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Na Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, dezenas de famílias recebem a primeira formação para acolherem crianças refugiadas que chegam e que chegarão da Ucrânia. 27 de Abril de 2022 Santa Casa da Misericórdia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa faz parte da task force criada pelo governo para operacionalizar a chegada a Portugal de menores ucranianos não acompanhados. Há 101 famílias inscritas e em formação para acolher crianças refugiadas na zona de Lisboa

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa faz parte da task force criada pelo governo para operacionalizar a chegada a Portugal de menores ucranianos não acompanhados. Há 101 famílias inscritas e em formação para acolher crianças refugiadas na zona de Lisboa

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Nada de gritos, nem sopa passada ou peixe, só gatos e não cães. A formação para famílias que querem receber crianças ucranianas

Em maio estarão selecionadas primeiras famílias de acolhimento de menores não acompanhados vindos da Ucrânia. Acompanhámos uma sessão de formação. Houve referências a aviões, gritos e iogurte líquido.

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“Moramos numa aldeia. Acabou de se mudar um casal russo para a casa ao lado da nossa, com uma criança de 8 anos, que costuma brincar na rua. Qual será a melhor forma de criar laços com ela?”

“As televisões estão 24 horas por dia a passar imagens da guerra, como gerimos este fluxo enorme de informação?”

“O contacto com a família biológica é aconselhado, mas em casos de crianças mais pequenas isso deve ser feito desde o primeiro dia? Não vai perturbá-las?”

“Que conselhos têm para ajudar à integração com as outras crianças da casa?”

“Quanto tempo de ambientação à família devem as crianças ter antes de integrarem a escola?”

“Temos estado a focar-nos nas crianças mais velhas ou adolescentes, mas, no caso dos bebés, ou das crianças com 2 ou 3 anos, quais são os maiores desafios?”

“Há possibilidade de chegarem crianças sem família ou vindas de lares?”

“E os irmãos? Ficam sempre na mesma família?”

Depois de num primeiro momento a timidez as ter mantido em silêncio, no final a dificuldade foi fazer com que as cerca de 50 pessoas presentes esta quarta-feira ao fim do dia na imponente Sala de Extração da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) parassem de pedir o microfone, já o tempo previsto para a sessão de formação sobre multiculturalidade e cultura ucraniana tinha sido ultrapassado.

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Sentadas na plateia, em grupos de dois, três ou quatro, com os filhos ou com os avós deles, as famílias ali presentes têm pelo menos uma coisa em comum: todas decidiram inscrever-se para serem família de acolhimento de uma ou mais crianças ucranianas, refugiadas de guerra, que nas próximas semanas deverão começar a chegar a Portugal, sem os pais. Estranho seria se não abundassem as dúvidas.

Isto apesar de, para trás, já ter ficado a sessão de esclarecimento pública, uma das várias que a Santa Casa tem promovido nas semanas que passaram (e continua ainda a promover), e, em alguns casos, até a primeira visita domiciliária, em que técnicos da instituição confirmam in loco se as famílias têm ou não condições para acolher mais um membro — não é preciso ter um quarto extra para acomodar a criança acolhida, até é preferível que o espaço seja partilhado, já tinha explicado também, ao longo da hora anterior, Rosário Farmhouse, presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens (CNPDPCJ). Nos primeiros tempos, acrescentou ainda, o mais certo é que as luzes também tenham de ser deixadas acesas durante a noite, para que as crianças acabadas de resgatar a um cenário de guerra se sintam em segurança.

Na Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, dezenas de famílias recebem a primeira formação para acolherem crianças refugiadas que chegam e que chegarão da Ucrânia. 27 de Abril de 2022 Santa Casa da Misericórdia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Rosário Farmhouse trabalha com comunidades ucranianas em Portugal há cerca de vinte anos

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Ao contrário do que tem sido comum, a sessão desta quarta-feira não contou com a presença da voluntária ucraniana, a viver em Portugal desde a infância, que costuma contextualizar hábitos e costumes da cultura daquele país para ajudar a preparar as famílias de acolhimento para o que as pode esperar — estas crianças raramente estão habituadas a comer peixe ou sopas passadas; não têm cães como animais domésticos, apenas gatos; costumam adorar iogurtes líquidos e bananas, que na Ucrânia são tão caros que quase configuram bens de luxo; e é pouco provável que tenham o hábito de comer à mesa, em família, e a horas certas, enumerou em vez dela Rosário Farmhouse, explicando que a realidade do país estará para a de Portugal há 30 ou 40 anos, se bem que com algumas diferenças fundamentais.

“Se a nossa matriz valoriza muito a família e as mulheres passaram a ter dois trabalhos quando entraram no mercado de trabalho, na Ucrânia não é bem assim; as mulheres começaram a trabalhar e os filhos ficaram em regime de self-service, sem horários para comer, para jogar ou para dormir”, descreveu antes de passar à fase das dúvidas. “É importante que eles percebam desde o início — com ajustes, claro, porque é tudo novo e porque os adolescentes precisam de tempo — que aqui é diferente.”

939 manifestações de interesse, 335 famílias em sessões de esclarecimento, 101 candidaturas formalizadas para acolher crianças

Junto ao palco, com as tombolas que todas as semanas cospem os números da sorte grande em pano de fundo, a Presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens (CNPDPCJ), vai dando resposta às questões colocadas pelos representantes de cerca das 30 famílias presentes, a espaços ajudada por Rui Godinho, responsável pela Direção de Infância e Juventude da SCML, a entidade responsável pelo processo de acolhimento familiar de menores acompanhados nos concelhos de Lisboa, Sintra, Amadora, Mafra, Loures, Odivelas, Cascais, Oeiras e Vila Franca de Xira.

“As crianças são mais descomplicadas do que os adultos e o importante é que o nosso discurso vá no sentido da paz. Devem dar-lhes a oportunidade de se conhecerem  e explicar-lhes que há muitos russos que também são contra a guerra”

“Se forem adolescentes, com as redes sociais sociais têm acesso a mais informação do que nós, mas o melhor é optar por desligar a televisão quando eles estão por perto.”

“O contacto com as famílias é fundamental, mas deve ser gerido diariamente e com conta, peso e medida. Caso contrário, não só pode ser um grande stress quando durante um dia ou dois não conseguem fazê-lo, como podem correr o risco de terem os pais na Ucrânia a gerir a vossa vida aqui.”

“As nossas crianças acham muito giro no primeiro e no segundo dia, mas depois não tanto, até porque as crianças que vão chegar tomam muito tempo aos pais. É importante envolvê-los no processo, proporcionar momentos de contacto e brincadeira e pedir-lhes ajuda.”

“A escola é muito importante, não só para a aprendizagem mas para a socialização. Se são muito pequeninos, o infantário fará falta mas o processo pode ser feito de forma gradual. Se forem mais velhos e forem para a escola antes das férias, é importante tentar que tenham um horário mais leve nos primeiros tempos, a partir de setembro é que já tem de ser um horário normal.”

“Os mais pequenos adaptam-se com muita facilidade. A linguagem não verbal é fundamental, têm se sentir que são amados e de fazer brincadeiras.”

“Há crianças que podem vir de orfanatos familiares, semelhantes às nossas Aldeias SOS, em que existe uma ‘mãe’ para várias crianças. O que não quer dizer que tenham sido vítimas de maus-tratos, na Ucrânia há crianças em instituições por pobreza.”

“Se forem 7 irmãos — e há muitas famílias numerosas na Ucrânia — se calhar fica difícil, mas a ideia é não separar famílias. Por exemplo, em Mafra já há várias famílias de acolhimento inscritas, se fosse esse o caso podíamos dividi-los por duas ou três casas.”

Neste momento já há mais famílias inscritas para receber crianças nos nove concelhos a cargo da SCML, já tinha explicado Rui Godinho ao Observador, do que em todos os outros 299 municípios portugueses, em que o processo arrancou mais tardiamente e pela mão da Segurança Social.

“Já tivemos duas campanhas de acolhimento familiar do sistema regular e em cada uma tivemos 600/700 manifestações de interesse, sendo que neste momento há cerca de 70 famílias de acolhimento. Agora, já vamos em 101 e há sete famílias que já acolhem outras crianças que estão disponíveis também para acolher ucranianos”
Rui Godinho, responsável pela Direção de Infância e Juventude da SCML

“Já tivemos 939 manifestações de interesse e 335 famílias participaram nas sessões de esclarecimento, sendo que 101 delas formalizaram a inscrição e estão agora a ser avaliadas e formadas. Mas continuam a chegar mais e nós continuamos a fazer sessões”, congratula-se o diretor da SCML, que espera que, no início de maio, pelo menos estas 101 famílias (partindo do princípio de que são todas aprovadas) estejam já aptas para receber crianças nas respetivas casas.

“Já tivemos duas campanhas de acolhimento familiar do sistema regular e em cada uma tivemos 600/700 manifestações de interesse, sendo que neste momento há cerca de 70 famílias de acolhimento. Agora, já vamos em 101 e há sete famílias que já acolhem outras crianças que estão disponíveis também para acolher ucranianos”, contabiliza, sem conseguir precisar os números nacionais e explicando apenas que estão aquém disso.

Apesar de ter contactado diversas vezes o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, no sentido de perceber se a vontade de ajudar desta forma é extensível ao resto do país, quantas famílias se mostraram disponíveis para acolher menores ucranianos e quantas formalizaram efetivamente as candidaturas, até à data de publicação deste artigo o Observador não obteve qualquer resposta.

A única informação disponível sobre o assunto foi a prestada a meio de março pela ministra Ana Mendes Godinho, que na altura disse que já eram quase 1.200 as famílias disponíveis para acolhimento familiar de menores não acompanhados em Portugal. Se na região de Lisboa há 101 famílias inscritas e se esse número é superior ao das candidaturas registadas no resto do país, não será difícil concluir que os casos em que essa disponibilidade se materializou para lá da intenção são, no mínimo, residuais.

“Esta guerra é uma coisa nova, ninguém estava preparado para isto, o que os Estados estão a discutir é como é que vêm as crianças, e em que condições. Temos crianças não só na Polónia, que tem uma relação muito próxima com a Ucrânia e uma forma de atuar muito específica, mas também na Moldávia, que está fora da União Europeia. Há aqui várias configurações e os Estados estão a discutir várias situações para perceber quantas crianças seguem para cada país”
Rui Godinho, responsável pela Direção de Infância e Juventude da SCML

Outros números enganadores são exatamente os que têm sido divulgados sobre os menores desacompanhados que já chegaram, vindos da Ucrânia, a Portugal. A 11 de abril, o SEF anunciou a entrada nas fronteiras nacionais de 360 crianças ou jovens ucranianos nestas circunstâncias — o que não significa, de todo, que tenham chegado sozinhos, apenas não chegaram acompanhados de pais ou representantes legais, na posse de documentos que o comprovem.

Sem pais e sem adultos responsáveis, diz Rui Godinho, haverá neste momento três adolescentes, de 16 e 17 anos, alojados num apartamento de autonomia da SCML — e porque se percebeu que o familiar com quem vinham ter não era propriamente um modelo de idoneidade e tinha várias queixas em seu nome na polícia. “São praticamente estudantes pré-universitários: falam fluentemente inglês e são completamente autónomos. Não há crianças em famílias de acolhimento. Não há sequer nenhuma família selecionada. Vinte e uma famílias já fizeram a formação e as várias entrevistas, estamos a elaborar relatórios, mas antes da próxima semana o processo não deverá estar concluído.”

O objetivo é fornecer informação ao governo português assim que possível sobre quantas crianças tem o país condições para acolher. “Esta guerra é uma coisa nova, ninguém estava preparado para isto, o que os Estados estão a discutir é como é que vêm as crianças, e em que condições. Temos crianças não só na Polónia, que tem uma relação muito próxima com a Ucrânia e uma forma de atuar muito específica, mas também na Moldávia, que está fora da União Europeia. Há aqui várias configurações e os Estados estão a discutir várias situações para perceber quantas crianças seguem para cada país.”

“Para mim o mais difícil é pensar no momento em que vai ter de se ir embora”

Está tudo a ser feito em “modo expresso”, até porque, como diz o responsável da SCML, “ninguém sabe se amanhã não chega um avião com 300 pessoas” e a task force criada pelo governo para gerir as questões destas crianças — e que junta SCML, CNPDPCJ, Casa Pia, Instituto de Segurança Social, Alto Comissariado para as Migrações, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e Procuradoria-Geral da República — não tem de “resolver” o problema.

“Na semana passada chegou um avião e havia crianças que não sabíamos se estavam acompanhadas ou não, estivemos até às 3h da manhã a trocar mensagens no grupo de WhatsApp que temos enquanto task force, a ver se tinham representante legal, para onde iam, para onde não iam. Acabaram por não ser menores não acompanhados, não se colocou a questão, mas podiam ser”, conta Rui Godinho.

A avaliação das famílias, que costuma demorar quatro meses, agora está a ser feita em três semanas, por uma task force de 40 pessoas, repartidas por 20 sub equipas. Já a formação, que costuma prolongar-se durante 20 horas, agora é feita em duas sessões de duas horas cada. “Uma é sobre questões de multiculturalidade e cultura ucraniana, outra sobre questões específicas do acolhimento familiar”, explica o psicólogo e responsável pela Direção de Infância e Juventude da SCML. “Na seleção, basicamente estamos a avaliar as motivações e a idoneidade; depois queremos fazer, já durante o acolhimento familiar, uma espécie de formação em exercício. Estamos a criar uma task force de 40 a 50 pessoas especializadas em trabalho com adolescentes ou casas de acolhimento para dar acompanhamento a estas famílias. Vão ter um contacto telefónico para onde podem ligar 24 horas por dia, sempre que há uma questão. Não podemos entregar as crianças às famílias e sair de cena”, diz.

Na Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, dezenas de famílias recebem a primeira formação para acolherem crianças refugiadas que chegam e que chegarão da Ucrânia. 27 de Abril de 2022 Santa Casa da Misericórdia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

As duas campanhas de angariação de famílias de acolhimento que decorreram em anos anteriores em Portugal, tiveram muito menos adesão do que a atual, congratula-se Rui Godinho

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Apesar de nunca ter propriamente equacionado um cenário cinzento, o facto de existir a garantia de uma retaguarda deu ainda mais alento a Clara Ribeiro (nome fictício) para formalizar a candidatura e, temporariamente, transformar a família de 5 numa de 6. “A certa altura, com toda a gente à nossa volta a fazer-nos perguntas e com receios, cheguei a perguntar ao meu marido se estaríamos a ver mal a coisa, mas ele também me disse logo que não”, conta ao Observador, dias antes da visita domiciliária por parte dos técnicos da SCML. “Nunca pensei num cenário em que a minha vida se tornasse um caos, em que a criança que viesse fosse um terror para os meus filhos, mas também acredito nas ferramentas e nos assistentes sociais e nos psicólogos que vão acompanhar-nos ao longo do processo”, racionaliza Clara, 40 anos, funcionária de uma multinacional e mãe de três filhos com menos de 11 anos.

“Se calhar estou a ser naïf  em relação ao que tudo isto acarreta, mas já tivemos um primeiro contacto com a realidade na sessão de esclarecimento e não saí de lá a repensar algo que já tinha pensado. Acho que os meus filhos são muito felizes, acho que lhes consigo dar experiências boas, uma vida minimamente boa, com as condições possíveis. É muito bom pensar que posso fazer o mesmo a uma criança que está a sofrer imenso”, tenta explicar Clara, que já em agosto do ano passado, quando o regime talibã voltou a vigorar no Afeganistão, se tinha oferecido para acolher uma criança — e ficou destroçada quando não obteve qualquer resposta por parte do governo português.

Desta vez, o processo avançou. No momento de formalizar a candidatura havia três possibilidades: a família podia oferecer-se para receber menores não acompanhados de três faixas etárias; dos zero aos 5 anos, dos 5 aos 12, ou acima dos 12. “Só não nos candidatámos a receber crianças com mais de 12 anos; nem um bebé nos importamos de acolher. Só pode mesmo é ser um, porque moramos num T3. E, mesmo assim, terá de partilhar o quarto com um dos meus filhos”, explica. Tudo o resto são prós: o carro da família já leva sete pessoas e a rede familiar e de amigos é, mais do que sólida, fisicamente próxima.

Se calhar estou a ser naïf em relação ao que tudo isto acarreta, mas já tivemos um primeiro contacto com a realidade na sessão de esclarecimento e não saí de lá a repensar algo que já tinha pensado. Acho que os meus filhos são muito felizes, acho que lhes consigo dar experiências boas, uma vida minimamente boa, com as condições possíveis. É muito bom pensar que posso fazer o mesmo a uma criança que está a sofrer imenso”
Clara Ribeiro (nome fictício), família de acolhimento

À pergunta sobre se a prestação social devida às famílias de acolhimento pesou na decisão — legalmente, para além de poderem faltar ao trabalho para “dar assistência” à criança ou jovem por que são responsáveis e de, no caso dos bebés até um ano, terem direito a licença parental, as famílias de acolhimento recebem um subsídio, de pelo menos 526,57 euros por mês —, garante imediatamente que não. “Estávamos na reunião e olhámos um para o outro: ‘Olha, não sabia de nada disto!’. Deu para perceber, pelas reações, que a maioria das pessoas não tinha essa noção”, recorda a futura mãe de acolhimento.

Questionada sobre se não tem medo de que a guerra se prolongue ad aeternum e que a dada altura deixe de lhe fazer sentido manter este filho extra na família, Clara Ribeiro assegura que só o contrário é que já lhe passou pela cabeça: “Para mim, pode ficar indefinidamente, sem dúvida. O mais difícil é pensar no momento em que vai ter de se ir embora”.

Adoções proibidas e ajuda durante duas semanas, dois meses ou dois anos — o que mais afasta as famílias

Diz Rui Godinho, as duas questões que mais têm feito com que pessoas que entraram nas sessões de esclarecimento prontas para assinar de cruz saiam de lá com a certeza de que o acolhimento não será a sua praia são a incerteza relativamente ao tempo que este compromisso pode durar e a certeza sobre a forma como nunca poderá terminar — em adoção, figura proibida em tempo de guerra pela Convenção de Haia, para prevenir o tráfico de menores e a separação de famílias.

“Há pessoas que querem adotar. Mas não é possível adotar, portanto ficam logo de fora. E há pessoas que dizem que estão disponíveis durante seis meses. Mas a gente não sabe se são duas semanas, dois meses ou dois anos, portanto essas também ficam excluídas. Não vale a pena estar a avaliar pessoas que não estão preparadas para o que queremos e também não é bom para a família criar expectativas que depois não se cumprem”, diz o responsável da SCML. “Depois há questões mais práticas: há quem queira saber se podem viajar e levar a criança. Podem, mas têm de se articular com o tribunal. As crianças integram o agregado familiar mas só parte das responsabilidades parentais é que são delegadas nas famílias de acolhimento, os atos fundamentais têm de ser validados pelo tribunal. Até porque estas crianças tem pais, ou poderão ter pais”, ressalva.

Na Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, dezenas de famílias recebem a primeira formação para acolherem crianças refugiadas que chegam e que chegarão da Ucrânia. 27 de Abril de 2022 Santa Casa da Misericórdia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Na Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, dezenas de famílias recebem a primeira formação para acolherem crianças refugiadas que chegam e que chegarão da Ucrânia. 27 de Abril de 2022 Santa Casa da Misericórdia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Na Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, dezenas de famílias recebem a primeira formação para acolherem crianças refugiadas que chegam e que chegarão da Ucrânia. 27 de Abril de 2022 Santa Casa da Misericórdia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR Na Santa Casa da Misericórdia, em Lisboa, dezenas de famílias recebem a primeira formação para acolherem crianças refugiadas que chegam e que chegarão da Ucrânia. 27 de Abril de 2022 Santa Casa da Misericórdia, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Foram cerca de 30 os núcleos familiares que marcaram presença na sessão de formação da passada quarta-feira. Há 101 famílias inscritas

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

“Acredito que um terço das famílias desistem, quando percebem o que é que implica”, já tinha dito ao Observador, semanas antes, a advogada Sofia Marques, atual coordenadora provincial do Sistema de Proteção e Cuidado de Menores da Companhia de Jesus, que também se inscreveu como família de acolhimento e acredita que, em casos como estes, talvez pudesse ser aberta uma exceção, para permitir que candidatos à adoção no sistema nacional possam ser famílias de acolhimento, se bem que de crianças de idades diferentes daquelas por que estão “à espera”.

“Na lei do acolhimento familiar, que é a que estão a usar para acolher estas crianças (embora considerem que é um acolhimento excecional e com uma seleção mais rápida), as famílias selecionadas e candidatas à adoção não podem ser famílias de acolhimento”, contextualiza a advogada, mãe de seis filhos entre os 5 e os 18 anos. “Conheço muito bem o regime da adoção e as motivações que estão por trás e acho que é um mau-trato, havendo necessidade, que as famílias candidatas à adoção não sejam consideradas para acolher estes menores não acompanhados ucranianos. É profundamente injusto e baseado no princípio da desconfiança”, considera.

Tendo em conta as estimativas que apontam para que dois terços dos sete milhões e meio de crianças da Ucrânia tenham abandonado o país e as exigências inerentes ao acolhimento familiar — que vão bem para além da documentação requerida: registo criminal, declaração de rendimentos e atestado médico —, talvez o argumento possa fazer sentido. Sónia Morais Santos, autora do blogue Cocó na Fralda, fez recentemente uma publicação a contar a sua experiência: juntamente com o marido, inscreveu-se no site criado pelo governo para acolher uma criança ucraniana mas acabou por desistir após a sessão de esclarecimento promovida pela SCML.

No caso, o que assustou o casal, com quatro filhos, não foi a incerteza temporal, o facto de não saberem se iriam abrir as portas de casa a uma criança desconhecida durante “duas semanas, um ano, ou dois, ou três”. O que funcionou como dealbreaker foi a informação de que a adoção nunca seria uma hipótese em cima da mesa. Isto mesmo se viesse a apurar-se que os pais da criança tinham morrido na guerra e que não existiam quaisquer outros vínculos familiares a que regressar na Ucrânia.

“Começámos a imaginar uma criança agarrada às nossas pernas, em pranto, a não querer ir embora, e concluímos que não temos essa força (quem acolhe NUNCA pode adotar, está na lei)”, escreveu a ex-jornalista, numa publicação que desde então já teve mais de três mil reações. “Uma coisa seria devolvê-la à sua mãe ou pai, que nos faria a todos muito felizes. Seríamos os seus guardiões e, depois, ela voltava para o seu ninho, ficando nós para sempre na sua geografia afetiva. Agora… numa guerra, ninguém garante que ela volte para os pais. Aliás, ninguém garante que a Ucrânia se mantenha um país, no fim disto. São demasiadas incógnitas. E suspeito que demasiada dor.”

Da importância de devolver as crianças às famílias à relevância da comunicação não verbal

Ao longo das duas horas de formação, Rosário Farmhouse, presidente da CNPDPCJ, regressa várias vezes à mesma metáfora, não esconde nada, “acolher crianças é fantástico mas muito exigente”  — e não está a referir-se a ocupações domésticas nem lutas com o tradutor do Google (para ajudar nestes casos, explica, o Alto Comissariado para as Migrações tem um serviço de tradução telefónica, gratuito, basta ligar e agendar com um mediador intercultural). “Costumo dizer que o coração de quem acolhe tem de ser elástico, para esticar quando é para dar, mas também tem de ser capaz de encolher quando eles se vão embora. Às vezes pode ser difícil, o coração pode estar perro. Isto estica e encolhe e às vezes dói”, diz, enquanto leva as mãos ao peito. “Vocês serão famílias enquanto cá estão. A relação entre vocês pode durar para sempre, mas a família está lá e eles vão voltar para ela.”

Por muito que seja impossível garantir que todas as crianças têm família a que regressar no fim da guerra, é com esse princípio em mente que todo o processo está a ser operacionalizado. Isto em Portugal, mas também na Polónia e na Roménia, países onde se concentra o maior número de crianças refugiadas vindas da Ucrânia.

“Podem fotografar-se os miúdos com a roupa que tinham nos centros de acolhimento, não alterar cortes de cabelo, não deitar fora os bens ou as roupas que eles trazem, documentar marcas, cicatrizes, sinais, fazer gravações dos nomes que eles dizem… Faz-me uma confusão enorme que, para serem protegidos, estes miúdos tenham de se afastar e de correr o risco de depois não poderem reencontrar as famílias”
Sofia Marques, advogada

Depois de um primeiro momento de caos, que levou a UNICEF a divulgar um comunicado sobre o tráfico de crianças e em que fazia referência à questão da reunificação familiar, recorda a advogada Sofia Marques, as fronteiras destes países foram encerradas e crianças sem os respetivos pais ou responsáveis legais deixaram de poder sair. “Há uma série de coisas que se podem fazer, para garantir que estes miúdos não se perdem e que se preserva a sua identidade, o seu nome, a sua história, a sua vida, a sua família. Com os mais velhos não acontece, sabem perfeitamente o seu nome, os nomes dos pais, a morada, mas com os mais pequenos não é assim”, alerta a advogada, para depois começar a enumerar. “Podem fotografar-se os miúdos com a roupa que tinham nos centros de acolhimento, não alterar cortes de cabelo, não deitar fora os bens ou as roupas que eles trazem, documentar marcas, cicatrizes, sinais, fazer gravações dos nomes que eles dizem… Faz-me uma confusão enorme que, para serem protegidos, estes miúdos tenham de se afastar e de correr o risco de depois não poderem reencontrar as famílias.”

De acordo com Rui Godinho, este é um processo que está a ser feito, a nível documental, tanto na Polónia como na Roménia — que justifica, aliás, a demora na distribuição de menores refugiados pelos países da União Europeia dispostos a ajudar. “Os governos proibiram a saída de crianças para garantir que há um registo. Assim, quando os pais forem procurá-las, já sabem que o Vadim qualquer coisa veio para Portugal e está à responsabilidade do Estado através da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”, exemplifica. “Por isso é que está a demorar mais: para garantir que num cenário de guerra, onde não há documentos, não há notários, onde se perdem comunicações e há extravio de pessoas, não corremos o risco de desacoplar famílias involuntariamente.”

Porque o processo vai ser sempre delicado e complicado — na formação Rosário Farmhouse desfia um novelo que vai desde o garantido período inicial de rejeição ao medo de sirenes de bombeiros ou de aviões com publicidade que rasam as praias no verão, passando pelo desconhecimento quase geral do mar e dos perigos que ele encerra —, a task force está empenhada em não deixar nada ao acaso.

Tenho falado com muitas crianças ucranianas que estão cá e todas me dizem que ficam muito assustadas com os nossos gritos, mesmo que não estejamos a ralhar, mas a dizer-lhes para terem cuidado ou a gritar golo”
Rosário Farmhouse, presidente da CNPDPCJ

Um dos objetivos, explica Rui Godinho, é mandar equipas para os campos de refugiados, para conhecer de antemão as crianças e jovens que vão chegar a Portugal e fazer o matching com as famílias que mais se lhes adequem.

Quando o momento chegar, recorda Rosário Farmhouse, vai ser essencial desconstruir mitos — como o de que todos os ucranianos são loiros de olhos azuis, por exemplo —, preparar o espaço, consciencializar a família nuclear e a alargada, e seguir algumas dicas essenciais. “Tenho falado com muitas crianças ucranianas que estão cá e todas me dizem que ficam muito assustadas com os nossos gritos, mesmo que não estejamos a ralhar, mas a dizer-lhes para terem cuidado ou a gritar golo”, enumera a presidente da CNPDPCJ, para depois voltar a carregar na tecla da linguagem não verbal, que assume particular importância quando não existe uma linguagem comum. “Devem falar de forma tranquila, mostrando carinho e livros, com figuras, se for caso disso”, sugere, enfatizando com um episódio real a sensibilidade das crianças para lerem para lá das palavras.

Aconteceu com uma mãe de um colégio de Lisboa, que durante três anos manteve um programa de acolhimento familiar de crianças ucranianas, que vinham passar três semanas de férias a Portugal,  quando uma das mães, nitidamente refém do mito que diz que todos os nascidos naquele país têm cabelos e olhos claros, comentou com outra o seu desagrado perante a criança, morena, que lhe calhou hospedar. “A miúda tinha 7 anos e não dizia uma palavra de português, mas pressentiu aquilo, chorou, chorou e não quis ir com a família, dizia que não gostavam dela. Esteve horas naquilo, teve de vir uma tradutora e tudo. A linguagem não verbal é fundamental.”

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