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O mundo era um sítio diferente da última vez que os presidentes russo e chinês se encontraram cara a cara. A 4 de fevereiro de 2022, 20 dias antes de a Ucrânia ser invadida por Moscovo, Vladimir Putin encontrava-se com Xi Jinping em Pequim. O motivo era a abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, boicotados por vários governos ocidentais. O forte do dia era o encontro privado entre os presidentes. Desse aperto de mão, mais um a somar a vários, saiu um compromisso: uma promessa de “aliança sem limites”. Uma promessa que será posta à prova.
Agora, a meio de setembro de 2022, Putin e Xi reencontram-se, naquela que é a primeira saída do líder chinês de território nacional desde que o vírus da Covid-19 apareceu. Se a pandemia teve peso nas curvas e contra curvas da economia global, a guerra na Ucrânia — que leva mais de 200 dias e já gerou uma crise energética, alimentar — é hoje um dos maiores obstáculos ao crescimento económico a nível planetário. E isso não é fácil de ser ignorado pela China, país que pretende ser uma super-potência do comércio.
Putin e Xi Jinping vão encontrar-se no Uzbequistão na próxima semana
O reencontro acontece em Samarkand, no Uzbequistão, durante uma reunião de dois dias da Organização para Cooperação de Xangai. A guerra na Ucrânia vai estar na agenda de Putin e Xi, sete meses depois de terem concordado aprofundar a cooperação bilateral nas áreas política e económica (e também na segurança). Nesse dia, as críticas à NATO foram ferozes: num comunicado conjunto, os dois líderes exigiram à Aliança Atlântica que largasse a “ideologia de Guerra Fria”.
Avanços ucranianos fizeram Putin perder força
O que mudou nestes 223 dias? No momento do encontro, já havia sinais de que a invasão da Ucrânia poderia mesmo acontecer — chegou a admitir-se que foi combinado entre os dois líderes que a iniciativa de Moscovo só acontecesse depois de concluídos os Jogos de Inverno —, mas nada levava a crer que a Rússia não fizesse valer o seu poderio militar, fazendo cair o governo de Volodymyr Zelensky. Pior. Nem Putin nem Xi imaginariam que o conflito chegaria à atual fase, em que os ucranianos recuperam terreno e há notícias de retirada de tropas russas.
Se Vladimir Putin está no pior sítio possível desde o início da guerra, Xi Jinping, por outro lado, vive um momento de reforço do seu poder dentro de portas. A 16 de outubro, o Partido Comunista da China deverá reconduzir o atual Presidente a um terceiro mandato, algo que era proibido pela Constituição. Apesar disso, a economia chinesa está a estagnar, muito longe dos esperados 5,5% de crescimento, valor que já era considerado baixo para os padrões do país. Apoiar uma guerra que custa crescimento económico à China é a última coisa de que Xi Jinping precisa. Mas ter o apoio do parceiro chinês é fundamental para Putin.
China “não é a melhor amiga” da Rússia
O encontro desta quinta-feira foi combinado muito antes das mais recentes ofensivas ucranianas, recorda o analista de Assuntos Internacionais Mikhail Troitskiy, sediado em Moscovo. Por isso, traça uma linha entre o antes e o depois desses acontecimentos.
“Acredito que Xi estivesse bastante preocupado com o panorama para a sua economia, quando está a tentar um terceiro mandato como Presidente”, diz o analista ao Observador. “Acredito que o Presidente chinês estava interessado em garantir que não existissem novas perturbações na economia global e que o seu panorama se tornasse pior do que aquilo que já é”, refere Mikhail Troitskiy. O analista sublinha que a economia chinesa já está a abrandar e, se o cenário se mantiver, torna-se impossível à China apanhar os EUA.
Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre a contestação interna a Vladimir Putin.
“Por um lado, a China está interessada em manter os EUA em xeque, e estão preocupados com a Ucrânia e a guerra com a Rússia. Mas os chineses também terão feito os seus cálculos e aperceberam-se do impacto negativo que esta guerra está a ter na economia global e no próprio cálculo económico chinês”, acrescenta Troitskiy. Por isso, não acredita que Xi Jinping vá incentivar Putin a continuar com a disputa.
Já Kerry Brown, professor de estudos chineses no King’s College London, lembra a importância da manutenção do regime de Putin para Xi Jinping. “Obviamente que a China não quer que a Rússia desmorone e, num mundo ideal, escolheria uma liderança estável de Putin sobre qualquer outra coisa”, afirmou à CNN Internacional. Mas há um senão: “A Ucrânia é um problema indesejável que Pequim preferiria ver desaparecer. É claro que a China não confia na NATO, nem no Ocidente, mas isso não significa que seja a melhor amiga da Rússia. Esta instabilidade não ajuda a China de nenhuma maneira óbvia.”
Incentivar à reconciliação? China poderá ir por esse caminho
Mikhail Troitskiy fala de uma outra possibilidade. “Diria que a China poderá ter um papel reconciliador e encorajar Putin, de alguma maneira, a terminar a campanha russa e a resolver a questão de outras formas, porque esta é muito destabilizadora para a economia global”, considera o analista de Assuntos Internacionais. “Agora, depois da ofensiva ucraniana, penso que estes argumentos só se tornaram mais fortes”, defende, “até porque o Ocidente pode aparecer triunfante mediante o sucesso, mesmo que parcial, da Ucrânia na guerra. E isso torna a posição da China mais fraca”.
Um grande sucesso na política norte-americana de ajuda à Ucrânia, acredita Mikhail Troitskiy, iria afetar negativamente a posição chinesa, se eles estiverem preocupados em manter um equilíbrio de poder. “Por isso, penso que Xi não irá encorajar Putin a continuar pelo mesmo caminho, mas antes procurar soluções ao invés de manter as hostilidades”, refere o analista ao Observador.
Liz Wishnick, investigadora sénior no Centro de Análises Navais, e em licença da Montclair State University, traçou outro cenário quando falou com o Observador. “Esta será a 39.ª reunião de Xi com Putin, portanto, mesmo que a Rússia esteja a enfrentar dificuldades no campo de batalha, é improvável que o líder chinês modere seu apoio.”
A investigadora acredita que “Xi está pessoalmente investido na parceria com a Rússia e não pode ser visto a admitir um revés na política externa antes do 20.º Congresso do Partido Comunista Chinês”, que acontece no próximo mês. “Dito isto, é improvável que Xi forneça mais do que apoio retórico a Putin, provavelmente fará mais críticas à NATO, aos EUA e às sanções. Xi pode dizer algo positivo sobre um a proposta de um gasoduto da Rússia via Mongólia para a China, mas há muitos obstáculos a serem superados, entre os quais as sanções. E haverá as habituais declarações sobre as perspetivas brilhantes para a parceria sino-russa.”
Xi Jinping já teve esse poder de persuasão sobre Putin
Conseguiria o Presidente chinês fazer Vladimir Putin mudar de estratégia? Mikhail Troitskiy acredita que Xi poderá ter esse poder de persuasão, desde que algumas condições se mantenham. “Poderá ter enquanto a China se mantiver como um dos principais compradores do petróleo russo, e também de algum gás natural, mantendo-se neutra, não introduzindo sanções contra a Rússia”, sublinha. Por outro lado, a postura da China é muito importante para a Rússia fazer valer a sua posição, podendo apontá-la como país parceiro, ou como outro Estado que também condena as políticas do Ocidente.
“A opinião da China importa, claro, mas enquanto não houver uma aliança formal, e a China fizer apenas recomendações, a Rússia pode ignorá-las. A China só se torna importante quando é vocal e clara. E a China não tem tradição de tomar posições fortes a não ser sobre Taiwan”, argumenta o analista.
No entanto, recorda que a China tem um antecedente neste género de situações, já que terá tido um papel fundamental na decisão russa de retirar tropas do Cazaquistão, em janeiro deste ano — “É senso comum que, se a China não tivesse pedido à Rússia que se retirasse, as forças russas teriam ficado. É um sinal de que Moscovo ouve Pequim.”
Já Velina Tchakarova, diretora do Instituto Austríaco de Política Europeia e de Segurança, sediado em Viena, acredita que o apoio de Xi é fundamental para Putin. “Isso ajuda Moscovo a espalhar a narrativa russa, como, por exemplo, pôr a culpa da crise alimentar nas sanções impostas pela União Europeia ou culpar a NATO pelo início da guerra. Isto cria um denominador comum: insatisfação com o Ocidente, comandado pelos EUA, e o caso positivo de laços mais estreitos com a China”, disse, citada pela CNN Internacional.
Putin e Xi deverão falar sobre a guerra, as armas e o medo
Dentro de portas, tudo pode acontecer. Para o resto do mundo, o que conta é o que os líderes dizem quando os microfones lhes estão apontados. A mensagem que será transmitida deverá depender muito da postura do Presidente chinês ao longo do encontro.
“Se Xi for brando com Putin, penso que cada um terá a sua versão da reunião e essa acabará por ir ao encontro dos seus interesses. Mas se a China for mais insistente, e mais vocal, aí acho que vai importar”, refere o analista Mikhail Troitskiy. Lá dentro, talvez falem de armas, mas a comitiva russa, acredita, irá querer discutir a importância de a China não ceder às sanções e continuar a apoiar o Kremlin.
“Será que a parceria não tem mesmo limites como declararam? Ou há limites impostos pelos EUA? Está a China com medo?”, tudo isto são perguntas que, conclui Mikhail Troitskiy, podem ser colocadas pelo lado russo.