As paredes estão escuras devido à evaporação do álcool. São fungos que as pintam de negro e lhes emprestam personalidade. O cenário impõe respeito. As teias de aranha foram deixadas ficar a mando da sorte monetária, dizem, e o silêncio é rei que corteja a sua rainha, como quem diz a aguardente que envelhece nos milhares de cascos de carvalho francês e português. Aqui só se limpa o chão e só se acendem as luzes quando o trabalho e as visitas de turistas o exigem. De resto, as portas das caves desta adega cooperativa mantêm-se fechadas à chave e a bebida que tanta fama dá à Lourinhã — uma das três únicas regiões demarcadas de aguardente vínica no mundo, ao lado das francesas Cognac e Armagnac, que no passado dia 7 de março celebrou 25 anos de existência como tal — fica vetada à escuridão e à conversa do tempo.
João Pedro Catela percorre as galerias impregnadas pelo odor a álcool com o à-vontade de quem conhece cada curva e contracurva, mesmo debaixo de uma luz tímida que deixa muito à imaginação. O presidente da Adega Cooperativa da Lourinhã, que anda por aqui há 20 anos de pipeta na mão e bigode aprumado sobre o lábio superior, mostra vaidoso as muitas barricas datadas — de 1989 a 2016 — para explicar o processo por detrás da vigorosa aguardente. “As vindimas são feitas em setembro e o vinho está pronto em princípios de novembro. Uma vez que tem um baixo teor alcoólico e não tem qualquer tratamento, ele é destilado o mais depressa possível para não correr o risco de azedar. Depois vem para aqui para envelhecer.” O discurso é amplificado pelo eco que as caves projetam. João Pedro Catela, de uma energia contagiante, reinterpreta um slogan previamente ensaiado: “A roupa passa de moda, os produtos alimentares têm uma data de validade e a aguardente… quanto mais velha melhor.”
Nas suas caves estão 96 mil litros armazenados, sendo que todos os lotes estão devidamente registados numa ficha mais manual do que digital. “Temos o histórico de tudo o que entrou e de tudo o que sai. Os cascos vêm para cá novos e só saem daqui quando estão rotos, o que pode levar 30 a 40 anos”, acrescenta Catela. Anualmente, saem daqui 12 a 13 mil garrafas de vários tamanhos — desde o moderno vaporizador de aguardente à muito tradicional garrafa de 0,70 litros em caixa de madeira. “Este ano recebemos 6.100 litros dos 20 cooperantes que entregam cá uva e é isso que estamos a vender.”
A Adega Cooperativa da Lourinhã, em funcionamento desde 1957, não é a única produtora da aguardente vínica DOC da região. Mas quase. A ela junta-se apenas a Quinta do Rol. A propriedade centenária, localizada a 65 quilómetros da capital, foi adquirida pelo avô do atual proprietário, Carlos Melo Ribeiro. Ao todo há 35 hectares de vinha (de onde nascem tintos, brancos, rosé e espumantes), mas também outros tantos de pera rocha e de maçã de Alcobaça. Mas é a aguardente que nos traz cá.
Enquanto passeamos pela adega da quinta, cujos lagares e depósitos nos remetem para a década de 1940, dizem-nos que foram precisos 10 a 15 anos para que a primeira aguardente ficasse pronta. “Aqui, a aguardente fica no mínimo 10 anos em madeira”, conta-nos Carlos Melo Ribeiro, ao mesmo tempo que assegura que, em cave, a mais antiga leva 21 anos em cima. A Quinta do Rol — que, por enquanto, detém a única destilaria certificada, com a aguardente da Adega Cooperativa a ser aqui destilada — começou a apostar na bebida em 1995, três anos depois da certificação da Lourinhã como primeira região demarcada do país para produção exclusiva da bebida. Anualmente, a quinta produz 10 mil litros de aguardente (que resultam de 120 mil litros de vinho de base) e parte é fornecida para a produção do também famoso vinho de Carcavelos.
A par de estar situada numa das três únicas regiões demarcadas de aguardente no mundo — sendo as outras duas, recordemos, as francesas Cognac e Armagnac –, a Quinta do Rol aposta em turismo rural com uma suite na casa principal, que data do começo do século XX, e oito apartamentos, e ainda no turismo equestre, com um centro hípico em plena propriedade.
O que é que a aguardente da Lourinhã tem?
“A região da Lourinhã é, tradicionalmente, produtora de aguardentes vínicas cuja qualidade tem sido reconhecida desde meados do século [XX]”, lê-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 34/92 de 7 de março, que reconhece a denominação de origem Lourinhã, a primeira e única região demarcada do país para produção exclusiva de aguardente. Os vinhos da Lourinhã apresentam características que por norma existem nas regiões de aguardente: são predominantemente brancos com baixo teor alcoólico e alta acidez, vindos de vinhas plantadas em zonas de clima fresco e em solos calcários. Há regras a seguir de perto para que a aguardente aqui produzida leve DOC no rótulo, como por exemplo o facto de a vinificação ser feita sem adição de anidrido sulfuroso e de a aguardente envelhecer, no mínimo, 24 meses em barris de carvalho. Há também uma mão cheia de castas permitidas que dão origem à bebida, da qual a Tália é talvez a mais falada.
“Foi influência francesa”, diz Vasco D’Avillez, recostado no banco de trás do carro do Observador. O presidente da Comissão Vitivinícola Regional de Lisboa (CVR Lisboa) acompanha-nos na viagem às caves da aguardente da Lourinhã e, sempre que pode, vai contado detalhes históricos que, destilados, dariam um grande romance. Segundo D’Avillez, a invasão das tropas francesas no século XIX está na origem da aguardente tal como a conhecemos hoje. Finda a guerra e as guerrilhas, foram muitos os franceses que por ali se deixaram ficar e que começaram a destilar o vinho, tal como acontecia por terras francesas. “Não eram técnicos, eram pessoas muito simples. Estas coisas começam sempre assim.”
A história chega a unir a aguardente da Lourinhã com o mítico vinho do Porto, uma vez que, há sensivelmente 200 anos, os produtores da bebida fortificada que cresce em socalcos durienses usavam esta aguardente na produção do vinho. “Ainda vêm cá buscar a aguardente?”, perguntamos. Agora é João Catela quem responde: “Não, atualmente isto está reduzido a dois produtores e nós não vendemos aguardente a granel, caso contrário não seria DOC. Se vai a granel pode-se pôr tudo e mais alguma coisa lá dentro”, atira, para depois explicar que a CVR de Lisboa fiscaliza todo o processo.
O tempo, a experiência e a sede do homem permitiram que em 1992 a Lourinhã recebesse a certificação que, 25 anos depois, celebra com gosto. No entanto, foi preciso esperar para que o consumo de aguardente aumentasse, coisa que aconteceu entre 2013 e 2014, com um crescimento de 29%. Mas o grande crescimento, a julgar pelos dados cedidos pela Adega Cooperativa da Lourinhã ao Observador, é ainda mais recente. Segundo João Pedro Catela, em 2015 houve um aumento de 52% em relação a 2014 — a elevada percentagem diz sobretudo respeito à angariação de novos distribuidores. Em 2016 registou-se ainda um aumento de 3% face a 2015.
Importa ainda referir que existem diferentes classificações de aguardente: VS significa que a arguente envelheceu três anos em madeira, VSOP diz respeito a quatro anos e XO, de extra old, remete para cinco anos. “Nós só fazemos aguardentes com mais de oito anos”, explica João Pedro Catela, que assegura que quanto mais tempo a aguardente repousar em cascos de maneira, mais cor e aromas ganha, até porque o vinho quando é queimado — entenda-se destilado — resulta numa aguardente branca. O tempo e o contacto com a madeira são determinantes para a aguardente, mas também a memória gustativa de quem trabalha a bebida. No final, com a aguardente pronta a beber, não existe limite máximo de teor alcóolico, apenas limite mínimo (39 graus). “Mas aquela que se bebe melhor é de 40 graus”, assegura o presidente da Adega Cooperativa da Lourinhã. “Quando vamos fazer os lotes ainda temos uma média de 60 a 75 graus — temos de baixar a aguardente para os 40 graus com recurso a água destilada.”
Nesta adega a tradição ainda é o que era. Apenas com três trabalhadores a tempo inteiro, a rotulagem das garrafas ainda é feita manualmente pela senhora Manuela, que por aqui anda a nivelar os rótulos sobre os recipientes de vidro há quase 30 anos. Por ela já passaram mais de 135 mil garrafas, as quais são ainda lacradas e assinaladas com o carimbo da casa. João Pedro Catela trabalha ali há coisa de 20 anos e, apesar de existirem eleições de três em três anos, permanece no cargo de presidente da direção. “Estou como a aguardente, vou ficando”, brinca. Se assim for, Catela é um verdadeiro XO.
A aguardente que também se come
Já lá vão seis anos desde que Pedro Ferreira, pasteleiro desde os 12, exclamou “eureca!”. Depois de provar um pastel feito a partir de pera rocha por uma tal de dona Aurélia, no Bombarral, o pasteleiro lembrou-se de trazer para a cozinha o produto ex-líbris da Lourinhã, onde há nove anos mantém a pastelaria Lourinius de portas abertas. Houve várias tentativas-erro, com Pedro Ferreira a adicionar, no começo das experiências, mais álcool do que o necessário. E foi precisamente o álcool, que é volátil, que deu algumas dores de cabeça.
Pedro e a mulher, Ana, lá conseguiram alcançar a receita desejada, que tem por base uma outra de muitos anos. Hoje são as duas únicas pessoas que sabem fazer os pastéis de aguardente, que já chegaram a levar para casa duas medalhas de ouro no concurso Doçaria Popular Portuguesa. O segredo é literalmente a alma do negócio, motivo pelo qual Pedro Ferreira conta que chegou a ter pessoas a entrar pela fábrica dentro na tentativa de descobrir a fórmula mágica. Mas a par do que consta no rótulo — açúcar, farinha, aguardente DOC (vinda da Adega Cooperativa da Lourinhã), leite, ovos, amêndoas, gordura vegetal e coco ralado — mais nada se sabe.
Reservado e parco em palavras, o pasteleiro hesita em dizer qual o volume de pastéis produzidos anualmente, mas deixa escapar que o negócio corre bem, muito bem. E além dos pastéis de aguardente, que nas pastelaria são vendidos numa caixa de seis unidades por seis euros, diz ter criado pastéis com Ginja de Óbidos, vinho de Carcavelos e vinho do Porto, entre outras propostas saborosas. E quem diz pastéis de aguardente, diz bombons também.