O diálogo com outras confissões cristãs e outras religiões não vai ser esquecido durante a Jornada Mundial da Juventude, o maior evento organizado a nível mundial pela Igreja Católica, que se realiza em Lisboa dentro de menos de duas semanas. A garantia é dada em entrevista ao podcast Geração Francisco, da Rádio Observador, pelo padre Peter Stilwell, diretor do departamento de Relações Ecuménicas e Diálogo Inter-religioso do Patriarcado de Lisboa. É ele quem, na organização da JMJ de Lisboa, está a coordenar um conjunto de iniciativas para favorecer a participação de jovens de outras religiões na Jornada e para permitir que os jovens católicos possam ter contacto com a realidade de outras confissões.
Na entrevista, Peter Stilwell sublinha que os centros de culto de várias comunidades religiosas presentes em Lisboa (incluindo a sinagoga, a mesquita, o templo hindu e o centro Ismaili) vão estar abertos aos participantes da JMJ durante a semana da Jornada, enquanto as comunidades ecuménicas de Taizé e Chemin Neuf vão ter iniciativas em igrejas da cidade para promover o diálogo ecuménico.
Doutor em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, o padre Peter Stilwell, hoje com 76 anos, conjugou sempre a vida académica com o diálogo entre a Igreja Católicas e outras religiões e culturas. Durante oito anos, foi o reitor da Universidade de São José, em Macau — a única universidade católica existente em território chinês, um dos países do mundo em que a relação com a Igreja é mais complexa. Mas a história familiar de Peter Stilwell também contribui para que o sacerdote se aproximasse do diálogo inter-religioso: nascido em Portugal, mas numa família inglesa. No Reino Unido, país de maioria anglicana, a família, pertencente à minoria, chegou no passado a sentir pressões e perseguições por ser católica.
[Ouça aqui o terceiro episódio do programa Geração Francisco, da Rádio Observador]
Foi por convite do antigo patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, que o padre Peter Stilwell fundou o departamento de Relações Ecuménicas e Diálogo Inter-religioso, um tema sobre o qual se tem debruçado ao longo das últimas décadas. Na entrevista à Rádio Observador, o sacerdote reflete também como o Concílio Vaticano II, na década de 1960, foi vital para que a Igreja Católica mudasse de modo radical a sua abordagem ao diálogo com as outras religiões e passasse a considerar necessária a construção de uma fraternidade universal.
Nem sempre a Igreja Católica foi propriamente aberta ao diálogo com outras religiões? De onde é que surge esta vontade de dialogar com as outras fés? É do Concílio Vaticano II?
É sobretudo do Concílio. E também de uma visão mais abrangente do mundo que surgiu depois da II Guerra Mundial. Antes, perdurava um axioma: fora da Igreja não há salvação. A ideia de que as outras religiões — como muitas vezes os nossos missionários, estou a pensar em cartas que vi de São Francisco Xavier, pensavam — eram inspiradas pelo próprio Demónio. Havia uma tradição, que vinha dos profetas na Bíblia, em que os profetas desancavam em quem adorava os ídolos ou seguia outras religiões.
Eram pagãos?
Era mais do que isso. Hoje em dia, quando nós olhamos para esses textos, olhamos com outro olhar. Mas o que acontece no Concílio Vaticano II é que se faz uma descoberta: afinal, essas outras tradições religiosas têm imensos valores que partilham connosco, ou nós partilhamos com eles. Portanto, é importante trabalharmos juntos, como o Papa Francisco disse na sua encíclica Fratelli Tutti, para a construção de uma grande fraternidade universal.
Que papel é que tem tido o Papa Francisco no diálogo inter-religioso e intercultural? Estou a lembrar-me de algumas situações: a visita à Suécia nos 500 anos da Reforma Protestante, o acordo que assinou com a China, o encontro com o patriarca de Moscovo e o encontro com o imã da mesquita de Al-Azhar, no Egipto. Todos estes momentos indiciam que o Papa tem tido uma aposta muito forte no diálogo com outras religiões e outras culturas?
Sim. Ele veio da Argentina com uma experiência que era de amizade com uma pessoa da área evangélica, com um rabino da sinagoga local, de um muçulmano, de uma comunidade islâmica. Portanto, havia esses laços, quase que se poderia dizer de família, de amizade entre eles. Mesmo quando viajou pela primeira vez para Israel, ele fez questão de pedir ao seu amigo rabino para o acompanhar nessa viagem. Foi acompanhado, também, se não me engano, pelo Patriarca Bartolomeu, da Igreja Ortodoxa. Este sentido de abrangência, de abertura aos outros, tem gradualmente passado através da Igreja. E o Papa Francisco é, por assim dizer, alguém que se tornou uma imagem disso na prática. Já havia sinais no Papa João Paulo II. O próprio Bento XVI viveu uma experiência, que foi dolorosa. Logo no início, fez uma palestra em Regensburg que fez correr muita tinta, porque citou uma frase um pouco agressiva contra o Islão de um imperador bizantino, e depois ficou surpreendido pela reação do mundo islâmico. Vemos nele, quem acompanha os seus textos, como já tentei fazer, uma evolução gradual até chegar, por exemplo, a um Sínodo do Médio Oriente, em que ele publica a sua conclusão desse Sínodo — porque são sempre os papas que produzem a exortação apostólica final —, e essa exortação apostólica é de uma abertura surpreendente.
Portanto, é um caminho que os papas, ao longo das últimas décadas, têm vindo a fazer, sobretudo desde o Concílio Vaticano II, como falávamos no início. O que é que mudou no Concílio Vaticano II?
Podemos falar sobre a questão da liberdade religiosa. Começou por uma espécie de contradição ou paradoxo no interior da própria Igreja. A Igreja reclamava que, sendo a Igreja da verdade, nos países onde fosse maioritária, devia ser a religião do Estado.
As outras religiões são falsas, era essa a ideia?
Exatamente. E assim como não deixamos entrar uma doença dentro de um país, também não se deve deixar falsas verdades circularem. Se tolerássemos as outras religiões, como por exemplo acontecia aqui em Portugal com os protestantes — podiam ter a sua igreja, mas afastada do espaço público, tinham de ter os seus cemitérios próprios —, esse sentido de afastar a população do país do contágio dessas outras maneiras de ver, isso era o dominante nos países de maioria católica. Mas, depois, quando a Igreja se encontrava em minoria, como acontecia nos Estados Unidos — e refiro os Estados Unidos porque foi de lá que veio a proposta alternativa —, a Igreja reclamava que fosse respeitada. E assim acontecia.
Portanto, quando estava em minoria, queria dialogar.
Queria ser respeitada nos seus direitos. Não ser pressionada pelo Estado, não haver intervenções das religiões dominantes na forma como ela se organizava. No Concílio, deu-se um salto importante. Até aí, pensava-se: não se pode dar direitos a não-verdades, ou a verdades que nós não consideramos que sejam as certas, para circular. E o Concílio diz: não é uma questão de dar direitos às verdades. As verdades não têm direitos. Quem tem direitos são as pessoas. Portanto, aquilo que há a fazer é pedir ao Estado para respeitar o direito das pessoas, o direito que o Concílio considera simultaneamente um dever, de procurar a verdade. Portanto, tem de haver condições no interior da sociedade para que as pessoas procurem a verdade.
Cada uma pelo seu caminho.
Pelo seu caminho, ouvindo as opiniões dos outros, ouvindo as perspetivas dos outros. Isso abriu logo o espaço para acolher as outras tradições.
Há aqui duas dimensões diferentes. Por um lado, a do diálogo inter-religioso, ou seja, o diálogo entre diferentes religiões; e, por outro, a do diálogo ecuménico, ou seja, entre diferentes confissões cristãs. Deixe-me começar pelo primeiro, com uma questão que muitos fazem quando se cruzam com este tema. Porque é que as diferentes religiões, durante tantos anos, protagonizaram tantos conflitos? Ou, de outra forma, porque é que existem tantas guerras em nome de Deus?
Há uma ligação muito próxima entre a identidade de um grupo humano e a sua mundividência, a maneira como olha o Universo. E a religião tem um papel muito importante aí. Em todas as sociedades, nós vemos esta ligação surgir da parte política, interessada em ter uma religião que ajude a consolidar o seu controlo da população, e da parte das religiões, esta vontade de terem um protetor que seja um protetor político. Portanto, há vontade de parte a parte. E isso tem dado, ao longo da História, maus resultados: a religião ser instrumentalizada para fins políticos específicos, ou a religião aproveitar-se do Estado, como foi o caso das Cruzadas.
O exemplo talvez mais célebre de fazer guerra em nome de Deus.
Fazer guerra em nome de Deus contra aquilo que se considerava como sendo invasores dos espaços santos, na Terra Santa. Era abrir, de novo, o caminho aos peregrinos, que tinha sido bloqueado por causa da presença islâmica na Terra Santa.
O mesmo, por exemplo, com a fundação de Portugal, que se afirma expandindo um território que é reconquistado aos mouros, aos muçulmanos.
Pois, é essa a nossa narrativa. Nós narramos isso. Mas, de facto, o que acontece é que são gente — como aliás D. Afonso Henriques era descendente de franceses — que podemos dizer que eram imigrantes, que vieram para o norte do país e se juntaram, depois, com cruzados que vinham pelas costas da Europa, da Alemanha, ingleses, que iam a caminho da Terra Santa. D. Afonso Henriques — estou a pensar em Lisboa, em concreto — pediu-lhes para darem apoio. E comportaram-se um bocadinho como aqueles hooligans do futebol. Chegados aqui, a correr com tudo o que encontraram pela frente. Costumo lembrar que uma das primeiras pessoas que foram mortas na conquista de Lisboa foi o bispo local. Havia um bispo, mas os cruzados quando viram que havia um bispo que vivia com os muçulmanos acharam que não devia ser boa pessoa e atiraram-no muro abaixo, e substituíram-no pelo capelão das suas próprias tropas. Portanto, o primeiro bispo depois da reconquista de Lisboa era o capelão dos cruzados britânicos.
Podemos, portanto, concluir que, durante muitos séculos, a identidade nacional, a identidade política e a identidade religiosa confundiram-se.
Confundiram-se. Havia, no entanto, no mundo muçulmano, essa diferença. A presença muçulmana na península significava, não o esmagar — embora tenha tornado difícil — a presença judaica e a presença cristã. Portanto, havia um convívio entre essas religiões no espaço muçulmano.
Talvez ainda mais incompreensível seja a questão do diálogo ecuménico. O que é que impede todos os cristãos de viverem em unidade e os leva a separarem-se em tantas igrejas diferentes?
Quando estive em Macau e fui observando o que se passava na China, a impressão que me ficou é que essas guerras que nos levaram a viver de costas voltadas uns para os outros não fazem sentido. De facto, na China profunda, há neste momento uma apetência para a mensagem cristã. Há conversões. Calcula-se que no mundo evangélico a conversão seja de cerca de 10% por ano, em termos de aumento. Na Igreja Católica, menos, porque é mais controlada, por causa da sua estrutura hierárquica. De facto, as guerras do século XVI aqui na Europa, que eram também um misto de político e de religioso… Nós vemos que quer o Concílio de Trento, que veio tentar resolver a questão no interior da Igreja Católica, quer o Concílio Vaticano II, adotaram muitas das questões que foram levantadas por Lutero e Calvino, e que eles criticavam em relação à Igreja Católica do tempo.
Portanto, é um processo histórico de cismas e rupturas essencialmente por motivações políticas?
Humanas. Por exemplo, quando Lutero insistiu que devia haver reformas em Roma, Roma mandou uma delegação para negociar com ele. Como ele não cedeu logo à primeira, depois de umas semanas ou de uns meses, mandaram o recado de Roma de que não valia a pena estar a negociar com um frade. Que viessem embora e mandavam uma excomunhão. Começou aí uma ruptura de 500 anos. No caso da ruptura com a Igreja Ortodoxa, que foi no século XI, chegou um cardeal enviado por Roma a Constantinopla. Morreu, entretanto, o Papa, portanto ele, como legado do Papa, até perdia a sua autoridade. Mas era um homem irascível, o Patriarca de Constantinopla também era, e acabaram por se excomungar mutuamente. E foi a partir daí.
Portanto, por conflitos humanos.
Muitas vezes, por questões humanas.
A sua história familiar, pelo que sei, também o inspirou a interessar-se pela questão do diálogo entre as religiões. A sua ascendência inglesa, um país de maioria anglicana, mas numa família católica, inspirou-o para este processo?
A minha avó, logo a seguir ao Concílio, reuniu lá em casa dela gente das várias tradições, porque havia um grande entusiasmo com o ecumenismo. E isso sensibilizou-me. Depois, conhecendo melhor a tradição do meu lado materno da família, que foram sempre católicos — e entre os quais no passado houve alguns que morreram por causa da sua fé —, percebi que, vendo as questões de outra perspetiva, num país de maioria católica, que coisas semelhantes tinham acontecido aqui na Península Ibérica em relação a outros grupos, que eram minoritários, quer de outras religiões, quer da religião cristã.
E que a solução era necessariamente o diálogo?
Quando me encontrava com essas pessoas na casa da minha avó, via que eram boa gente.
E que não havia razão…
Não havia razão para nos desentendermos! Podíamos desentender-nos e discutir sobre questões teológicas, e isso até era interessante, mas escusávamos de nos zangar uns com os outros e estar de costas voltadas.
Que lugar vai haver na JMJ para o diálogo ecuménico e inter-religioso?
É, por assim dizer, um aspeto lateral, embora haja dois movimentos que têm esse diálogo ecuménico como o elemento forte. Um é a comunidade de Taizé, que ficará responsável pela igreja de São Domingos, e vai ter o seu ritmo de oração, como habitualmente, lá em Taizé, em França. O outro é o movimento Chemin Neuf, que também se tem concentrado na questão do diálogo entre as tradições cristãs, e que vai ficar com a basílica da Estrela — e que vai trabalhar mano a mano com a Igreja Anglicana, que tem a sua base ali no cemitério dos ingleses, a igreja de Saint George.
Estamos a falar do diálogo ecuménico, entre os vários cristãos.
Por exemplo, os evangélicos não gostam muito da palavra ecuménico. Preferem falar da unidade dos cristãos. Se estendermos a esse mundo evangélico, temos uma surpresa: um pastor evangélico e outros que estão ligados a ele vão promover um grande encontro no Estádio da Luz. Naquele dia em que há a Via-Sacra no Parque Eduardo VII, depois da Via-Sacra, dando tempo para as pessoas se deslocarem, vai haver um grande evento de música e de testemunho no Estádio da Luz.
Isso são eventos que são organizados fora da organização oficial da JMJ, mas com que a organização tem alguma relação formal?
Não são fora. Quer dizer, são estas entidades que organizam, mas submeteram a proposta à organização central e recebem o carimbo de aprovação, para serem chamadas parte do Festival da Juventude.
Vai haver também um lugar para o diálogo com outras religiões?
Temos várias sedes de culto, a sinagoga, a mesquita, o centro Ismaili, o templo hindu, que estão abertos para serem visitados e haver explicação a quem visita sobre o que são essas tradições religiosas. Haverá também o Canto pela Paz. Vão estar numa das faculdades da Universidade de Lisboa — de Medicina Dentária, se não me engano — grupos corais jovens de várias tradições religiosas.
E a presença de grupos de cristãos ortodoxos poderá contribuir para o debate em torno da guerra na Ucrânia? Haverá presença de jovens russos e ucranianos?
Não sei se temos gente suficiente. O D. Américo visitou recentemente a Ucrânia e disse-nos que, se calhar, não é chegado ainda o tempo de sentar à mesma mesa pessoas dessas duas nações.