamos na palavra dada ao país pelo PS e sabemos que está [prometida] a concretização deste OE, não é de mais nenhum”.
Depois deste OE, o PS fica solto. Mas, para já, Montenegro espera que não haja novos sobressaltos na especialidade – até porque acredita que descaracterizar agora o documento seria uma “ofensa à vontade que os portugueses” expressaram em eleições. O aviso ficou feito.
Do PS ouviu o alinhamento, vindo de uma pergunta feita na segunda ronda pelo deputado Filipe Neto Brandão, com a política de equilíbrio de contas públicas e de redução do défice, mas nada mais além disso. O PS atirou-se sobretudo às metas de crescimento que o Governo reafirmou, mantendo “intacta a sua intenção de atingir os 3% e de fazer perdurar acima de 3% de forma sólida e duradoura” na legislatura. “É verdade que estamos a ser prudentes”, assumiu, por causa da incerteza externa.
O partido que mais aproveitou o envolvimento do PS neste Orçamento foi o Chega, que até chegou a reclamar para si o lugar de líder da oposição (ver mais abaixo), aproveitando para, de uma vez, atingir AD e PS.
PS reclama créditos por contas em ordem que Montenegro já desvaloriza: “Não é o mais importante”
“Com as contas do PS”. O mal estar socialista foi-se fazendo ouvir durante o debate, com o partido agora liderado por Pedro Nuno Santos a reclamar os créditos por uma casa deixada arrumada. Mas o primeiro-ministro tentou esvaziar o dado das contas em ordem e a dada altura recuou mesmo à velha frase do então Presidente Jorge Sampaio, claro, com um atualização significativa: de “há vida além do orçamento [apesar de ter ficado com a fama de ter sido dito “há vida além do défice”]” passou ao “há vida além do excedente”. O “equilíbrio das contas não é o mais importante”, disse Montenegro ao mesmo tempo que também prometeu seguir pelo “caminho da prudência, da moderação e da ambição realista”.
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Ao PS que, em tempos, acusou de despesista, Montenegro aponta agora uma culpa que vem do sentido oposto: “De que serviriam contas certas se Estado engordava e serviços públicos definhavam? Para que serviam as contas certas?” E traçou mesmo como “a maior das diferenças” entre o seu Governo e o anterior o facto de no seu haver “vida e objetivos para além do excedente orçamental”.
Os dois partidos traziam no programa compromissos para devolver dinheiro a professores e forças policiais,por exemplo, mas quem concretizou foi mesmo quem chegou à frente nas eleições. Montenegro não só reclamou essa dianteira, como ainda ganhou terreno para atirar ao PS a culpa pelo estado dos serviços públicos, apresentando-se como líder de um Governo que aposta na “capacitação” dos serviços públicos: “Queremos devolver o orgulho e o reconhecimento do que é ser funcionário público”. Isto além de garantir “a paz social”, atirou ainda neste capítulo.
Quem é quem? O líder da oposição é o PS, garante Montenegro. A IL diz que PM virou socialista
André Ventura entrou no debate a reclamar o posto de líder da oposição, depois de afirmar, mal tomou a palavra, que o “PS deixou de ser o partido da oposição e é o partido que sustenta o Governo”. Uma ambição que foi cortada pelo PS? Não, foi o próprio primeiro-ministro que enxotou o Chega desse posto ao atirá-lo para o fundo da tabela. Para Luís Montenegro é uma questão matemática” e “não há dúvida” que o PS é o maior partido da oposição. A “guerra” é, por isso mesmo, “entre os dois maiores partidos da oposição”: “O nosso campeonato é governar”, já o Chega “é daquelas equipas que não querem descer”.
A verdade é que, neste debate, o líder socialista resguardou-se dos ataques ao Governo, guardando a intervenção mais política para o segundo dia de debate. Em boa parte das intervenções (e dos apartes parlamentares) a bancada socialista queixou-se de ter a AD a aproveitar as contas deixadas em ordem pelo seu Governo para distribuir dinheiro nos primeiros meses de governação. Uma queixa a que Montenegro foi respondendo com um “eram capazes de fazer isto, mas não foram capazes de executar”. Ou no dito popular usado por Hugo Soares, do PSD: “Depois do batizado feito não faltam padrinhos”.
Por outro lado, linha de raciocínio não deixou de ser aproveitada à direita do plenário, onde Rui Rocha da IL apontou a proximidade entre PSD e PS e estranhou que Montenegro se tivesse “tornado socialista tão depressa”, apontando mesmo um “Orçamento socialista”. Na resposta, Montenegro devolveu a “desilusão”, falando da “posição incoerente” da IL sobretudo em matéria de fiscalidade. Aliás, acabou mesmo a dizer que o Orçamento não vai até onde queria, mas sobretudo na descida de impostos onde estranhou mesmo “ser bloqueado nessa pretensão”.
Esquerda em caminhos diferentes: PCP contra PS, BE não hostilizou
Havia nas últimas semanas algum suspense à esquerda quanto à decisão que o PS tomaria relativamente a este Orçamento do Estado. Desfeito o tabu, os antigos parceiros do PS não demoraram a registar que a decisão “desalentada” de Pedro Nuno Santos significaria que o centrão voltava a aproximar-se, sobrando espaço na oposição à esquerda por ocupar. Ainda assim, chegados ao debate orçamental, os partidos adotaram posturas diferentes.
Para os comunistas, a constatação de que este é um Orçamento “ao serviço dos grandes grupos económicos”, que distribui benefícios fiscais e reforça as parcerias público-privadas, não serviu para atingir apenas o PSD: o PS “deu a mão” aos sociais democratas e permitiu a aprovação do documento, registaram. E não foi apenas por uma questão de tática política, defendeu o líder comunista, Paulo Raimundo: “Viabiliza porque as opções em curso dão continuidade às opções da maioria absoluta do PS”.
Com os comunistas a colocarem PS no mesmo saco de toda a direita e como um player a favor de um OE pensado para “os poderosos”, o Bloco seguiu um caminho alternativo. Tendo sido constantemente atacado pelo primeiro-ministro pela recordação dos tempos de geringonça, em que os bloquistas permitiam ao PS que continuasse a governar – e, segundo Luís Montenegro, a aprofundar problemas que o Governo precisa agora de resolver –, o Bloco deixou o PS respirar.
Assim, preferiu focar-se também nas injustiças que diz detetar no documento, assim como nas medidas mais discretas que serão “armadilhas” para futuro, como a intenção do Governo de mexer, via autorização legislativa, na lei do trabalho para os funcionários públicos, ou o congelamento do número de funcionários públicos, permitindo apenas uma entrada por cada saída de outro trabalhador. Apesar de acreditar que pode ganhar terreno com uma colagem do PS ao PSD, o Bloco continua a acreditar que o combate principal que deve lançar é mesmo contra a direita – e ao bloco da direita por inteiro. E foi a isso que se dedicou.
Duas perguntas insistentes e meia resposta
As duas maiores insistências nas quase cinco horas de debate foram sobre o travão às contratações na função pública (para entrar um funcionário tem de sair um) e sobre as alterações à lei geral do trabalho. Luís Montenegro foi pouco conclusivo sobre ambas.
Quanto à regra da função pública, sobretudo a esquerda insistiu com uma pergunta: se a regra é essa nas áreas onde fazem falta funcionários (educação e saúde, por exemplo) como vai o Governo compensar? Luís Montenegro ignorou sempre a questão e, perante a insistência socialista sobre como será operacionalizada a medida, foi o deputado do PSD João Vale e Azevedo que avançou com uma explicação genérica: “O Governo está a dizer que fixa um contingente global. E depois é preciso fazer a gestão escola a escola”.
O outro tema que levantou dúvidas foi o da lei geral do trabalho para funções públicas onde, também a esquerda, questionou o Governo diversas vezes sobre o que vai mudar, através da autorização legislativa que propõe no Orçamento, nas férias, greves, proteção na doença ou nas regras de mobilidade. Mas o Governo diz pouco e que apenas pretende “clarificar” conceitos e coisas “administrativas” como a “comunicação de greves” – o que não convenceu os partidos da esquerda.
IL e Chega levam IRC à especialidade, Livre quer herança social a substituir IRS Jovem
A pergunta sobre o IRC veio sobretudo dos liberais que se entretiveram a confrontar Montenegro com as promessas que fez em campanha e que agora não foram vertidas para o Orçamento do Estado. A descida do IRC em dois pontos percentuais por ano até ao final da legislatura foi uma das vítimas da negociação com o PS e Montenegro assumiu que neste momento a descida do imposto “é uma impossibilidade” e que teve de a deixar pelo caminho para conseguir aprovar este Orçamento – era uma das linhas vermelhas do PS.
Mas o tema vai voltar à especialidade, onde a margem para alterações é curta, praticamente inexistente, avisou o Governo. A Iniciativa Liberal vai insistir na bandeira, disse Bernardo Blanco, que apontou as semelhanças que existem entre a proposta de Orçamento do Governo e os orçamentos do PS. Além do IRC, os liberais também vão propor a descida do IVA na construção e a isenção de impostos nas contas poupança.
O IRC ainda vai viver na especialidade pela mão do Chega, que já tinha adiantado, antes do debate, que vai apresentar uma proposta de alteração que prevê a descida de dois pontos percentuais da taxa geral de IRC, de 21% para 19%. No entanto, André Ventura não teve tempo de explanar essa vontade durante a discussão do documento na generalidade. Quando ia começar a falar sobre a proposta do partido, os microfones desligaram-se porque o líder do Chega já tinha ultrapassado o tempo limite da intervenção. André Ventura compensou a falta de tempo com uma declaração no final do debate na qual revelou outra proposta de alteração a apresentar pelo partido: um “aumento permanente, e não extraordinário, de pensões a ter início já no próximo ano”, que será de “pelo menos, 1,5%” para “todas” as pensões até “ao limiar que o Governo já propõe”. “O aumento das pensões não deve ser de esquerda nem de direita”, ressalvou o líder do Chega. Essa questão já foi levantada ao Governo que ainda esta terça-feira, no parlamento, pela voz da ministra do Trabalho e da Segurança Social, diz estar disponível para esse aumento “estrutural” se “houver folga”, mas não se referindo a 2025. O PS ainda está a avaliar se levará o tema à especialidade.
Governo disponível para “aumento estrutural” das pensões no futuro se houver folga
A discussão na especialidade, que terá lugar entre 22 e 29 de novembro, com a votação final global a ter lugar neste dia, começa, assim, a ganhar forma. Também já são conhecidas algumas das intenções do Livre. No debate, a deputada Isabel Mendes Lopes, do Livre, adiantou que o partido vai mesmo avançar com a proposta para a criação de uma herança social, e que esta deveria substituir o IRS Jovem. O objetivo é dar cinco mil euros a cada criança nascida em Portugal, para que possa aplicar mais tarde, por exemplo, nos estudos. O partido já fez as contas a essa medida, estimando um custo na ordem dos 400 milhões de euros por ano. A esta proposta, deverá juntar-se o aumento do abono de família em 25 euros e a criação de uma agência portuguesa para a inteligência artificial ou para o hidrogénio. Luís Montenegro ressalvou que estas últimas não cabem no Orçamento do Estado.
Já o PAN promete tentar “corrigir” o que considera ser um erro cometido pelo Governo na sua proposta. Inês Sousa Real vai apresentar uma proposta para autonomizar as verbas previstas para a proteção animal, que rondam os 13 milhões de euros e que o Governo da AD “espalhou” por vários ministérios.
No orçamento para 2024 foi batido um recorde de propostas apresentadas pelos partidos na especialidade. No total, deram entrada 1.931 propostas de alteração ao Orçamento do Estado.