Quatro homens entram num museu e um deles é uma lenda viva da arquitetura — Norman Foster, de 86 anos, Prémio Pritzker em 1999, autor de um gigantesco aeroporto em Hong Kong, responsável pela renovação do Parlamento alemão e pelo arranha-céus de Londres em forma de pepino. Estamos no Guggenheim Bilbau, outra obra aparatosa da arquitetura moderna, esta com assinatura de Frank Gehry.
Norman Foster acaba de falar sobre a exposição de tecnologia e arte “Motion: Autos, Art, Arquitecture”, de que é curador e cuja inauguração acontece nesta sexta-feira, podendo ser vista até 18 de setembro. Responde agora a jornalistas. O Observador pergunta-lhe pelas cidades pós-covid e os efeitos da pandemia no urbanismo e na arquitetura, assunto que aliás marcou a Bienal de Arquitetura de Veneza no ano passado.
Tranquilo e muito direito na cadeia, fato rubro e meias vermelhas, o arquiteto disserta sem hesitar. “Veja-se o caso das pandemias de cólera de meados do século XIX. Fizeram sobressair tendências que já lá estavam. Aceleraram o saneamento básico que temos hoje, por exemplo. Teria acabado por surgir, mesmo sem a pandemia da cólera, mas foi esta que acelerou tudo. Veja-se a construção antissísmica em Portugal a seguir ao Grande Terramoto. Ou a construção anti-fogo em Londres como resposta ao Grande Incêndio de 1666.”
[montagem da exposição num vídeo do Museu Guggenheim Bilbau ]
Torna-se claro que o assunto fascina o arquiteto britânico. Ele já tem reflexão feita sobre as implicações sociais e culturais do coronavírus e aparentemente atira para trás das costas uma ideia que vem desde pelo menos a década de 60 e que conheceu súbita atração nos últimos dois anos: o regresso ao verde, ao mundo rural.
“Vista no contexto da História, a pandemia não muda nada. Trouxe, sim, um novo impulso às tendências que já existiam. Diziam que iria acabar com as cidades. Esqueçam. As cidades saem fortalecidas”, afirma Norman Foster. “A cidade, a urbanização, é o nosso futuro, quer gostemos ou não. Porque as cidades criam riqueza, inovação, oportunidades, liberdade, é onde aumenta a esperança de vida. Por isso é que todos querem vir para as cidades. É a nossa vida, gostemos ou não.”
“Caixas cinzentas”? “Não acredito”
Os outros três homens de elite que o acompanham são o diretor-geral do Guggenheim Bilbau, Juan Ignacio Vidarte, e os presidentes executivos dos dois patrocinadores da exposição, Iberdrola e Volkswagen — os mesmos que convidaram jornalistas de Portugal, Espanha, França e Itália a comparecer esta semana na cidade basca para um vislumbre da exposição.
Ignácio Galán, da Iberdrola, diz que o futuro passa pela descarbonização e pelas energias renováveis, pelo apoio a iniciativas culturais com valores idênticos aos da sua empresa: igualdade de género e sustentabilidade. O alemão Herbert Diess assina por baixo e num espanhol quase perfeito acrescenta que a Volkswagen vai investir sete milhões em Espanha no fabrico de baterias para veículos elétricos e quer converter fábricas de carros de combustão em fábricas de elétricos.
Olhando o futuro, o patrão do maior fabricante de automóveis da Europa defende que os carros autónomos, sem condutor, guiados por inteligência artificial, não serão apenas “caixas cinzentas” e baratas que nos transportam de um sítio ao outro. “Não acredito”, afirma.
“Hoje, o mundo da mobilidade é mais do que o transporte de pessoas. É emoções, marcas, prestígio, velocidade. Vai muito para lá do mero transporte”, explica o executivo alemão. “O mundo automóvel vai ser muito atraente no futuro. Não teremos o problema dos acidentes. Os carros vão ser mais seguros, graças a sensores que teremos. Os carros vão-nos dar mais serviço, associado a prestígio e luxo, como hoje. E mais ainda: serão sustentáveis, sem emissões.”
Herbert Diess aborda também a crise nas cadeias de abastecimento, que desde há meses deixa os fabricantes de automóveis sem acesso a semicondutores e outros componentes. Diz que as coisas devem melhorar no segundo semestre deste ano, ainda que a guerra na Ucrânia tenha “criado novos constrangimentos”, sobretudo nas fábricas alemãs da Volkswagen. Em resposta a um jornalista português, sublinha que a marca alinhou com as sanções económicas à Rússia, no contexto da guerra, embora continue a pagar aos milhares de empregados que vivem no país. “Somos a favor de sanções robustas, é a única maneira de parar Putin”, diz Herbert Diess.
“Tanto quanto sei, nunca tinha havido uma exposição como esta”
Eis agora a exposição. Propõe-nos um percurso pela história do automóvel, desde a sua invenção até aos nossos dias, passando pela fase futurista da década de 1950 até à visão especulativa para as próximas décadas. Demorou três anos a preparar e resulta de uma ideia antiga de Norman Foster, que aliás tem uma grande coleção de automóveis históricos, a mesma que dá forma à exposição. É também um apaixonado da velocidade e dos motores desde os tempos de piloto da Força Aérea britânica, no início dos anos 50. A isso junta o fascínio de criança pelo design de comboios, aviões e carros.
Revela nesta ocasião que o primeiro carro que conduziu foi um Morris dos anos 30, um carro da família, e que o primeiro que comprou para a coleção foi um Jeep. Se tivesse de escolher o automóvel mais fascinante de quantos agora apresenta, optaria pelo Dymaxion, em cuja reconstrução ele próprio se empenhou. O Dymaxion é de 1933 e tem desenho de Richard Buckminster Fuller e Starinng Burgess, mas só três exemplares foram produzidos, sendo o quarto de 2010, precisamente aquele que Noram Foster reconstruiu.
O homem que os portugueses conheceram melhor quando há quase duas décadas foi convidado pelo então presidente da Câmara de Lisboa, Pedro Santana Lopes, para construir uma polémica torre junto à Avenida 24 de Julho, nunca saída do papel, fala entretanto da génese da mostra. “Abordei o Guggenheim de Nova Iorque e apresentei a proposta. Pouco depois, fui contactado pelo Ignacio, que me convidou a criar uma equipa que pusesse a exposição de pé”.
Ele exibe uma vitalidade invejável de quem deseja continuar a trabalhar por muitos e bons anos. Prossegue a explicação. “Quis celebrar a fusão de tudo o que contribui para o nosso quotidiano. O automóvel transformou o planeta e vai continuar a transformá-lo ainda mais. Profissionalmente trabalhei com diversas disciplinas que me permitiram projetar edifícios. Tanto quanto sei, nunca tinha havido uma exposição como esta, que juntasse os automóveis ao trabalho de artistas e arquitetos. É um fórum que nos permite falar do futuro, da mobilidade, da poluição”, explica.
Conhecido por riscar obras tecnológicas e futuristas, muitas vezes marcadas por vidro e aço e quase sempre controversas, explica agora que a sua exposição desperta “emoções” perante “objetos de extrema beleza”, que são os carros. E há mais. “Uma sinergia cultural”, resume. Porque ele discorda da “visão conservadora” que põe as belas-artes num mundo à parte. O automóvel “tem direito a ser um artefacto cultural“, defende o arquiteto.
“Motion: Autos, Art, Arquitecture” é como um “requiem pela idade do motor de combustão e acerca das lições que colhemos do passado”, aponta. Porque o mundo atual, “mais globalizado, padronizado, codificado”, está já a anunciar o carro do futuro, que vem embrulhado em incerteza. Será esse carro autónomo como que um quarto ou uma sala de estar andantes? Será que os seguros passarão a ser uma coisa do passado, já que os novos carros prometem riscos nulos para os passageiros? Ou serão eles vulneráveis a ciberataques? “Há sempre cenários otimistas e pessimistas. Acredito profundamente que estamos no limiar de alguma coisa nova e bastante positiva.”
Bugatti de 1936, Andy Warhol, Lalique
Segundo o diretor-geral do Guggenheim Bilbau, a pandemia e a guerra na Ucrânia criaram obstáculos à concretização da mostra, fazendo deste “um dos projetos mais complexos” de sempre do museu. Celebra-se aqui a “dimensão artística” e o “carácter escultórico” dos automóveis, diz Juan Ignacio Vidarte, prevendo que “Motion: Autos, Art, Arquitecture” seja um dos grandes êxitos do ano, ideal para assinalar os 25 anos da instituição. À partida não vai circular por outros espaços, pelo que a oportunidade é mesmo única.
Piscando o olho aos admiradores das máquinas e também àqueles que procuram os museus para verem obras de arte mais convencionais, os carros surgem em conjugação com pintura, escultura, fotografia e desenho de nomes consagrados. David Hockney, Andy Warhol, Robert Indiana, Brancusi, Marinetti, Lalique, Sonia Delaunay, tantos outros. Há ainda a “experiência sonora imersiva” com registos áudio de motores, da responsabilidade da marca alemã Sennheiser e do antigo baterista dos Pink Floyd, Nick Mason.
O visitante encontra seis núcleos que resumem períodos históricos ou sequências lógicas. Despontam 38 automóveis, incluindo o primeiro da história, criado em 1886 por Karl Benz, mas também o Ford T de 1914, o Bugatti 57SC Atlantic de 1936, um Cadillac Eldorado Biarritz de 1959, o Mini, o Renault 4, um Jaguar E-Type de 1963 ou o Aston Martin DB5 James Bond de 1964.
No núcleo “Future” surgem protótipos criados por alunos de 16 escolas de design de várias partes do mundo, que tentam dar resposta aos problemas da mobilidade atual, imaginando um futuro sem filas de trânsito, sem poluição, com veículos partilhados e cada vez mais autónomos. Há projetos da ArtCenter College of Design, da Califórnia; da Scuola del Design do Politécnico de Milão; da Universidade da Cidade do Cabo, etc.
Doenças, contaminações e fedores
A Norman Foster, na curadoria, juntaram-se Lekha Hileman Waitoller e Manuel Cirauqui, ambos do Guggenheim. Foi este último que guiou alguns jornalistas pela exposição. Ao referir-se ao núcleo “Beginnings”, sobre o início do “cavalo motorizado”, notou que nos primeiros 10 ou 20 anos a indústria não sabia ainda pelo que optar: se a eletricidade, o vapor ou os motores de combustão. Ainda nesta galeria destacou elementos que mostram a geopolítica dos carros, de como alemães, franceses, italianos e americanos se digladiaram no início do século XX pela liderança nos avanços técnicos nesta indústria, e sugeriu que foi a introdução do automóvel que salvou as cidades das doenças, contaminações e fedores provocados pela presença massiva de cavalos em ambiente urbano.
No núcleo “Sporting”, Manuel Cirauqui fez questão de afirmar que os carros de Fórmula 1 têm “zero design, porque buscam apenas a funcionalidade absoluta”. Apontou ainda na galeria ou núcleo “Visionaries” o Firebird I, de 1954, desenhado por Harley J. Earl e construído pela General Motors. Foi um protótipo com carroçaria em fibra de vidro e turbina a gás. Aliás, o primeiro do género a ser construído e criado nos EUA.
A exposição apela aos sentidos, ao gosto pelas artes visuais e pelo design, pela tecnologia e pelas engenharias. É uma viagem demorada por uma indústria que à velocidade da luz ganhou lugar central nas sociedades.
O Observador viajou a convite do Museu Guggenheim Bilbau