É sexta-feira de manhã, a segunda do mês de maio, e celebra-se o Dia da Espiga que, em tempos, chegou a ser feriado, na Aldeia do Souto, na Covilhã, localidade habitualmente fustigada pelos incêndios no verão. Várias mulheres trazem flores e plantas. Há papoilas, malmequeres, margaridas, alecrim, para fazerem ramos. Juntam-se ao redor de uma mesa de madeira, compõem as flores, conversam entre elas, há música a sair por uma coluna, decora-se o espaço ar livre como se fosse uma festa popular num parque da aldeia. Esta é mais uma das atividades do MentALdeias, projeto da Mutualista Covilhanense, que cuida da saúde mental das populações afetadas pelos fogos da Serra da Estrela que em 2022 deixaram um rasto de destruição e marcas emocionais.
Dulce Cunha vem da aldeia vizinha de Vale Formoso, onde a carrinha da Mutualista Covilhanense a foi buscar. Não perde tempo, junta-se às colegas à volta da mesa com flores e plantas, arregaça as mangas para fazer um ramo ao gosto e jeito que tem. Tem 71 anos. Os incêndios de agosto de 2022 na Serra da Estrela deixaram-na de rastos. Não conseguiu ficar na aldeia, foi para a Covilhã num dos autocarros usados para retirar moradores de vários lugares onde as chamas ameaçava chegar.
“Estava a ver os pinheiros todos a arder, o vizinho a apagar o fogo, a ajudar o meu marido com mangueiras muito grandes, foi terrível.” Teve muito medo e não conseguiu ficar a assistir ao combate de homens e mulheres contra aquele monstro. “Uma coisa é ver na televisão, outra é tê-lo ao pé da porta.” Nesse fogo, as chamas consumiram quase metade da área de Vale Formoso e de Aldeia do Souto.
A cabeça de Dulce ressentiu-se. E de que maneira. “Apanhei uma depressão, estive muito mal por causa do fogo. Não me apetecia fazer nada, foi horrível.” Foi ficando melhor, a apatia a desaparecer aos poucos e graças ao MentALdeias tem apoio psicológico. Vai à ginástica, tem uma passadeira elétrica em casa, frequenta várias atividades. “Alivia a cabeça e não se pensa noutras coisas, no que não se deve pensar.”
Marieta Caramelo, 72 anos, nascida e criada em Aldeia do Souto, também viveu intensamente aquele dia do fogo em 2022. E não se esquece. “Tivemos muito medo, os bombeiros andaram além, não pararam, as casas escaparam. Aquela noite, passou-se na rua.” O verão de 2023 foi mais tranquilo, mas nunca se sabe porque o fogo é coisa imprevisível. “Não sabemos o que vem mais aí, é uma vida triste”, desabafa a senhora de cabelo liso e franja certinha pelo meio da testa — há quem, com graça, diga que é a Heidi daquelas bandas.
Veio ao Dia da Espiga, deixou o almoço adiantado, batatas já na panela, observa os ramos que estão a ser feitos sentada à sombra, enquanto na mesa se prepara a merenda partilhada, uma tradição de outros tempos, com bolos caseiros, sumo de pêssego natural espremido de manhã cedo. Marieta Caramelo veio distrair-se, conversar e conviver, deixar, por momentos, a vida de casa, os dias no campo. Às sextas-feiras, vai à ginástica do programa na Junta de Freguesia de Aldeia do Souto. “Ando mal da perna direita, a ver se me sinto melhor.”
Esse é um dos propósitos do MentALdeias – Apoio Psicossocial Pós-Incêndios, projeto desenhado pela Mutualista Covilhanense, financiado pelos Prémios Capacitar, do BPI e da Fundação “la Caixa”, para promover o bem-estar e a saúde mental junto das populações afetadas pelos violentos incêndios na Serra da Estrela em agosto de 2022. Está no terreno desde outubro do ano passado com consultas de psicologia, ginástica, encontros gastronómicos, atividades de animação como cantares tradicionais, manualidades e jogos recreativos em seis localidades: Orjais, Vale Formoso, Aldeia do Souto, Verdelhos, Sarzedo e Atalaia. Para todos os habitantes destas aldeias e para quem quiser aparecer.
Paula Pio, coordenadora do projeto MentALdeias e diretora do Gabinete de Inovação Social da Mutualista Covilhanense, psicóloga de formação, conta como o projeto surgiu. “Por um lado, através do bom conhecimento que temos do território, da medicação e patologias relacionadas com a saúde mental de pessoas acompanhadas pela nossa Unidade Móvel de Saúde. Por outro, pela sede que as pessoas tinham de alguém que as ouvisse e que lhes trouxesse novidades.”
A Mutualista sabia que depois de uma catástrofe faz-se o levantamento dos danos materiais e esquecem-se habitualmente os impactos emocionais. O MentALdeias nasce por isso para melhorar a saúde mental e física, acompanhar pessoas e famílias com necessidades de apoio psicológico, fazer rastreios cognitivos, ajudar a construir soluções para as dificuldades, criar momentos de convívio e socialização, fortalecer as redes de apoio e o sentimento de pertença à terra. A ideia era chegar a 150 pessoas num ano. Em seis meses, já envolveu 160. É gente mais velha que vive longe da cidade.
“Queremos dar continuidade ao projeto e alargá-lo a todo o concelho”, diz Paula Pio, que garante que o MentALdeias tem impacto a vários níveis, desde diminuir despesas de saúde a aumentar o bem-estar. “Se as pessoas estiverem bem, há outros aspetos das suas vidas que ficam bem.” “Estas pessoas estão muito longe de tudo, isoladas, não há igualdade de acesso a serviços.” Quando a Unidade Móvel de Saúde da Mutualista chega às aldeias, há sinos de igrejas que anunciam a sua chegada.
“O cérebro dança? Dança, e dança muito”
A estreia da atividade “O cérebro dança?” acontece na aldeia de Orjais. É uma dinâmica de grupo que, se correr bem, circulará pelas restantes aldeias do MentALdeias. O cenário está composto com vários habitantes, os mais velhos da aldeia, num espaço que é uma espécie de pátio multiusos, onde há mesas, bancos corridos e bastante curiosidade para ver o que vai acontecer. Carlos Gonçalves, de Orjais, no acordeão, e António Duarte, músico da Covilhã, à viola, estão a postos. Elisa Gomes, Mariana Pinto, Diana Azevedo e Catarina Oliveirinha, quatro alunas do curso de Psicologia da Universidade da Beira Interior, na Covilhã, dão uma ajuda na atividade.
A psicóloga Isabel Malaca começa a palestra com uma explicação: aquele momento que se segue “é uma atividade diferente no âmbito da saúde mental.” “A nossa saúde não está bem se a nossa cabeça não está bem”, alerta para logo depois sublinhar a importância da saúde mental no dia a dia, de andar bem consigo próprio e com os outros, que é normal haver períodos de maior tristeza. “Há momentos em que não nos apetece fazer muita coisa, andamos esmorecidos, desapontados, chateados, já custa ir à horta, fazer o jardim, e acabamos por desistir.” A palestra não acaba aqui, é necessário ter consciência das emoções e dos sentimentos, perceber quando e porquê não se está bem. Isabel Malaca volta ao título da atividade. “O cérebro dança? O cérebro é o comandante do nosso corpo, dos nossos sentimentos. Sim, o cérebro dança e dança muito.”
A música está então prestes a começar. “A dança, em termos físicos e mentais, traz-nos boa disposição, bem-estar, alegria”, diz Isabel Malaca à plateia que a escuta atentamente. E deixa um conselho: “Vale a pena ir ao bailarico, nem que seja de bengala. Ter saúde mental é descobrir algumas coisas para viver melhor e reaprender a fazer as coisas de outra forma.” E começa a música. Logo que os músicos de serviço começam a tocar algumas modinhas tradicionais, como o Vira das Palmas, senhoras e senhoras saltam para o pátio e dançam numa roda.
O mais velho é Américo Caetano. Tem 94 anos, gosta de música e de dançar. Nota-se bem, está animado, ainda de manhã andou a regar o quintal, se está sol há que aproveitar. Agora está ali a rir, a dançar. Não foi assim nos incêndios de 2022, o fogo não chegou a sua casa, mas viu a destruição começar lá no alto. “Foi uma tristeza, a serra ficou sem nada com os fogos.”
Helena Seabra, de 73 anos, deu uma ajuda na preparação da atividade em Orjais. Tratou do que era preciso com a junta de freguesia, combinou a partilha de comes e bebes com os moradores que trouxeram enchidos, queijo da serra, pão, sumos, vinho. Está satisfeita como tudo está a decorrer. “Então não é bom? É muito bom, de outra forma as pessoas não se juntavam”, diz. Mas as marcas dos incêndios de 2022 não desapareceram. “Foi horrível, chegou quase à minha porta, estava perto, foi terrível, ainda tenho fotografias”, comenta.
José Rodrigues, de 76 anos, não vai dançar, foi operado à coluna, assiste à animação sentado, ouve a conversa e procura no telemóvel imagens desse 16 de agosto de 2022 que consumiu 28 mil hectares do Parque Natural da Serra da Estrela, 35 milhões de euros de prejuízo. Em Orjais, o incêndio destruiu 38% da área da freguesia. Ao todo foram dez por cento da área do concelho da Covilhã.
“O fogo esteve a 15 metros da minha casa, a aldeia é muito unida, juntou-se com ramos verdes para apagar as chamas, uma máquina abriu caminho para não passar mais”, lembra o senhor José que agora anda preocupado com as terras abandonadas, com as ervas e as silvas que crescem e que já atingem uma altura considerável. Anda inquieto que tudo se repita, medo de que o fogo volte.
Falhas de memória, processos de luto, a entrada num lar
António José Vaz tem 77 anos e vai às consultas de psicologia na Junta de Freguesia de Aldeia do Souto às sextas-feiras. Depois da conversa com a psicóloga Isabel Malaca, experimenta uma atividade diferente: coloca uns óculos de realidade virtual e, num instante, está no Santuário do Bom Jesus em Braga a recordar o passeio que lá fez há mais de dez anos numa excursão que saiu da aldeia. A psicóloga explica o que fazer, tem de se movimentar num círculo azul, e aproveitar uma visita sem sair do sítio, subir para ver a vista lá de cima. Guarda boas recordações desse dia, a camioneta deixou os passageiros no topo do santuário. “Aqui é subir as escadas sem cansar as pernas. É bonito, tal e qual quando lá fui”, conta. Não tem certeza de que possa voltar a Braga. “Nunca estamos velhos para realizarmos os nossos sonhos”, diz-lhe Isabel Malaca.
António José Vaz agradece as consultas de psicologia. O historial familiar de doenças e demências também ajuda. “Estas consultas têm ajudado, não me encontro lá muito bem, um tormento na cabeça”, admite. Os incêndios fazem parte da história das aldeias da serra, os mais recentes, de 2022, deixaram feridas. António lembra-se de mais um, em 2000, era o dia da festa do carneiro na Aldeia do Souto, as chamas cortaram a estrada. “Aquilo até metia medo, foi muito mau.”
As consultas de psicologia do MentALdeias são agendadas e acontecem nas juntas de freguesia das aldeias ou na sede da Mutualista Covilhanense. Como as pessoas quiserem. “Os vários incêndios estão presentes nas narrativas e nas histórias de vida destas pessoas, descrevem-nos com detalhe”, revela a psicóloga Isabel Malaca, que dá as consultas. Há outros assuntos. “Dificuldades de memória, esquecem-se de coisas, situações de luto, conflitos familiares, a entrada no lar. Falam, desabafam, precisam de ajuda que lhes dá alento.” As conversas giram em torno das preocupações e tormentos de quem procura apoio psicológico. “Trabalhamos a partir do que a pessoa nos diz.”
Até ao momento, foram feitas 112 consultas de psicologia que começaram com sessões em grupo, uma forma de colocar as pessoas mais à vontade. Em janeiro deste ano, iniciaram as consultas individuais. A equipa do projeto é constituída por seis pessoas: uma psicóloga, uma profissional de atividade física, uma animadora sociocultural, uma socióloga, uma assistente social, além da coordenadora. O MentALdeias tem como parceiros quatro juntas de freguesia, o Centro de Dia do Sarzedo e o Grupo Desportivo Estrelas da Atalaia.
As atividades de matriz psicossocial e comunitária, com o intuito de fortalecer a capacidade de resiliência e ultrapassar os traumas de quem foi afetado pelos incêndios, têm também partilhas de histórias e de tradições. Paula Pio fala dos Cadernos d’Aldeia. “Estamos a fazer um levantamento etnográfico emocional, as histórias, os namoros, os casamentos, os primeiros beijos, a apanhar as expressões, recolher tradições e costumes em cada uma das aldeias.” Mais uma forma de reforçar identidade de cada comunidade. Cada aldeia terá um caderno feito com textos e fotografias, memórias e recordações.
Em Orjais, depois da palestra, da música, do bailarino e da merenda, os participantes levam para casa um pequeno vaso que deve ser regado para que as sementes germinem. Em cima da terra, está um pequeno cartão com o nome do projeto e uma frase: “Estar bem consigo, também está nas suas mãos! Cuide da sua saúde mental, para evitar que se torne doença!”
Maria Olímpia Canário veste de preto dos pés à cabeça, tem 89 anos, é das senhoras mais assíduas nas atividades do MentALdeias. Vem ao Dia da Espiga na sua terra, Aldeia do Souto, vai à ginástica, agradece estas ideias. “Tiveram uma boa lembrança dos velhos”, repara. A aldeia tem mingado de pessoas. “Já não há quase ninguém aqui, antes tinha muita gente, muita alegria.” Faz, como pode, exercício físico uma vez por semana e aprecia a animação que o projeto trouxe. No dia do incêndio, estava em casa, perto da sua casa, aflita com o que se estava a passar, se tudo iria ficar bem. As marcas ficam e o medo de que tudo se repita não sai da cabeça.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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