Fernando Nobre participou, no último domingo, na manifestação em frente à Assembleia da República organizada por algumas dezenas de pessoas que contestam as medidas de combate contra a pandemia (nalguns casos, negam mesmo a existência da pandemia). O médico, ativista, ex-candidato presidencial, apresentado como o elemento forte do protesto daquele dia, esteve quase 35 minutos a falar em cima do palco improvisado, com a Assembleia como imagem de fundo. E, naquela meia hora, Nobre disse, uma atrás da outra, informações (muitas) falsas, do tratamento indicado para a Covid-19 aos supostos ganhos financeiros dos profissionais de saúde que estão no terreno, passando pela alegada manipulação dos testes PCR até ao motivo da morte do inventor destes recursos clínicos, depois de ter sido decretada a pandemia provocada pelo novo coronavírus.

Fundador da AMIDr. Fernando NobreManifestação de 11 de setembro 2021 em frente à Assembleia de República.Informem-se!

Posted by Patrícia Martins on Sunday, September 12, 2021

O Observador recupera esses pontos e analisa-os em separado — na verdade, algumas das ideias propagadas por Fernando Nobre já foram sendo desconstruídas ao longo do último ano e meio, através dos vários Fact Checks publicados neste período — ainda que as alegações do presidente da Assistência Médica Internacional ( uma Organização Não Governamental que o próprio médico cirurgião fundou em 1984) não tenham todas o mesmo peso (e impacto).

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Ordem dos Médicos abre processo disciplinar contra Fernando Nobre

Mais de uma semana após a manifestação, a Ordem dos Médicos abriu um processo disciplinar contra o presidente e fundador da AMI (Fundação de Assistência Médica Internacional). O processo foi aberto pelo Conselho Disciplinar Regional do Sul após a receção de queixas externas, incluindo de pessoas fora da área médica.

“Em 2019, a OMS apagou a segunda parte da definição. Hoje, qualquer epidemia de gripe passará a ser uma pandemia”

A frase é dita logo aos sete minutos da sua intervenção. Fernando Nobre está a recordar o seu percurso profissional e a refletir sobre a pandemia quando diz: “Médico há quase 45 anos, devo confessar-vos que muito do que aprendi já não existe. [Por exemplo,] a definição de pandemia, que é uma infeção generalizada com alto índice de mortalidade. Em 2019, a OMS apagou a segunda parte da definição. Hoje, qualquer epidemia de gripe passará a ser uma pandemia.”

Fernando Nobre está errado, a Organização Mundial de Saúde não “apagou” a segunda parte da definição deste termo porque, simplesmente, essa segunda parte não existe. A pandemia refere-se a uma doença infecciosa que se espalha rapidamente pelo território e que pode, potencialmente, afetar uma parte significativa da globalidade do planeta. A diferença de pandemia para epidemia reside nesse fator geográfico. No caso da segunda, a doença está contida numa área restrita.

O Covid-19 já é uma pandemia. O que isto significa e o que muda

Foi isso que o Observador explicou logo no momento em que foi decretada uma nova pandemia, em março de 2020.

ERRADO

“A partir de 35, 40 ciclos de ampliação, 93 a 97% desses testes são falsos positivos”

O ponto aqui é a alegação de que os resultados da esmagadora maioria dos testes PCR — que ditam a presença, ou não, do vírus no organismos das pessoas testadas — estão errados. Esta ideia já foi desmontada anteriormente.

Por exemplo, neste fact check do Aos Fatos, que partiu de uma alegação muito semelhante à de Nobre. A propósito do tema, o médico brasileiro Alessandro Loiola afirmava que “quando você utiliza o PCR com mais de 35 ciclos nós temos apenas 3% de resultados confiáveis (…) ele produz 97% de falsos positivos (…) de cada 10 pessoas que foi colocado que morreram com ou de Covid, 9 nem o vírus tinham”.

O que a farmacêutica Laura de Freitas explicou àquele parceiro do Observador é que o maior ou menor número de ciclos de análise a que uma amostra é sujeita pode dar indicações sobre a carga viral da pessoa submetida a um teste. Quanto menos ciclos, maior a carga viral; quantos mais ciclos, menor a carga viral. Mas o resultado do teste (positivo ou negativo) não é afetado pelo número de ciclos.

“A [relação entre] número de ciclos e resultados positivos não se refere aos casos em si, mas à capacidade de contágio. Também não há comprovação nesse sentido, e o que foi apresentado [numa carta publicada numa revista científica] não impacta em nada a contagem de casos positivos”, disse a farmacêutica ao Aos Fatos.

Em julho do ano passado, o Observador tinha verificado uma informação semelhante e, entre outros dados, obteve do laboratório Unilabs a informação de que o teste PCR “tem 97% de especificidade e 83% de sensibilidade”.

ERRADO

No julgamento de Nuremberga, Hermann Göring disse: “É que nós consigamos injetar o medo de tal modo profundamente. Porque a partir desse momento os povos farão exatamente aquilo que nós queremos”

Outra ideia já desmentida por vários fact checkers, incluindo o Observador. A determinado momento da sua intervenção, Fernando Nobre procura no telemóvel a citação exata da resposta que Hermann Göring terá dado em Nuremberga, quando questionado sobre a forma como o regime nazi teria conseguido a complacência da população alemã para as atrocidades cometidas durante o III Reich.

Fact Check. Líder nazi disse que “para escravizar pessoas basta assustá-las”?

Mas Nobre não encontra essa referência — partilhada em múltiplos posts nas redes sociais no último ano e meio — e acaba por falar de improviso. Segundo o médico, o ex-líder nazi ter-se-ia explicado nestes termos: “O que eu acho é que [é preciso que] nós consigamos injetar o medo de tal modo profundamente. Porque a partir desse momento os povos farão exatamente aquilo que nós queremos.” Mas nenhum historiador se deparou até hoje com qualquer passagem que refira estes termos. O Le Monde e a AFP dedicaram-se, aliás, a percorrer as transcrições desse julgamento ímpar da história mundial e não chegaram a um resultado que se assemelhasse ao parafraseado por Nobre.

ERRADO

Isso trata-se, como eu me tratei, tratei a minha mulher, tratei a minha filha. Com asitromicina, hidroxicloroquina, ivermectina…

Há também um momento em que Fernando Nobre partilha a sua experiência pessoal, ele que chegou a ficar infetado com o novo coronavírus e adoeceu, ao ponto de precisar de tratamento hospitalar. Esteve internado e recuperou de uma hipoxia (falta de oxigénio no sangue) de 70%. “E mandam-me para casa com um tratamento com paracetamol! Eu disse para esse meu colega: vai-me desculpar, mas o senhor nem para meu assistente tem qualidade, porque isso não se trata com paracetamol, ou doliprane, ou ben-u-ron. Não! Isso trata-se como eu me tratei, tratei a minha mulher, tratei a minha filha — com azitromicina, hidroxicloroquina, ivermectina…”.

Fact Check. Azitromicina e Ivermectina “matam” o SARS-CoV2?

Problema: essa informação, apesar de propagada, entre outros, por alguns líderes de países como o Brasil (Jair Bolsonaro) e os EUA (Donald Trump), é falsa.

Relativamente à azitromicina, um antibiótico usado para doenças infecciosas como bronquite, pneumonia ou otite, “não demonstrou papel relevante no contexto da terapêutica para a Covid-19 não tendo reduzido o risco de morte nem provado efeito em qualquer outro resultado clínico relevante para este vírus”. Esta garantia foi dada ao Observador pelo Infarmed, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde.

Sobre a ivermectina, a posição do Infarmed era a de que “não se podem retirar conclusões sobre a eficácia e segurança deste medicamento no tratamento da Covid-19, devendo aguardar-se resultados de ensaios clínicos realizados de forma robusta, devidamente desenhados e realizados para determinar com base em evidência técnico-científica, o papel desta substância ativa no tratamento da infecção”. Isto foi em janeiro de 2021. Em julho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil sublinhava que “não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da Covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso”.

ERRADO