Texto e fotografias dos enviados especiais do Observador à Ucrânia, Cátia Bruno e João Porfírio
Karim Amasary tem passado as últimas duas noites a dormir na rua, à porta da estação ferroviária de Lviv. “Está muito frio e é muito cansativo”, admite, com um suspiro, ao Observador. Estudante universitário de Engenharia, abandonou Kharkiv com um colega há três dias, quando a chuva de artilharia e bombas do exército russo se intensificou. “Só quero ir para um sítio seguro, é tudo. Não gosto nada do que se está a passar na Ucrânia neste momento, não defendo isto minimamente, vivi aqui muito tempo. Só quero que tudo fique bem.”
Karim e o amigo não são prioritários para embarcar para a Polónia e também não têm onde dormir porque os abrigos para refugiados na cidade de Lviv estão cheios de crianças e das suas mães. A estação de Lviv já tem toda uma estrutura montada à volta, com cuidados médicos da Cruz Vermelha, chá e bolos quentes distribuídos aos refugiados e muita gente a aquecer-se em torno de fogueiras improvisadas em bidões. Por enquanto, estes dois egípcios fazem questão de pagar as suas próprias refeições, para não sobrecarregarem a estrutura de apoio. Também pagariam por um quarto, mas sítio onde dormir não há — a cidade está cheia.
“Hoje já são mais de nove horas à espera e nada. Dizem-nos que não há nenhum comboio onde possamos entrar já”, partilha o estudante que está a tentar partir para a Roménia, onde a embaixada egípcia está pronta para os colocar num voo de repatriamento de Bucareste para o Cairo. Chegar até lá, porém, continua a ser difícil
É esta a situação para a maioria dos homens estrangeiros que viajam sozinhos. Alguns falam em racismo, denunciando casos de guardas fronteiriços que não os deixam passar ou que os enviam para o fim da fila. Karim diz que também o sentiu ao longo destes dias. “Não posso dizer que não tenha encontrado isso”, confirma. Mas sublinha que compreende a situação delicada em que a Ucrânia está e não quer apontar dedos: “Nos geral, os ucranianos são muito atenciosos e tentam ajudar-nos ao máximo.”
Voluntários organizam partidas e tentam estancar o pânico
É certo que muitos destes estrangeiros acabam por ser autorizados a partir, mas enfrentam algumas dificuldades até conseguirem sair do país. Em primeiro lugar, porque a regra oficial é a de dar sempre prioridade a mulheres e crianças, o que os deixa de imediato em desvantagem. Em segundo, o facto de serem muitas vezes homens jovens não joga a seu favor, num país onde os ucranianos da mesma idade estão proibidos de sair do país devido à lei marcial. No meio de situações tensas, entre milhares de pessoas desesperadas, não surpreende que haja momentos em que o racismo de alguns venha ao de cima.
O voluntário Taras Buhay, porém, garante que oficialmente tudo está previsto para que estas pessoas não sejam prejudicadas. “Há poucos homens, mas quando aparecem nós explicamos que não vão poder entrar a bordo do comboio. Se forem ucranianos com menos de 60 anos, não podem embarcar”, começa por explicar este antigo dono de uma empresa de renovações agora voluntário na estação, controlando a presença de quem está na plataforma para embarcar. “Mas estrangeiros é diferente. Ainda hoje tivemos o caso de um angolano casado com uma ucraniana e ele pôde passar, porque não é cidadão ucraniano”, explica.
A situação na estação de Lviv está muito diferente daquela que o Observador testemunhou há alguns dias. Inicialmente havia algum desespero entre os que tentavam partir, mas todos conseguiam embarcar. Dois dias depois, a estação tinha sido dominada pelo caos. Agora, as autoridades ucranianas intervieram e tentaram criar alguma ordem: a fila forma-se no piso inferior da estação e só passa quem mostrar documentos que comprovem que pode embarcar.
Para a plataforma só sobem os que vão apanhar aquele comboio, já contados. Aí está tudo calmo; mas lá em baixo, onde centenas se acumulam numa fila, continua a haver tensão. Mães com vários filhos, pessoas de bengala e estrangeiros acumulam-se num espaço apertado. Comem sopa quente em pé, acotovelando-se. No chão já se acumula o lixo. A prioridade de voluntários como Taras é sempre as mães e crianças: “É tudo um pouco caótico, porque as pessoas estão em pânico. A nossa principal tarefa é travar este pânico”, diz. “Se virmos uma mulher com muitos filhos, vamos ter com ela e levamos-lhe comida. As pessoas têm fome, mas estão tão em choque que nem se apercebem.”
Quanto aos estrangeiros, acabam por embarcar, mas ao fim de muito tempo de espera. O Observador não assistiu à partida de nenhum comboio ao longo daquela tarde, mas sabe que primeiro sobem a bordo apenas mulheres e crianças e que mais tarde, em número limitado, alguns estrangeiros são colocados na última carruagem.
“Senti algum racismo neste processo todo”. Nam, o vietnamita que tenta proteger a família
Foi isso que aconteceu a Nam, estudante de Matemática com 20 anos, na viagem de Kharkiv para Lviv. Acompanhado da sua família, que há dois anos se mudou para a Ucrânia quando ele foi aceite na Universidade, o vietnamita enfrentou uma odisseia para chegar a esta cidade. “Nem sei como conseguimos”, desabafa.
“A viagem foi muito difícil, é muita gente a tentar chegar aqui. Chegámos hoje”, conta. Garante que só conseguiu embarcar graças ao apoio da comunidade vietnamita na Ucrânia, que agilizou o processo para que Nam, a mãe, a irmã e sobrinhos pudessem subir a bordo em Kharkiv. Agora, esperam um autocarro que os levará juntamente com outros cidadãos vietnamitas a Varsóvia.
“Senti algum racismo neste processo todo”, afirma Nam antes sequer de lhe perguntarmos. “Já o sentia antes, em Kharkiv, mas compreendo que são culturas diferentes. Agora também senti isso em todo o processo de embarcar e ao longo da viagem, no comboio.” Nam compreende a regra de dar prioridade a mulheres e crianças, mas sente que esse pode ter sido um argumento invocado para o deixar a si e à sua família mais e mais para trás. “Não sei se é racismo ou se são só as regras. Mas já aqui estamos, pouco importa. Agora quero é sair daqui e por a minha família em segurança.”
Já falta pouco para isso. Os autocarros organizados pela comunidade vietnamita já esperam por Nam e por dezenas de outros compatriotas, identificados com a bandeira do respetivo país. A família pega nas suas malas e sacos, pronta para subir em direção à Polónia. Pouco depois, Karim e o seu amigo passam pelo mesmo sítio, em passo lento, sem destino. Vão enfrentar mais uma noite na rua, à espera de um comboio que não sabem quando chegará.