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O maestro de um plano e um líder de uma associação criminosa que alegadamente se dedicou à apropriação indevida de fundos europeus ao longo de oito anos, com a criação de uma complexa teia de negócios entre empresas por si geridas ou indiretamente controladas por familiares e pessoas da sua confiança. É desta forma que o Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária olham para Manuel Serrão na Operação Maestro. O empresário é indiciado pelos crimes de associação criminosa, fraude na obtenção de subsídio, branqueamento de capitais, fraude fiscal e recebimento ou oferta indevida de vantagem: no total, Serrão terá alegadamente desviado um total de cerca de 39 milhões de euros.
Da alegada associação criminosa liderada por Serrão farão igualmente parte António Souza-Cardoso (ex-líder da Associação Nacional de Jovens Empresários) e o empresário António Branco Silva (cunhado de Serrão).
Manuel Serrão e Souza-Cardoso são igualmente acusados de terem criado uma organização informal intitulada “Kings” ou “4 Kings” (“reis” em português “reis”, ou, com um duplo sentido — “quatro reis” e “para os reis”), que visava a alegada captação para proveito próprio dos montantes dos fundos europeus atribuídos por várias entidades nacionais. Tais fundos, segundo a PJ, seriam depositados no chamado Fundo 4K e distribuídos de forma equitativa pelos membros do grupo.
O MP e a PJ entendem que Paulo Vaz (diretor-geral da Associação Têxtil e de Vestuário de Portugal) também faz parte do grupo original dos “Kings”. Contudo, ainda não lhe foi imputado qualquer crime na atual fase da investigação.
Para tal, terão contado com a alegada cumplicidade e colaboração de responsáveis do COMPETE 2020 e da AICEP, nomeadamente de Nuno Mangas (ex-presidente da Comissão Diretiva do COMPETE 2020 que foi afastado pelo Governo em novembro deste ano), de Ana Lemos Gomes (ex-responsável do COMPETE 2020) e de Ana Pinto Machado (responsável da Direção de Verificação de Incentivos na AICEP).
As reuniões secretas dos “Kings” no Sheraton do Porto e o Fundo 4K
Sob o argumento da promoção internacional de pequenas e médias empresas portuguesas, os “Kings” (Manuel Serrão, António Souza-Cardoso e mais dois elementos, um dos quais já falecido) terão coordenado as candidaturas aos fundos europeus das diferentes entidades que controlavam. O objetivo era claro: receber fundos europeus sob a forma de adiantamentos ou reembolsos mediante a apresentação de faturas elegíveis.
O problema começa precisamente aqui: uma parte relevante das despesas apresentadas não eram elegíveis. Por duas razões:
- Ou as despesas tinham a ver com serviços simulados;
- Ou os valores das faturas eram empolados face ao valor real dos serviços prestados às empresas dos “Kings”.
O controlo das atividades, segundo as vigilâncias feitas pela PJ, eram analisados pelos “Kings” em reuniões anuais no Hotel Sheraton, no Porto — a mesma unidade hoteleira de cinco estrelas na qual Manuel Serrão terá vivido de forma permanente entre 2015 e 2023, conforme o Observador adiantou em março.
A investigação apurou que a verba de 372.423 euros referente aos custos com a estadia do empresário foi uma das despesas submetidas pela Associação Selectiva Moda ao COMPETE 2020 que terá sido aceite pela entidade gestora.
Quando não era no hotel situado junto à Avenida da Boavista, no Porto, o ponto de encontro mudava-se para o restaurante Habitat – Terra e Fogo, localizado na Rua do Passeio Alegre.
Nestas reuniões presenciais, os elementos soa ‘Kings’ discutiriam a organização da estrutura, os diferentes programas de financiamento a que as diversas entidades por si controladas se podiam candidatar e em que momentos. Além disso, Manuel Serrão e António Souza-Cardoso articulavam os contactos que teriam de fazer para influenciar os responsáveis pelas entidades públicas e administrativas a cargo da atribuição desses fundos.
Tudo para assegurar junto dos decisores que os fundos continuavam a ser concedidos às entidades que controlavam, podendo depois gerir em proveito próprio essas verbas. Neste contexto, o MP e a PJ centram as suas atenções nas condutas dos “Kings” Manuel Serrão e António Souza-Cardoso (sobrinho-neto do pintor Amadeo Souza-Cardoso e que foi também presidente do movimento monárquico Causa Real), com o apoio de António Branco Silva, para conseguirem o alegado desvio de fundos.
A investigação entende que estes suspeitos terão agido de forma concertada ao abrigo de uma alegada associação criminosa, colocando os seus interesses à frente do interesse público e defraudando o Estado em sede de IRC, IRS e IVA.
O Observador sabe que Manuel Serrão, António Souza-Cardoso e António Branco Silva foram, por isso, indiciados pelo MP perante o juiz de instrução criminal pelos seguintes crimes:
- Associação criminosa;
- Fraude na obtenção de subsídio — foram imputados 12 crimes aos três arguidos;
- Fraude fiscal;
- Branqueamento de capitais, sendo também imputado a Manuel Serrão um crime de recebimento ou oferta indevida de vantagem.
Já as três empresas arguidas foram indiciadas pelos crimes de fraude na obtenção de subsídio, branqueamento e fraude fiscal, variando apenas o número de crimes do primeiro ilícito: 10 imputados à Associação Selectiva Moda, 11 à No Less e 9 à House of Project.
A faturação superior a 110 milhões de euros e os 600 mil movimentados num só dia
De acordo com o Ministério Público, o alegado esquema assentou, essencialmente, na atividade das três sociedades arguidas (Associação Selectiva Moda, No Less e House of Project) que, entre 2015 e 2023, faturaram no total cerca de 110 milhões de euros.
Nesse período de oito anos, os valores faturados pelas três sociedades variaram, mas têm uma componente relevante de serviços prestados em grupo. Ou seja, as sociedades eram clientes uma das outras:
- A Selectiva Moda faturou 90.144.695,15 euros;
- A No Less faturou 11.559.730,92 euros — dos quais 19,97% à Selectiva Moda e 33% a outras entidades controladas por Manuel Serrão, Souza-Cardoso e Branco Silva;
- E a House of Project faturou 8.371.484,82 euros — sendo que 50,6% correspondem a serviços prestados à Selectiva Moda e 64% a outras empresas na organização coordenada pelos “Kings”.
A atividade que levou ao alegado desvio de cerca de 39,3 milhões de euros (sendo a esmagadora maioria da Selectiva Moda) consistiu nas candidaturas a 11 operações do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI), do Portugal 2020. Houve igualmente candidaturas ao abrigo do Mecanismo Extraordinário de Antecipação do Portugal 2030, do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) — que é um dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI).
Essas operações, que estão agora na mira da investigação, visavam o apoio à promoção e internacionalização de pequenas e médias empresas nacionais em eventos. De acordo com o MP e a PJ, Manuel Serrão combinava com os representantes de empresas com as quais tinha uma relação de confiança, como o grupo Spormex ou a sociedade Katty Xiomara, Lda, para que estes emitissem faturas de valor superior ao serviço contratado ou por serviços que não eram prestados, elevando assim o valor das despesas elegíveis para apresentação e validação de financiamento e reembolso. Uma vez efetuados os pagamentos a esses fornecedores, por vezes no mesmo dia ou nos dias seguintes, grande parte dos valores eram devolvidos por transferência bancária.
Um exemplo prático, segundo a investigação do MP: entre outubro e novembro de 2016, a empresa de Katty Xiomara emitiu faturas no valor global de 116.850 euros à Selectiva Moda, que então as apresentou como despesas à autoridade de gestão do Portugal 2020, sendo reembolsada em 54.500 euros. De seguida, regressou à esfera de sociedades controladas por Serrão um total de 107.794,13 euros, o que significa que, tendo em conta o valor inicial das faturas e o toal encaixado pelas empresas de Serrão, Xiomara recebeu pelos serviços somente 9.055,87 euros.
Manuel Serrão também sugeriria às grandes empresas a criação de pequenas empresas, para que pudessem através desse mecanismo participar nas deslocações às feiras internacionais, apurou a investigação do DCIAP e da PJ. Assim, podia contornar as regras que definem o acesso aos benefícios financeiros, como os limites ao nível do número de funcionários ou o volume de negócios anual, que tem de ser igual ou inferior a 50 milhões de euros.
Para se perceber a dimensão financeira das operações efetuadas no alegado esquema entre arguidos, sociedades e pessoas da sua confiança, a investigação apurou que só no dia 13 de abril de 2022 foram movimentados 600 mil euros pelas contas da Selectiva Moda, No Less, António Branco Silva, Manuel Serrão e até pela conta da mãe do empresário, Maria Valadares Souto, da qual também era titular.
MEC e Rui Zink na lista de pagamentos de empresa de Serrão. Não são suspeitos para a PJ
Miguel Esteves Cardoso (MEC) e Rui Zink são amigos de Manuel Serrão há muitos anos, tendo trabalhado juntos na década de 90 no programa Noite da Má Língua, na SIC. Os dois escritores constam da lista de pagamentos da empresa Morugem.
MEC recebeu o valor de 397.000,55 euros entre 2015 e 2021, enquanto Zink recebeu 54 mil euros entre 2018 e 2022. O Observador sabe que os dois não são considerados suspeitos pela PJ e o despacho de indiciação que o MP apresentou no Tribunal Central de Instrução Criminal neste mês de novembro limita-se a descrever os pagamentos que foram feitos.
A principal razão para que MEC e Zink sejam encarados como meros sujeitos acidentais nestes autos deve-se ao facto de os serviços pelos quais foram remunerados terem sido efetivamente prestados, já que nenhum dos dois estaria a par do alegado plano criminoso dos “Kings”.
Em declarações ao Observador, Miguel Esteves Cardoso explicou que os pagamentos têm a ver com o facto de Manuel Serrão ser o seu agente. “A Morugem era uma empresa criada pelo Manuel e era no âmbito dessa empresa que o Manuel fazia o seu trabalho de agente. Todo o meu trabalho — os livros, as crónicas no Público, o programa de rádio que tenho na Antena 1 e outros trabalhos — era pago através da Morugem”, começa por explicar MEC. “A Morugem cobrava-me 10% de taxa de agenciamento — que é o valor habitual nessa área — e ainda ficava com os fundos necessários para pagar os impostos devidos. Depois de descontar os 10% da taxa de agenciamento e os impostos que tinham de ser pagos, a empresa pagava-me os fundos remanescentes”, diz.
Esteves Cardoso faz questão de dizer que é “amigo do Manuel Serrão há muitos anos”: “Ele comigo sempre foi impecável, minucioso com os valores que me tinha de pagar. Sempre foi um homem de contas certas”. Revela: “O Manuel ligou-me há uns meses e disse-me que ia acabar com a empresa [a Morugem]. Deixou de ser o meu agente e eu passei a tratar de tudo sozinho.”
Já Rui Zink referiu ao Observador que o processo Operação Maestro “está a decorrer” e que, “neste momento, não é útil fazer comentários”, apesar de deixar uma crítica à forma como o caso foi retratado na comunicação social. “O julgamento de Manuel Serrão na praça pública está feito. Está condenado. O julgamento para tribunal, se eu for chamado a depor, fá-lo-ei”, referiu.
Em jeito de conclusão, Zink diz: “Não é a primeira nem a última vez que aparece como uma coisa terrível algo que não é. Acredito na inocência de Manuel Serrão. Não é curial estar a atirar mais achas para a fogueira”.
O encontro em Leixões e a pressão sobre os responsáveis pelos fundos europeus
Nuno Mangas, presidente da comissão diretiva do COMPETE 2020 e da atual autoridade de gestão do Programa Temático Inovação e Transição Digital, foi um dos decisores que os “Kings” procuraram influenciar para que o dinheiro dos fundos não parasse de chegar às sociedades e entidades que controlavam.
Entre os indícios recolhidos pela PJ está um encontro entre Manuel Serrão e Nuno Mangas a 10 de maio de 2023, no terminal de contentores de Leixões, na sequência de um evento do CITEVE — Centro Tecnológico Têxtil e Vestuário.
De acordo com a investigação, Mangas terá apontado ao empresário um problema com uma fatura da Selectiva Moda que a impossibilitaria de aceder a um programa de financiamento. Isto obrigou Manuel Serrão a várias iniciativas de anulação e substituição de faturas, conseguindo em novembro garantir a elegibilidade da operação pelas autoridades.
Mas Nuno Mangas não foi o único e os esforços dos “Kings” estenderam-se igualmente à AICEP, em especial a Mónica Moreira, da direção comercial, e a Ana Pinto Machado, diretora da verificação de incentivos.
Manuel Serrão, conjuntamente com outros colaboradores, terá contactado por várias vezes Ana Pinto Machado para saber do estado das candidaturas a fundos submetidas pela Selectiva Moda, para pressionar a realização de pagamentos e convidou-a para um evento das 60 edições do Modtíssimo — um evento da empresa controlada por Serrão.
Ana Pinto Machado dormiu nessa noite de 30 de setembro de 2022 no Hotel Sheraton e a dormida foi paga pela empresa Nicles, de Manuel Serrão. Está em causa um valor de 155 euros. O MP e a PJ entendem que a responsável da AICEP não poderia ter aceitado esta oferta num hotel de cinco estrelas por ser funcionária de uma entidade empresarial do Estado que escrutinava a ação das empresas de Manuel Serrão.
Nuno Mangas e Ana Lemos Gomes foram já visados pelas buscas realizadas em março e são considerados suspeitos pelo MP, tal como Ana Pinto Machado. A investigação entende que os gestores públicos terão alegadamente violado os seus deveres funcionais ao não respeitarem as regras no pagamento de projetos financiados pelo COMPETE 2020 e na verificação dos incentivos na AICEP.
O “docinho” de um milhão para Serrão e uma viagem a Las Vegas com a namorada paga com fundos europeus
As faturas com viagens para a participação em eventos internacionais eram habituais entre as despesas submetidas pela Selectiva Moda para reembolso no âmbito dos programas de financiamento. Uma dessas viagens, segundo a investigação do DCIAP, foi para a feira Magic Las Vegas, de 8 a 10 de agosto de 2022, com Manuel Serrão a rumar à cidade norte-americana na companhia da namorada.
O empresário e a namorada viajaram para Las Vegas a 29 de julho, tendo esta última regressado a 5 de agosto, antes do início da feira, enquanto Serrão ficou até 11 de agosto. A despesa total, entre viagem e estadia, atingiu os 13.213 euros.
De acordo com o MP, a fatura incluía a viagem de uma das colaboradoras da Selectiva Moda, mas a funcionária nunca chegou a sair de Portugal nesse período. A sociedade acabou por ser reembolsada em metade do valor pela autoridade de gestão do Portugal 2020. A alegada promiscuidade entre os diferentes intervenientes, colaboradores e decisores foi, no entender do MP e da PJ, essencial para executar o plano de captação de fundos comunitários.
As escutas telefónicas foram relevantes para que as autoridades chegassem a esse entendimento, sendo exemplo disso mesmo uma chamada entre Sofia Botelho, diretora de relações internacionais da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, e Manuel Serrão.
Numa das conversas, Sofia Botelho conta a Serrão uma chamada que teve com Ana Pinto Machado, na qual a responsável da AICEP lhe teria dito que sabia que estava em falta para com o empresário e que brevemente seria aprovado um pagamento de um milhão de euros. Sofia Botelho assegurou então ter dito a Ana Pinto Machado que o empresário estava a precisar de um “docinho”.
Indícios sem expressão nas medidas de coação, auditoria apura irregularidades e devolução de verbas
Os indícios apurados pela investigação na Operação Maestro levaram o MP a defender a existência do perigo de continuação da atividade criminosa pelos arguidos e, por isso, promoveu na última semana o agravamento das medidas de coação. Além de cauções de 500 mil euros para Manuel Serrão e António Souza-Cardozo e de 300 mil euros para António Branco Silva. Os três procuradores responsáveis pela investigação queriam ainda a proibição de contactos dos arguidos com pessoas do COMPETE e da AICEP
Apesar de ter considerado “fortemente indiciada a factualidade imputada aos arguidos“, o Tribunal Central de Instrução Criminal recusou e manteve a medida de coação menos gravosa, o termo de identidade e residência (TIR) dos arguidos, o que já levou o MP a anunciar a apresentação de recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Sem consequências ainda no plano criminal, a auditoria pedida pelo Ministério da Coesão Territorial concluiu já em julho pela existência de irregularidades na atribuição de alguns fundos europeus à Selectiva Moda de Manuel Serrão, impondo a anulação de despesas já certificadas no valor de 30 milhões de euros.
Esta auditoria foi, entretanto, enviada para a Inspeção-Geral das Finanças, as autoridades de gestão e o Ministério Público, que prossegue a investigação da Operação Maestro.
Questionado pelo Observador sobre os indícios apurados pela investigação contra Manuel Serrão, o advogado Pedro Marinho Falcão remeteu respostas para o processo: “Relativamente à questão da indiciação, sempre afirmámos que não discutiríamos na comunicação social os factos que são imputados ao arguido Manuel Serrão. Será objeto de análise no lugar certo, que é a diligência judicial de instrução ou julgamento”.
No entanto, o advogado do empresário relativizou esses indícios face à recente decisão do Tribunal Central de Instrução Criminal. “O tribunal não identificou nenhum perigo, designadamente perigo de perturbação do inquérito ou de continuação da atividade criminosa que suscitasse a alteração da medida de coação já aplicada (TIR) e, por essa razão, rejeitou a promoção do MP que pretendia, entre outras, sujeitar Manuel Serrão à prestação de uma caução de 500 mil euros”, indicou, salientando que esta posição contraria “de forma expressa e objetiva” a pretensão do MP.