Os estrangulamentos que atingiram o transporte marítimo de mercadorias no rescaldo da pandemia estavam a estabilizar, ainda que com preços de frete muito superiores aos que existiam antes. Mas a situação de guerra e a escalada dos preços e energia e matérias-primas vão ter um impacto no setor, admite o presidente da Administração do Porto de Sines. Em entrevista ao Observador, José Luís Cacho diz que o efeito destes fenómenos no comércio marítimo só se vê ao retardador, é preciso esperar para ver, mas considera que este não é o momento de relançar o concurso para novo terminal de contentores, cujas condições foram revistas recentemente pelo Governo. É um investimento a longo prazo e o privado tem de sentir condições de segurança para avançar com esse investimento.
Já na energia, a Ibéria tem excesso de capacidade de receção de gás natural liquefeito (GNL) e o uso do Porto de Sines para levar gás à Europa é uma ambição já com alguns anos, mas que esbarrou no desinteresse europeu em construir uma interconexão reforçada entre Espanha e França. Com a necessidade de substituir o gás russo, há abertura para ligar a ilha ibérica à Europa. Neste cenário, Sines poderá facilmente aumentar a sua capacidade de receber e armazenar GNL, mas é um investimento que só faz sentido avançar se a interligação a França também avançar, refere o presidente do Porto de Sines. José Luís Cacho adianta que um novo terminal obrigaria também a reforçar a capacidade em alguns troços do gasoduto.
O que é que impede o Porto de Sines, neste momento, de ser uma das portas de entrada do gás natural na Europa?
Houve uma conversa há cerca de dois ou três anos, aquando da visita do secretário de Estado dos EUA sobre o interesse americano em abastecer mais a Europa com gás natural e sobre a possibilidade de Sines ser uma porta de entrada desse gás natural. A questão penso que foi analisada pela União Europeia até porque a Península Ibérica está ligada ao gasoduto, que vem, através do Mediterrâneo, da Argélia, e onde estão os portos espanhóis, em especial Huelva, Bilbao, os portos mediterrânicos. Temos capacidade para injetar gás nesse pipeline para abastecer a Europa através de França. Mas era preciso um conjunto de investimentos de aumento da capacidade desse pipeline e para ligação a França. Mas a União Europeia entendeu, na altura, que os investimentos eram significativos e que não se justificava fazê-los.
Foi a União Europeia ou foi a França que não quis?
O regulador francês e penso que o regulador espanhol, na altura, pronunciaram-se sobre o tema. Mas hoje, e face aos últimos acontecimentos, surgiu novamente a possibilidade de a Península Ibérica poder contribuir com uma quota que, estima-se, podia ser da ordem dos 20%, para os consumos de gás natural de toda a UE, com o investimento na interconexão realizado. E na qual Sines naturalmente teria o seu contributo para esse processo.
A Península Ibérica tem seis terminais. Como é que Sines se coloca aqui em termos competitivos face aos outros terminais espanhóis que têm bastante capacidade?
Não estou a fazer comparação com os outros portos. Temos um terminal com uma capacidade de armazenagem que é gerido pela REN (Redes Energéticas Nacionais). E o consumo nacional cada vez tem vindo a depender menos da Argélia e mais de via marítima a partir de Sines. Diria que cerca de 90% a 100% de todo o gás natural que se consome em Portugal vem de Sines. Este terminal está a operar a cerca de 70% a 80% da sua capacidade. A REN, por vezes, importa e tem gás armazenado que depois é reexportado para outros países. Até chegámos a exportar gás para o Japão. Se esse projeto for em frente, se a UE entender que os portos que a Península Ibérica tem podem também abastecer a Europa de gás natural, naturalmente que aí temos de ponderar a possibilidade de termos capacidade para expandir o que fazemos hoje, com a construção de um novo terminal, por exemplo, com a construção de novos tanques de armazenagem. Temos essa possibilidade de poder crescer no gás natural.
Esse projeto de expansão só fará sentido se avançar a ligação entre Espanha e França, se for reforçada.
O projeto de expansão está associado a mais necessidades de crescimento de mercado. Naturalmente que se isso acontecesse, haveria necessidade de reforçarmos a nossa capacidade de importar, e teríamos de criar uma nova opção, naturalmente que sim, que era esse de facto o contexto. Um terminal destes constrói-se num ano. É uma infraestrutura que não é relativamente grande e o investimento também não é significativo. Mas depois há toda uma infraestrutura a montante, designadamente a questão da armazenagem e do pipeline para isso ser possível. Não podemos esquecer, e é importante, que é preciso fazer um conjunto de investimentos no pipeline ibérico, tanto em Portugal como em Espanha, e também a ligação a França, que demora o seu tempo. A componente marítima é a questão menos importante deste processo e a mais fácil de resolver.
Seria necessário intervir no gasoduto ibérico, no sentido de reforçar a capacidade?
O pipeline está dimensionado para abastecer o mercado ibérico. Naturalmente que obrigava a um conjunto de investimentos que já estão até analisados em alguns troços, e designadamente a ligação a França. Penso que tem de ser uma decisão europeia, no seu todo e também do Governo português. É uma decisão que não depende de nós. Do ponto de vista de Sines, caso avancem esses investimentos, temos condições de alimentar esse mercado e criar condições para isso, como compete na perspetiva do presidente do Porto de Sines.
Desde que começaram as sanções à energia russa é possível dar uma ideia de como é que a geografia dos navios que chegam a Sines mudou, ou seja, deixaram de comprar à Rússia, passaram a comprar a outros fornecedores?
As cargas de gás da Rússia para Sines aconteceu recentemente, num ano ou dois, que penso que tem a ver com flutuações dos preços no mercado e nunca ultrapassou os 10% do gás natural em Sines. Pontualmente houve duas ou três situações que aconteceram antes do início do conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Demora cerca de um mês a um navio chegar com o gás, e na altura da descarga já tinha, de facto, acontecido o conflito. Mas não está prevista mais nenhuma carga russa. O impacto é reduzido porque era marginal o gás da Rússia em Sines.
Mas o petróleo e sobretudo o VGO (o gasóleo de vácuo) que a Petrogal importa não era marginal…
Não tenho conhecimento ao certo desses números. O que posso dizer é que a Galp importa crude que refina e usa os gasóleos no mercado. Exporta também produtos refinados. Importação direta de gasóleo da Rússia não tenho conhecimento. Penso que houve situações pontuais, mas não me parece muito relevante dentro do negócio da Galp. O mercado russo de crude ou de produtos petrolíferos com Sines foi sempre um mercado marginal.
Preço dos contentores vai estabilizar num preço significativamente superior
Antes da invasão à Ucrânia falava-se muito da falta de chips e de matérias primas e também nos bloqueios da logística e da falta de contentores. Essa situação ainda se mantém ou já se normalizou um bocadinho?
Tem havido uma tendência de normalização dos problemas que houve no shipping (marinha mercante) e em portos, nomeadamente nos portos da China com questões relacionadas ao Covid. Mas recentemente até está a haver outra vez alguns portos chineses com alguns problemas relacionados com a pandemia. E houve um conjunto de outros portos, nomeadamente nos EUA, que tiveram um problema complicado nos tempos de trânsito.
Havia filas de navios à espera de descarregar em alguns portos norte-americanos…
Houve aqui um conjunto de fatores que contribuíram. Houve também armadores que retiraram navios das linhas para otimizar os navios — portanto houve um ajustamento e tudo isso causou atrasos significativos e o aumento de preços dos contentores muito significativo. Chegaram a ser mais de 15 vezes o preço que era praticado antes. Um contentor normal da Ásia para Sines devia andar na casa dos 1.500/2.000 dólares no máximo e chegou a atingir preços entre os 15 e 17 mil dólares por contentor. Estava a verificar-se alguma estabilização, quer nos tempos, quer nos preços (e até alguma redução de preço), mas com o efeito da guerra não se percebe como é que tudo isto vai evoluir.
Até porque o aumento do combustível também agora vai ter efeito.
Exatamente. Está a haver um conjunto de fenómenos e nos portos estas questões só se veem mais ao retardador. Só daqui a um mês é que se começa a perceber qual vai ser a evolução correta. Neste momento não é possível estabelecer uma resposta com alguma exatidão sobre aquilo que pode acontecer a médio prazo, sendo certo que há um conjunto de fenómenos que naturalmente sentimos que podem ter algum impacto a médio e longo prazo.
Nomeadamente na subida dos preços dos produtos que são transportados?
O preço dos contentores tem tendência para estabilizar num nível naturalmente superior àquele que era antes da pandemia. E será um preço significativamente superior. Agora, com a questão da guerra e dos combustíveis, temos de perceber como tudo isto vai evoluir. E como vão evoluir as matérias-primas.
Esse cenário de incerteza também terá contribuído para o Governo ter decidido alterar as condições do concurso para a concessão do novo terminal de contentores Vasco da Gama?
O Governo aprovou recentemente um novo decreto-lei que altera as condições do concurso, mantendo os objetivos finais do projeto, para dar alguma flexibilidade no investimento. É preciso não esquecer que é um investimento privado, totalmente privado, e que há a preocupação de criar condições mais atrativas para se realizar esse investimento. A questão do concurso é uma decisão que articulamos com o Governo, mas a decisão é do Governo, temos de ver qual o momento certo para abrir o concurso. [O anterior concurso que se realizou já no quadro da pandemia ficou deserto].
Isso não está decidido?
No momento que vivemos não temos condições para lançar o concurso. Temos de sentir e perceber a natureza deste investimento que sendo privado e, tendo retorno a médio e longo prazo —, é uma concessão com 50 anos. O privado tem de sentir condições de segurança a médio e longo prazo para poder fazer este investimento. Tem de haver condições estáveis e uma perspetiva internacional que crie essas condições para nós lançarmos novamente o concurso ou para o Governo decidir avançar com ele.
Há décadas que se ouve falar da linha de mercadorias Sines-Badajoz, agora Madrid. Quando é que o Porto de Sines vai ter uma ligação a alta capacidade a Espanha?
Da parte portuguesa os principais investimentos relativamente à ferrovia para Espanha — a modernização do corredor ferroviário entre Elvas e Sines — estarão concluídos no próximo ano. Depois há um conjunto de investimentos da parte de Espanha que estão a decorrer e que vão criar as condições que permitam de facto a ligação a Madrid.
Então não basta o investimento da parte portuguesa para fazer a diferença no que diz respeito à ligação ferroviária do Porto de Sines?
A parte portuguesa é fundamental para Sines porque não permitia fazer comboios 750 metros o que é fundamental para conseguirmos chegar a Espanha e tornar o transporte ferroviário para Sines mais competitivo. Da parte de Espanha há um conjunto de investimentos na melhoria de ligação a Madrid que também é importante para o desenvolvimento desse corredor ferroviário. Dentro da informação que temos, quer do governo português quer do espanhol, o processo está a percorrer o seu caminho e as coisas vão estabilizar nos próximos um ou dois anos. Já hoje em Sines fazemos cerca de 6.000 comboios por ano e estamos a fazer um comboio diário para Espanha. A perspetiva é que consigamos quintuplicar, cinco comboios diários, dentro de 3,4 ou 5 anos no máximo. A ideia é de facto crescermos muito no mercado espanhol.
Isso também é um fator importante para o lançamento do concurso do novo terminal?
Todos estes investimentos vão no caminho de criar condições mais atrativas para aparecerem mais concorrentes para o outro terminal, naturalmente que sim.