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Natália Correia: uma mulher que era um mundo

Uma abordagem a “O Dever de Deslumbrar”, recém-editada biografia escrita por Filipa Martins. Um livro capaz de contar, com pormenor, uma autora desalinhada, uma personalidade complexa e excessiva.

Este texto é escrito sobre o chão de Natália Correia. O chão ilhéu, o chão da sua ilha de São Miguel, Açores, superfície rochosa onde começou por acontecer antes de partir para outros fascínios e perigos. O lugar aonde, um dia, regressou e que passou a sentir como o seu abrigo. A sua origem. O seu sentido. A sua raiz vulcânica. A possibilidade de uma explicação geológico-espiritual para o que era e para o seu destino de meteorologias várias, sempre intensas, a maior parte das vezes inesperadas.

Daqui, a partir de uma varanda de uma casa do Livramento, Rosto de Cão, costa sul da ilha, consegue-se vislumbrar algum do arvoredo da sua freguesia da Fajã de Baixo, lugar de muitas estufas, onde nasceu a 13 de setembro de 1923. É de concluir, dentro de um tempo açoriano primaveril (também o há, contra as nebulosidades dos boletins), que O Dever de Deslumbrar, a biografia escrita por Filipa Martins, se trata de uma araucária de vasta altura e de muitas ramificações. Uma delas é, claro, a açoriana. Era nos Açores que Natália Correia encontrava a harmonia e o equilíbrio que não achava em mais lado nenhum.

30 anos sem Natália Correia, a mulher da língua de fogo

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Estão, nestas quase 700 páginas muitas Natálias e todas são esmiuçadas com detalhes, cruzando ocorrências e subtis anotações. A Natália insurreta, a Natália autora, a Natália bonita, a Natália matrimonial, a Natália cívica, a Natália censurada, a Natália antifascista, a Natália libertária, a Natália crítica do materialismo americano, a Natália encurralada entre escolas literárias concorrentes, a Natália literária com escasso público leitor, a Natália amiga de muitos autores e  incompatibilizada com outros, a Natália colérica, a Natália investigadora de tradições subversivas, a Natália, culturalmente, iberista, ao mesmo tempo clássica e revolucionária, a Natália anfitriã, a das tertúlias do Botequim, a Natália deputada, a Natália próxima de Sá Carneiro e de Snu Abecassis, a Natália da “Mátria”. “É no paradigma da Grande Mãe que vejo a fonte cultural da mulher; por isso lhe chamo matrismo e não feminismo”.

"O Dever de Deslumbrar" é o título da biografia de Natália Correia escrita por Filipa Martins, publicada pela Contraponto

Vem tudo nesta enxurrada verbal. Desde o nascimento na Fajã até aos últimos dias, melancólicos em relação a um mundo feito cultura industrializada, no qual já não se reconhecia e que lamentava como quem lamenta o fim de um tempo de combates. De causas, de risco.

Diga-se que a elevação absoluta do feminino começou a ser semeada na sua infância e foi determinada, em boa parte, pelo facto de ter sido educada em exclusivo pela sua mãe, depois do que sentiu, sem meias palavras, como um abandono paterno (o pai emigrara quando era muito pequena). Sobre este assunto, o primeiro capítulo traz um título inspirado e revelador: “Como Nascera, Se Não Tinha Pai?”

Ao ler-se o livro, percebe-se porque é que Natália Correia, com tantas facetas, aqui ordenadas, evidenciadas e descritas, teve um percurso literário com um impacto insuficiente para a sua produção criativa – mesmo que esta não fosse um repasto simples, de consumo fácil e imediato.  No início, como é lembrado no livro, a sua beleza física terá feito secundarizar a verve do seu talento. E, depois, o seu lado de personagem, saliente, extravagante, fez ocultar a sua arte, solitária, teimosa, impermeável a correntes, pouco consensual também, em que se apresentou em diversas modalidades: a poesia, a dramaturgia, o romance, o ensaio, o guionismo, a tradução. Diz-se que um escritor normalmente não tem biografia. Natália, por ser múltipla, por se ter jogado, por ter experimentado muitas peripécias, de intelectuais a amorosas, merece, por essa vida toda, ser contada num calhamaço.

A Natália açoriana, aquela que aqui é expandida, merece apontamentos e glosas. Que não delimitam, expandem. O que viveu nos Açores traz consigo algumas das marcas fundamentais do seu destino sem caminho pré-definido, construído com muito nervo. É um miradouro para sua personalidade e para a sua história.

Gestos políticos como o de aceitar concorrer a eleições pelo PSD, partido demonizado em contexto revolucionário, ou o de se ter rebelado durante o PREC, em mais do que polémicos artigos de jornal, contra radicalismos ideológicos, ou ainda o de, mais tarde, ter escrito um genial poema satírico a propósito da declaração de um deputado que afirmou que “o ato sexual é para ter filhos”, relegam muitas das suas obras, sobretudo as de ficção, para algumas das prateleiras menos visitadas das bibliotecas.  É uma autora de versos citados com frequência, em jeito de slogan – como “a poesia é para comer” – mas cujos livros raras vezes são visitados do início ao fim. Filipa Martins alude a cada um deles, abrindo caminho ao interesse de novos olhares.

É de muito celebrar o esforço da biógrafa, em estilo torneado, mas sempre fluído, com talento para puxar a ação para trás e para a frente, em breves apontamentos. Revela óbvio virtuosismo narrativo, desenhando o trilho nataliano com o pormenor de quem muito pesquisou e labutou. Há muita informação alinhada e confecionada com adequado e fogoso ritmo. Também o ângulo de quem admira, sim, mas dando ao mesmo tempo algumas nuances necessárias, capazes de transformar uma figura épica numa contingência humana. Um vulcão embeleza e derruba as paisagens. Dentro de si, conviviam, fazendo uma colagem própria do fraseado do livro, “a inteligência e o desconcertante sentido de autoencenação majestático” que escondia “uma fragilidade complexa e paradoxal, com raiz numa infância marcada por abandonos e uma afetividade dispersa”.

Natália Correia, uma mulher capaz das maiores causas e das mais difíceis ruturas e cóleras.  Não uma deusa – porque trazia a clara impureza da imperfeição

A Natália açoriana, aquela que aqui é expandida, merece apontamentos e glosas. Que não delimitam, expandem. O que viveu nos Açores traz consigo algumas das marcas fundamentais do seu destino sem caminho pré-definido, construído com muito nervo. É um miradouro para sua personalidade e para a sua história. Um dado. A decisão do regresso ao arquipélago aconteceu, já depois dos 30 anos, quando, num restaurante, se comoveu ao ouvir músicas do folclore micaelense. O apelo começou na cultura popular açoriana.

Lembra-se que, quando estava fora, uma das ligações com a sua terra manifestou-se numa primeira colaboração com a imprensa concretizada numa rubrica, assinada no jornal Portugal, Madeira e Açores, chamada “Como os açorianos de hoje veem as ilhas de amanhã”. Aí entrevistava “algumas figuras açorianas de maior relevo a viverem no continente”. Conta Filipa, logo nessa primeira colaboração jornalística, manifestou-se a sua vocação crítica dos conservadorismos e marasmos – no caso da sua ínsula.

Há 50 anos, a indecência de Natália Correia libertou-nos

Há um outro episódio açoriano recuperado pela biógrafa que tem particular interesse. A circunstância de a peça “O Encoberto”, objeto de censura diversas, por vontade de Natália Correia, ter sido estreada, em Ponta Delgada, em 11 de fevereiro de 1977, no Teatro Micaelense, tendo como protagonista Ruy de Carvalho, que interpretava a figura Bonani-Rei Dom Sebastião. O momento foi duplamente significativo porque, como recorda Filipa Martins, a récita representou a estreia de Natália, quase aos 54 anos, como dramaturga encenada numa peça para adultos. Cumprir-se na sua terra – um dos desígnios importantes de qualquer escritor dado às emoções primeiras.

Em 1980, voltou a privilegiar o seu chão reservando-lhe a antestreia de “Santo Antero”, filme de Dórdio Guimarães com argumento seu. A receção, na imprensa, oscilou entre o elogio e a crítica inclemente. A segunda abordagem não conseguia esconder a circunstância de haver, entre muitos micaelenses, uma objeção reacionária ao facto de Natália se reclamar açoriana. Uma forma de dar razão ao conservadorismo tacanho que apontou nas suas primeiras colaborações jornalísticas.

O retrato de Filipa Martins recupera e desvela com arte e trabalho uma personalidade difícil de enquadrar cultural, espiritual e ideologicamente. Alguém que era, em si, uma ideologia – num sentido lato. Que não se vergava, seguia os seus instintos, vulcânicos, sempre à beira de se tornaram erupção.

Mas a sua ligação à terra, à sua ilha, ao seu arquipélago, celebrado, por exemplo, na letra do hino dos Açores, nunca sofreu – e usa-se um termo quotidiano nas ilhas açorianas – abalos e manifestou-se de diferentes maneiras. A sua atração pelo culto do Espírito Santo, forma de religiosidade sem a intervenção da igreja, que privilegia a mesa, a distribuição, a igualdade, tornou-se cada vez mais evidente com os anos. Como inspiração e como objeto de estudo e de reinterpretação (atribui-lhe raiz feminina). No pós-25 de Abril de 1974, num assumido gesto contra o gonçalvismo, marchou, marchou, tendo visitado São Miguel e encontrou-se, juntamente com Vitorino Nemésio, com militantes da Frente de Libertação dos Açores.

O retrato de Filipa Martins recupera e desvela com arte e trabalho uma personalidade difícil de enquadrar cultural, espiritual e ideologicamente. Alguém que era, em si, uma ideologia – num sentido lato. Que não se vergava, seguia os seus instintos, vulcânicos, sempre à beira de se tornaram erupção. Uma figura barroca, sempre em excesso, que tornava evidentes quer qualidades quer defeitos. Que não se dava, por isso, com as nacionais sonsices dos meios literários e políticos. Uma mulher capaz das maiores causas e das mais difíceis ruturas e cóleras.  Não uma deusa – porque trazia a clara impureza da imperfeição.  No essencial, um exemplo para um mundo que precisa de referências maiores do que o calendário. Resta saber se esse mundo sabe merecê-la.

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