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No caso de "Tiago", foi uma agência imobiliária a "tratar" de todo o processo, graças a "um contacto" no banco.

Corbis via Getty Images

No caso de "Tiago", foi uma agência imobiliária a "tratar" de todo o processo, graças a "um contacto" no banco.

Corbis via Getty Images

Não tem "entrada"? Não tem problema. Como os bancos fintam os limites ao endividamento na compra de casa

Não tem "entrada"? Não tem problema: contornam-se os limites do Banco de Portugal. Como acontece? Imobiliárias tratam, bancos propõem e clientes assinam. Com juros a subir, risco dos créditos aumenta.

A escritura foi marcada para as 10h30, pelo que Tiago tinha de passar no banco antes, logo pela manhãzinha, “para assinar os papéis”. Eram os “papéis” do crédito à habitação mas, também, os do crédito ao consumo que o mesmo banco lhe ia dar para mascarar o facto de não ter poupanças suficientes para a “entrada inicial” mínima (obrigatória) para a casa que ia comprar. As duas operações tinham de ser feitas no mesmo dia, para fintar o Banco de Portugal.

O crédito ao consumo de que Tiago precisava era de 6.000 euros, que o banco financiou a troco de uma pesada taxa de juro de 9% (mais Euribor). “Nunca cheguei a ver aquele dinheiro na conta“, recorda o jovem. Assim que o banco lho emprestou, o dinheiro foi imediatamente consumido como entrada inicial – ou seja, aquele capital (que, na realidade, não era mais do que outra dívida) foi usado para fingir que o cliente tinha o mínimo de fundos próprios que o supervisor bancário exige que um cliente tenha, quando se tenta comprar uma casa a crédito.

O caso de Tiago (nome fictício) é ilustrativo de uma realidade que o Observador detetou, logo em 2018, numa série de “clientes-mistério” feitos em sucursais bancárias. Nessa altura, ao balcão de uma sucursal em Lisboa, uma funcionária disse, sem saber que estava a falar com um jornalista, que “em 90% dos casos”, os bancos estavam a dar créditos pessoais de vários milhares de euros para ajudar quem tinha poucos capitais próprios. Era a única forma, dizia, de as pessoas conseguirem comprar casa, contornando os limites que o Banco de Portugal tinha acabado de reforçar.

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A chamada “recomendação macroprudencial”, anunciada pelo Banco de Portugal no início de 2018, limitou a 90% o financiamento que um banco pode dar ao cliente, em relação ao valor da casa. Isto significa que o cliente tem de ter na sua posse, para dar como “entrada”, pelo menos 10% (além de todos os custos que normalmente estão associados à compra de casa, como o pagamento da escritura e dos impostos).

Para muitos portugueses, essa é uma poupança difícil de acumular. Ainda assim, apesar de ter de pagar rendas mensais no pequeno apartamento onde vivia com a namorada, Tiago conseguiu juntar uma poupança de alguns milhares de euros – uma quantia que, pelos seus cálculos, talvez chegasse para dar entrada para uma casa no valor de 90 mil euros. No máximo.

Foi com esse número na cabeça que o jovem entrou pela porta de uma agência imobiliária, uma das mais ativas no mercado nacional. Porém, quando Tiago saiu pela mesma porta, alguns minutos depois, já o tinham posto a sonhar um pouco mais alto.

A agente imobiliária disse para não me preocupar, para procurar a casa que queria e, caso ela estivesse à venda por 100 ou 105 mil euros, não haveria problema“, recorda o jovem, na altura com 26 anos.

“Não haveria problema” porque, como Tiago se apercebeu mais tarde, a agente imobiliária tinha “um contacto” no banco que ficava, basicamente, na porta ao lado da imobiliária. “Encontrei uma casa de 105 mil euros e da imobiliária disseram, mais uma vez, que iam tratar de tudo e que não precisava de me preocupar”, conta.

[Ouça aqui a análise do jornalista Edgar Caetano]

Crédito pessoal para comprar casa “pode correr muito mal”

Alguns dias depois, já estava a ser chamado à agência para se avançar com o processo: “ela tinha dito que ia tratar com os bancos e apresentar-me as melhores propostas – mas nunca me apresentou mais do que uma, aquela que acabei por aceitar”. E aquela que implicava reforçar a “entrada” com um crédito ao consumo.

"A funcionária da agência imobiliária tinha dito que ia tratar com os bancos e apresentar-me as melhores propostas – mas nunca me apresentou mais do que uma, aquela que acabei por aceitar"
Tiago, nome fictício de cliente que obteve um crédito pessoal no mesmo banco que lhe deu o crédito à habitação

A instituição bancária onde Tiago fez o seu crédito à habitação (e, também, o crédito ao consumo) é um dos principais bancos a operar em Portugal. E é um dos que, questionados oficialmente pelo Observador, garantem que não têm a prática de conceder estes créditos duplos, uma violação da “recomendação” do Banco de Portugal.

Bancos garantem que não dão créditos pessoais para ajudar na entrada

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“O Millennium BCP não concede crédito pessoal para os efeitos referidos”, refere fonte oficial do banco, questionada sobre se o banco concede créditos pessoais para ajudar com a entrada no crédito à habitação. No mesmo sentido, fonte do BPI garante que “as políticas do Banco BPI não consideram esta possibilidade”.

Também a Caixa Geral de Depósitos garante que “não foram ou são concedidos créditos pessoais para financiar a parte do investimento que o regulador recomenda que seja coberta por capitais próprios”. E o Novo Banco afirma que “não tem como prática a concessão de créditos aos consumo para ajudar os clientes a ter a entrada inicial necessária”.

E como é que se tenta garantir que o cliente não obtém crédito numa segunda instituição? O Novo Banco “certifica-se utilizando dois instrumentos genéricos: Consulta Central de Riscos do Banco de Portugal e, em casos relevantes, requer evidência de existência de capitais próprios para avançar com os processos”.

Fonte oficial do Santander Portugal não respondeu mas em 2018 – quando uma funcionária sua disse ao “cliente-mistério” do Observador que em 90% dos créditos o banco dava, também, um crédito ao consumo – o banco garantiu que isso era “um disparate”.

A realidade no terreno, porém, é um pouco diferente, como demonstra o caso de Joana, outra jovem que pouco tempo antes da pandemia de Covid-19 fez “um périplo” por uma mão-cheia de sucursais bancárias. “Em todas, exceto numa, sugeriram pedir créditos [ao consumo] em outras instituições, para contornar a supervisão“, recorda.

Quando começou a pandemia, Joana e o namorado adiaram os planos de comprar casa, mas ficaram com uma ideia clara: “se tivéssemos avançado e se não tivéssemos o dinheiro, esse teria sido o caminho” – ou seja, dirigir-se a uma instituição especializada em crédito (que não o mesmo banco) e pedir alguns milhares de euros de empréstimo pessoal, para dar como entrada para a casa. E, depois, ficar a pagar dois créditos pela mesma coisa, o que poderia tornar-se insuportável no contexto de subida rápida das taxas de juro que se verifica nos últimos meses.

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“Se corre mal, a imobiliária é a última a ter problemas. Já está noutra

Quando não é o mesmo banco a dar (também) o segundo crédito, como aconteceu no caso de Tiago, abundam em fóruns na Internet dicas sobre quais são os timings ideais para se pedir o crédito pessoal noutra instituição, sem que isso chegue ao conhecimento do banco que financia a compra de casa – ou, pelo menos, de forma a que o banco se aperceba desse segundo crédito só quando o negócio já está feito.

Uma nova ronda de “clientes-mistério” feita pelo Observador, nas últimas semanas, levou a crer que a malha se tornou um pouco mais apertada nos últimos anos. Porém, uma funcionária do BPI de uma agência de Lisboa disse, sem saber que estava a falar com um jornalista, que ela própria nunca tinha feito mas sabia de outros bancos que participavam neste tipo de operações.

Normalmente são as imobiliárias que falam nisso aos clientes“, diz a bancária do BPI: “ainda mais com as casas cada vez mais caras, é uma tentação muito grande incentivar os clientes a fazer coisas destas para ‘chegar lá“.

“Claro que, depois, se corre mal, a imobiliária é a última a ter problemas com isso: primeiro é o cliente que fica em dificuldades e depois é o banco que não recebe as prestações: a imobiliária já está noutra“, acrescenta a mesma funcionária.

"Depois, se corre mal, a imobiliária é a última a ter problemas com isso: primeiro é o cliente que fica em dificuldades e depois é o banco que não recebe as prestações: a imobiliária já está noutra"
Funcionária de um BPI em Lisboa

Noutra ocasião, numa sucursal do Millennium BCP na “linha” de Cascais, o cliente-mistério do Observador também confirmou que esta não é uma realidade estranha a quem passa os seus dias numa sucursal bancária.

Um funcionário do BCP garantiu, perante um “cliente” que acabara de conhecer, que nunca deu dois créditos ao mesmo cliente, para contornar a supervisão e, assim, comprar casa com financiamento a 100% ou perto disso. Mas disse “saber de colegas” (sem ser claro se são colegas do mesmo banco ou colegas de profissão) a quem já tinha acontecido estar a avançar com processos de crédito à habitação e, “de repente, aparecem uns milhares de euros na conta do cliente, transferidos de outra conta”.

“Não há forma [imediata] de saber se aquilo veio de um crédito pessoal feito numa financeira ou se a pessoa foi buscar dinheiro a outro sítio, algum familiar que lhe emprestou, ou deu…”, afirmou.

Se o cliente está a tentar enganar o banco que lhe dá o crédito à habitação, só passado um mês é que o segundo critério aparece na Central de Responsabilidades de Crédito (CRC) do Banco de Portugal. Ou seja, quando o primeiro banco se apercebe de que, afinal, aquele cliente tinha feito outro crédito noutra instituição, já está feita a escritura.

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Questionado pelo Observador, o Banco de Portugal reconhece que este tipo de esquemas existe, mas considera que não estão a ser usados “de forma generalizada”.

“Tendo por base os dados da Central de Responsabilidades de Crédito (CRC), a evidência disponível relativamente à potencial contratação de crédito ao consumo como forma de contornar alguns dos limites definidos na Recomendação, seja na mesma instituição de crédito, seja recorrendo a instituições de crédito diferentes, aparenta ter reduzida materialidade não havendo evidência quantificada, através dos instrumentos de reporte em vigor, de estar a ser utilizada de forma generalizada“, diz fonte oficial do Banco de Portugal.

Ainda assim, “o Banco de Portugal, enquanto Autoridade Macroprudencial, continuará a monitorizar o cumprimento da recomendação e poderá adotar medidas adicionais sempre que verificar situações que possam colocar em causa o seu cumprimento e a sua eficácia ou eventuais distorções de concorrência entre instituições”.

"O Banco de Portugal, enquanto Autoridade Macroprudencial, continuará a monitorizar o cumprimento da recomendação e poderá adotar medidas adicionais."
Fonte oficial do Banco de Portugal

Este tema ganha importância numa altura em que os indexantes de crédito (taxas Euribor) estão a subir de forma rápida – o que pode colocar em maus lençóis quem está a pagar dois empréstimos incluindo um crédito pessoal, com taxas mais elevadas. “Felizmente”, no caso de Tiago, “correu bem” e o jovem já amortizou completamente o crédito ao consumo que pagava juro de 9%.

Com as taxas Euribor em níveis mínimos, nos últimos anos, Tiago acabou por conseguir não só cumprir os compromissos que tinha assumido como, também, acumular poupança suficiente para saldar aquele crédito ao consumo antes do tempo – por uma questão de “paz de espírito”. Mas não só: nesta fase, juntando a Euribor ao spread de 9%, já estaria a pagar juros de cerca de 11,5% pelo crédito ao consumo – o que acresceria ao que está a pagar a mais nos juros do crédito à habitação (cuja prestação já subiu largas dezenas de euros nos últimos meses).

Porém, no caso de Tiago, mesmo tendo assumido dois créditos em simultâneo, o valor total das prestações não era excessivo para a sua “taxa de esforço” e para a capacidade de obter rendimentos adicionais, através de trabalhos freelance. Com alguma gestão financeira sensata, “correu tudo bem e penso que acabou por ser uma coisa boa, porque se não fosse aquele crédito não tinha conseguido comprar a casa“, diz Tiago: “escusava era de ter andado uns anos a correr riscos e a pagar juros de 9%”.

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