Vai cirandando pelo pavilhão, vestido com uma camisola amarelo torrado, relógio no pulso esquerdo, sandálias nos pés e calças cinzentas. A hora de jantar aproxima-se, ele é (brinca) “o relações públicas” do pavilhão e portanto tinha de ser o primeiro a falar “aos senhores jornalistas”. Não quer dizer o nome e há-de explicar porquê, mas garante que foi o primeiro a “inaugurar” na passada terça-feira o pavilhão que o Clube Nacional de Natação cedeu à Câmara Municipal de Lisboa e à Santa Casa da Misericórdia, para acolher pessoas sem-abrigo. Honrou-se a divisa antiga do clube, fundado há 100 anos (e alguns meses) por um grupo de dissidentes do Clube Naval de Lisboa e que se tornou percursor no ensino de salvamento marítimo: “Saber nadar não basta: É preciso, também, saber salvar”.
“João”, nome fictício, já tinha experimentado outro dos pavilhões que a Câmara Municipal de Lisboa remodelou para acolher pessaas sem-abrigo durante esta crise de saúde pública provocada pelo novo coronavírus. Curiosamente, dormira no primeiro e maior de todos, o Pavilhão do Casal Vistoso (com 80 a 85 camas), que entretanto esgotou e obrigou à abertura de um novo pavilhão na Tapadinha, que por sua vez também esgotou e obrigou à abertura deste novo pavilhão na semana passada — e ainda há um outro na Casa do Lago, exclusivo a mulheres. É assim que tem acontecido na capital desde há umas semanas, com a intensificação do surto: um pavilhão para pessoas sem-abrigo abre, enche, é preciso abrir outro. “Só abre quando tem todas as condições para abrir em segurança e com profissionais”, diz a Câmara. Sim, “mas é sempre de ontem para ontem”, admite quem já trabalhou em mais do que um.
As regras destes novos pavilhões remodelados para tirar das ruas os sem-abrigo, população especialmente vulnerável não apenas a contrair o vírus como a propagá-lo, permitem que os utentes saiam para o exterior por curtos períodos do dia. Foi um mau cálculo de horas que levou “João” a este novo centro. “Dormi duas noites no Vistoso, mas um dia atrasei-me e no outro dia… tive vergonha, tinha uma penalização e optei por não aparecer”, começa por dizer, olhos para baixo. “Depois fui lá outro dia e já não havia vagas”, conta.
Já lhe chegara a informação de que abrira mais um centro “na Tapadinha, no pavilhão do Atlético” e “sabia que havia vagas, presumia eu que havia vagas”, mas à entrada bateu com o nariz na porta: “Cheguei e nada. O responsável esteve a falar comigo e foi ele que me deu a dica: olhe que terça-feira… o melhor é estar lá às 8h para garantir. Não estava às 8h, mas ao meio-dia já cá estava”.
“Não me lembro de ter apanhado tanto frio. Só com uma manta…”
“João” é um dos muitos que dormem pelas ruas de Lisboa — de acordo com a Câmara Municipal de Lisboa, no verão passado eram 361 as pessoas que dormiam habitualmente ao relento, a que se somavam ainda quase dois mil (1967) “em acolhimento temporário de responsabilidade da autarquia”. Antes de chegar ao Pavilhão do Casal Vistoso, dormiu como está acostumado a dormir, na rua, mas as noites estavam más: “Não me lembro de ter apanhado tanto frio. Só com uma manta…”
O corpo enregelado não era o único problema, “João” precisava de tomar um banho e acabou por conseguir no Casal Vistoso, “contra o regulamento”, porque os balneários “ainda estavam fechados” mas “as pessoas também se condoeram — e as regras também se fizeram para não se cumprir, não são rígidas nem abrangem todas as especificações, depois é o critério de quem decide”.
Antes de conseguir uma nova cama em condições e um tecto, mesmo que comunitário, neste Clube Nacional da Natação remodelado, andou pela Avenida da Liberdade — ele que diz: “A minha zona habitual é a Gare do Oriente”. Na primeira noite, dormiu em frente ao Cinema São Jorge. “Mas o segurança correu comigo”, começa por dizer sem mágoa nem queixume. “Disse-me: não te posso deixar cá, daqui a bocado estão aí pessoas para fazer a limpeza.” Aceitou com desportivismo, não foi de todo a primeira vez que lhe aconteceu, respondeu. “Pronto, pode-se ir deitar que tem o meu compromisso, daqui a dez minutos saio daqui.” Saiu mesmo, foi “para a frente de um banco privado, ali em frente ao Guilty — antigamente havia ali uma discoteca muito famosa que era a Ad-Lib, há muitos anos, vocês ainda não eram nascidos…”
A ajuda ia chegando “sempre” por estes dias, enquanto os pavilhões não abriam ou enquanto andava entre centros de acolhimento, mas “as estruturas também não podem responder sempre, isto não é uma lâmpada do Aladino, não há magia”, diz, compreensivo. Antes de grande parte do país congelar devido ao surto, “João” era apoiado por duas organizações não governamentais, “a Casa da Cidade e a Mais Vida”, mas o destino das duas foi o mesmo: “Fecharam, não têm estruturas nem organização [para resistir nesta fase], vivem de dádivas e ajudas do comércio e o comércio está fechado, os comes e bebes estão fechados e por isso faltam as refeições”.
O nome e apelido ficam para os amigos e só no final da conversa — rápida porque nos dias em que jornalistas se alongam as noites são “péssimas”, explica uma das responsáveis do espaço — “João” conta como chegou à rua e porque quer ficar incógnito. Cada um tem a sua história, em muitos casos são a falta de trabalho, a pobreza extrema ou contextos familiares precários a originar o problema, aqui não foi nada disso. “Perdi-me precocemente”, começa por dizer o “relações públicas” do pavilhão. Tem 58 anos e diz que teve “uma educação de elite”, mas aos 17 já estava preso e já tem “mais de 25 anos de cadeia cumpridos”. A sua vida, conta, “foi cadeia e droga, sem necessidade humana… porque tenho cultura e tive uma educação de elite. Estou aqui por uma burrice mas olhem, estou como estão os outros”. Na mesa individual que lhe concederam, tinha um livro de Mário Soares pousado. “Sou apaixonadíssimo por política. Sou da geração de 60, portanto estão a ver…”
A família conhece-lhe o trajecto, “não é vergonha” ser sem-abrigo e “João” diz que assume o que é, não é por isso que não diz o nome. Só que o percurso de vida associado ao crime e à droga obrigam a cautelas: “É uma situação particular que não convém [expor], nesses mundos nunca se sabe quem ainda pode estar…”. Há uma pausa, perguntamos-lhe se tem medo que ainda tenha gente atrás dele ou ressentida, ensaia um sorriso perturbado: “Isso… até ao jazigo de família [pode haver]”.
Manter o distanciamento, um desafio: “Às vezes esquecem-se e juntam-se”
Quando “João” conta a sua história, ao fim da tarde, já a fila se forma para o jantar. O menu da noite é massa com atum e feijão, pão e fruta. Naquele dia, quarta-feira, também já chegara muita gente: se na véspera, a primeira noite, tinham dormido ali 17 pessoas, à hora de jantar do dia seguinte já mais de metade dos mais de 40 lugares estavam ocupados. Mas ainda havia camas vagas.
Quem quer que ali chegue a pedir acesso ao que o pavilhão garante — uma cama com lençóis e edredões lavados, uma mesa e uma cadeira também “privativas”, banho diário, roupa que chega de doações, quatro refeições por dia, um tecto —, depara-se com um primeiro obstáculo. Antes de poder chegar às camas, mesas e cadeiras a que cada um tem direito, estrategicamente colocadas a distância de segurança umas das outras e rodeadas por oito tabelas de basquetebol que por ali ficaram de quando o pavilhão tinha outro uso, os candidatos a utentes passam por um processo de triagem médica.
À chegada, é medida a temperatura corporal sem que haja contacto físico com os profissionais de saúde, dado que a medição é feita com recurso a termómetro infravermelhos. Há ainda uma “pequena entrevista” para perceber se quem ali quer entrar tem tido outros sintomas, como tosse ou dificuldades respiratórias. “Pode sentar, aguarde só um bocadinho que chamem”, ouve-se da boca de um dos enfermeiros para um candidato a utente, quando o fluxo é maior (tendencialmente durante a tarde e fim de tarde).
O pavilhão multidesportivo do Clube Nacional de Natação tem ainda, tal como os restantes que acolhem pessoas sem-abrigo, uma sala de isolamento preparada para receber quem evidencie sintomas de infeção já após dar entrada. O plano é encaminhar casos suspeitos que possam aparecer para salas de isolamento, seguindo depois a recomendação da Direção Geral de Saúde: contactar o SNS24 e acatar as indicações recebidas. Fazer testes à entrada foi hipótese descartada.
No interior, veem-se cartazes afixados com os horários diários, bastante detalhados: há horas definidas para todas as refeições, para “libertar os espaços para limpeza e higienização” (às 10h), para “acesso a espaços coletivos” e televisão, para os utentes tomarem banho e trocarem de roupa e para dormir. Também há regras: por exemplo, quem não for dormir uma noite “perde direito ao espaço” e tem de solicitar nova entrada, submetendo-se novamente à triagem e à existência ou não de vaga. No interior, é proibido o consumo “de álcool, drogas e tabaco”. E ainda há cartazes com recomendações para “lavar as mãos sempre que possível”, “conversar a dois metros de distância” e “não partilhar garrafas e latas, cigarros e isqueiros, cachimbos, telemóveis”. Cada um tem os seus utensílios e nas mesas individuais, no período matinal em que o espaço estava em limpezas, ainda era possível ver pacotes de sumos, peças de fruta por comer ou até guardanapos por usar, em alguns casos.
A garantir que não falta acompanhamento aos utentes durante 24 horas estão equipas que cruzam técnicos muito diferentes. Nos pavilhões estão profissionais da Câmara Municipal de Lisboa, psicólogos, profissionais de saúde, pessoal técnico de Organizações Não Governamentais que colaboram com a autarquia e com o Estado (nos privados, há apoios quer para a alimentação quer para a lavagem de roupa) e voluntários a cooperar, estes últimos recrutados na Rede Solidária. Um destes últimos, de máscara colocada na cara, conta que os turnos que ali se realizam são de oito horas e são três — um entre as 8h e as 16h, outro entre as 16h e as 24h e por fim entre as 24h e as 8h.
Só o pessoal técnico da Câmara Municipal de Lisboa, que trabalhava na crise até à intensificação do surto, é insuficiente para responder à abertura de instalações para albergar pessoas sem-abrigo. Os apelos a civis que não façam parte de grupos de risco para se voluntariar para colaborar têm sido muitos. Mesmo entre profissionais de saúde — paramédicos e enfermeiros — a autarquia admite alguma dificuldade para garantir equipas de reserva e substituição, tanto para intercalar o trabalho com os operacionais no terreno como para garantir alternativas caso surjam problemas (a exaustão desde logo, uma possível infeção no pior cenário).
Élio Lampreia, que trabalha como coordenador de um dos turnos do pavilhão, reconhece que um dos pontos menos consensuais na fase inicial de abertura passa pela comida. “Há sempre aqueles que dizem que podiam comer um bocadinho mais, também há aqueles que dizem que é suficiente… estamos numa fase inicial, a tentar chegar ao melhor possível”. Outra preocupação tem sido “garantir que se sentem confortáveis nas camas como elas estão, perceber se estão a sentir-se acolhidos ou não — e se estão a gostar da comida”. Manter o distanciamento social entre utentes é um dos grandes desafios: “A maior parte das pessoas ainda traz enraizado o convívio que tem da rua. Há mais pessoas cientes dos perigos do vírus, mas às vezes juntam-se e esquecem-se um pouco”.
O maior dos pavilhões para receber sem-abrigo em Lisboa é o do Casal Vistoso e tem sensivelmente o dobro do espaço e das vagas dos restantes centros, localizados na Tapadinha e em São Bento. Ao contrário dos dois últimos, o pavilhão do Casal Vistoso permite a presença de animais. Já na Casa do Lago, onde até aqui estavam jovens com problemas com a justiça, estão agora exclusivamente mulheres sem-abrigo, que estão também separadas dos homens no Pavilhão do Casal Vistoso, exceto quando se trata de casais — fonte da Câmara Municipal de Lisboa explica que houve algum receio em seguir uma opção diferente, dado que as mulheres, quando em situação de sem-abrigo, estão tradicionalmente mais vulneráveis a situações de violência física e violência sexual.
“Tive um AVC. Estou com medo, cada dia mais preocupado”
Em matéria de antiguidade, neste novo pavilhão para pessoas sem-abrigo também não há muita gente com mais experiência do que Paulo. Contam-se no máximo pelos dedos das duas mãos os homens que ali estão há mais tempo do que ele: afinal, chegou logo no primeiro dia e ainda a meio da tarde. “É uma instituição”, diz um outro utente que o apresenta.
Antes de chegar a este novo pavilhão, também Paulo conta que passou pelo do Casal Vistoso — e na véspera. Disseram-lhe que ali não havia vagas, mas havia “um em São Bento”. Às 15h e tal, já ele ali estava para garantir lugar. Não tendo dormido no pavilhão do Casal Vistoso, percebeu que este “é melhor” pelos relatos que lhe chegaram e pelo que viu. “Lá é muito maior, há mais gente e ainda vi porrada… eu fujo disso”.
Paulo tem 48 anos e com cinco anos morreu-lhe a mãe, com cancro da mama. “Fiquei passado”, diz hoje. Um ano depois, foi para a Santa Casa da Misericórdia de Almada e ficou lá até aos 18, diz. Depois foi para a rua. “Vou para um sítio, não gosto, saio. Tem sido um entra e sai até hoje”, explica. Conta que há cerca de dois anos e meio um projeto de assistência social tirou-o da rua, mas para lá voltou. Costuma ficar “perto do Pavilhão de Portugal, no Parque das Nações”.
Aos 25 anos teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC). “Era muito nervoso, era muito intenso, era tudo”, diz hoje. Conta que passou “um mês em estado de coma e dois meses a recuperar a andar”, que ainda tirou um curso para ofício em carpintaria mas a última vez que lhe deram trabalho “foi a tratar de cavalos, na Arrentela”. Por causa da debilidade física e das marcas que o AVC lhe deixou, inclusive dificuldades na fala, está assustado com o vírus. “Nem sei se tenho ou não tenho”, começa por dizer, logo acrescentando: “Mas estou com medo. Cada dia que passa estou mais preocupado”.
A conversa acaba quando já se jantava a massa com atum e feijão no pavilhão do Clube Nacional de Natação — ali perto, “João” insiste para provarmos e vinca que “quem diz mal é quem não tem nem teve fome”. A maioria está isolada q.b., tanto quanto é possível face à dimensão do espaço. Há quem já esteja deitado ainda a noite não se pôs, o que tem uma explicação simples: a maioria está habituada a acordar muito cedo quando está na rua, para não ser corrida dos espaços públicos onde passa a noite. Há quem aproveite para ir à porta fumar um cigarro, há quem esteja a ser tratado por paramédicos e INEM, por feridas antigas no corpo. Há quem se queixe que nos tempos áureos chegou a ganhar “mil paus”, que agora “não há abundância de trabalho” e “está tudo muito pior”.
Há até quem vá jogando às cartas e há um pequeno grupo de quatro homens, três de pé e um sentado, que vão conversando muito próximos. “Estão muito juntos, já vou ter de ir lá avisar”, ouvimos de Dina Nunes, da CML, a quem “João” chama “a nossa marechal, a responsável número um”. Vendo-a afastar-se, acrescenta como achega: “Pois, isto é um comportamento humano, as pessoas esquecem-se… mas temos de interiorizar. E às vezes também merecemos uma descompostura”.