São crianças com poucos anos de idade, nunca estiveram perto de um tanque de guerra, nem tampouco sabem (ainda) o que significou o 25 de Abril, mas estão dentro de uma das chaimites da Revolução dos Cravos, 50 anos depois do dia que marcou o fim da ditadura em Portugal. Cá fora, de telemóveis e câmaras fotográficas prontos a disparar, os pais (muitos deles sem idade para terem nascido antes de 1974) emocionam-se com o momento e gravam-no para a posteridade. “Que imagem tão bonita”, diz uma mãe de olhos marejados ao ver os três filhos de cravo ao alto.
Os três tanques parados na Rua Alexandre Herculano — que servem de museu móvel aos que por ali passam e onde apenas entram os mais novos — aguardavam a chegada de Vasco Lourenço, capitão de Abril, que se juntou a José Pedro Aguiar-Branco, o presidente da Assembleia da República que fez questão de marcar presença nas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril e que juntaram milhares de pessoas no coração de Lisboa. A presença serve como “um gesto simbólico de aproximação entre eleitos e eleitores” e Aguiar-Branco considera também que é preciso “abrir cada vez mais a Assembleia da República às pessoas, para que as pessoas compreendam o trabalho dos seus eleitos no Parlamento”.
Como alguém que viveu com 18 anos o 25 de Abril e ciente de que a data está cada vez mais longínqua para os mais novos, o agora presidente da Assembleia da República acredita que é preciso “sentir que a participação é uma exigência da democracia“. “A democracia é o governo do povo pelo povo, mas isto dá trabalho, é uma exigência de participação, uma construção permanente. A democracia é de uma magnífica fragilidade e por isso temos de cuidar dela todos os dias e esta é a mensagem que temos de passar: ninguém fará por nós aquilo que não estivermos disponíveis para fazer”, alertou Aguiar-Branco, ainda antes de encabeçar o desfile onde, em boa verdade, jovens não faltaram.
“Somos muitos, muitos mil, para continuar Abril.” É um dos cânticos entoados durante as várias horas de desfile e resume o que se vai sentindo em cada metro da Avenida da Liberdade: são os jovens quem procura dar continuidade a uma revolução que, 50 anos depois, vai ficando cada vez mais distante dos mais novos. Um dos cartazes lembra exatamente isso, “sem memória não há futuro”, e entre os que optam por se manter no passeio ao lado da estrada enquanto o desfile passa, há quem note o que por ali se passa: “Muita malta nova, muita mesmo. E está muita gente, costuma estar muita, mas nunca assim ao molho.”
As impressões vão-se trocando entre os abraços de reencontro, beijos sem censura, cores que se multiplicam e reluzem em cartazes, uns mais improvisados do que outros, mas todos recheados de mensagens — e com alertas de que “quem adormece em democracia, pode acordar numa ditadura”. Os cravos, às centenas, seguem ao alto, nas mãos, em lapelas e até em meias. Estão por todo o lado. E há quem precise de bengalas para se deslocar, mas também é preciso deixar passar os muitos carros de bebé que já por ali andam. Há cães vestidos a rigor com t-shirts e frases alusivas ao 25 de Abril, camisolas com as letras da palavra “liberdade” bem destacadas, braços arrepiados quando há respostas a cânticos.
Na Avenida da Liberdade juntam-se os do costume para o desfile e faltam os do costume — os partidos de esquerda estão todos presentes; à direita, só a Iniciativa Liberal (que chegou a ter de fazer um desfile próprio, mas já no ano passado marcou presença), a JSD e, desta vez, o ADN. Pedro Nuno Santos considera um “ótimo sinal” que o povo saia à rua e sublinha a “extraordinária participação massiva do povo português” numa celebração com “força, um entusiasmo de quem não quer andar para trás, de quem vai travar e dar combate a qualquer retrocesso social, económico ou cultural”. “O povo está cá para salvaguardar, proteger os valores de Abril, a nossa democracia política, mas social e cultural também”, garantiu o líder socialista em plena Avenida da Liberdade.
Depois de despir o fato com que discursou durante a manhã na Assembleia da República surgiu em modo descontraído, não tirou os óculos de sol, mas nem isso o fez passar despercebido — já que se desdobrou em selfies e respostas a quem a ele se dirigia. E foi de megafone na mão, por pouco tempo e ainda antes de o desfile arrancar, que entoou: “O povo unido jamais será vencido.”
Mariana Mortágua chamou ao desfile uma “ocupação pela liberdade“, sublinhando que “um país inteiro saiu à rua”. “Há uma maioria de gente que sai à rua nos 50 anos e não é só para celebrar o 25 de Abril, para marcar um dia simbólico, é para marcar uma posição: para dizer que em Portugal a democracia não se negoceia, a democracia não está em causa, há uma maioria de pessoas que apoia a democracia, que defende a democracia, que acha que é o melhor sistema para Portugal”, destacou a coordenadora do Bloco de Esquerda. Também questionada sobre a ausência de vários partidos no desfile, Mortágua referiu que “cada partido tem a sua relação com o 25 de Abril e escolhe ou não estar na Avenida”.
Paulo Raimundo, secretário-geral do PCP, também marcou presença nas comemorações na Avenida da Liberdade, enalteceu a participação “massiva, expressiva” e “até emotiva“, o que considera ser uma “grande afirmação de Abril”. Ainda assim, realçou que a necessidade de que “se cumpra Abril na vida das pessoas” e alertou para temas como a saúde, a educação e a habitação — direitos que, aliás, estiveram presentes em cânticos e cartazes durante toda a manifestação. Por outro lado, também as constantes alusões à guerra em Gaza e à necessidade de um cessar-fogo imediato, como se lia em letras garrafais num dos cartazes.
Quando já o desfile de uns estava no fim, ainda a Iniciativa Liberal aguardava para iniciar o percurso junto ao Marquês de Pombal. O partido, que chegou a ter um desfile diferente, já marcou presença no ano passado e voltou a fazê-lo este ano — não deixando se realçar que houve momentos em que “quiseram tentar que não”. “O 25 de Abril é uma data determinante da liberdade e, portanto, ver tantos portugueses que se juntam em festa, com diferentes visões políticas, com diferentes visões para o país, que se juntam para celebrar essa data que une os democratas e os que amam a liberdade, isso é fantástico”, defendeu.
Ainda sobre a ausência de outros partidos que se sentam ao lado da IL, o líder liberal não vê “como é possível querer um país democrático e com liberdade e não ter o 25 de Abril como uma das datas fundadoras e fundamentais da liberdade que hoje temos”.
Num momento em que se comemoram 50 anos do 25 de Abril e em que milhares de pessoas saíram à rua numa comemoração de liberdade, fica a ideia de quem não lutou pela liberdade, mas não abdica dela: “Plantaram em nós a liberdade, não a deixaremos morrer.”